V CAPITULO
João D´Almada, após a estada de alguns mezes em uma cidade de aguas, chegára. O futuro noivado de Ladice não o surprehendeu. Essa sua priminha era tão deliciosamente feita, vibratil, lyrica, agitada, febril, como a lyra de Sappho... cheia de contrastes e desigualdades sublimes. Ora transparente, diaphana, de paredes de crystal; ora sombria, velada, indecifravel como um passado remoto, escondido sob a espessura dos seculos e do tempo — rapida, veloz, nuvem tocada pela tormenta, estrella scismadora, quieta, perdida sobre o universo...
Tivesse elle menos dez annos, a penna violenta de Carlyde, a figure de Alcebiades, e seria o pretendente. Só com essas excepções de espirito e fórma é que poderia calar, baralhar-lhe as vertigens da sensibilidade anormal. Sem amor, ella seria uma gelida esphinge, receptiva de carinhos e beijos, guardadora muda, passiva, de amores alheios, embora as suas cellulas se abrissem á vida gloriosa, á ebriez, á perfeição, ás plenitudes. Quanta vez elle lhe não surprehendera, em tardes calidas, olhares obliquos, esses olhares que teem o gesto das plantas, dos elementos, das coisas que fogem, olhares que têm integralidades, lucidez ardente, clamor desesperado, gritos silenciosos de um determinismo implacavel! Oh! os fremitos que lhe passavam pelo corpo, quando se deitava sobre a terra fria, no lado dos bambús, em dia de verão. E, na sua meninice, a fascinação morbida para com as coisas mortas, a volupia funebre que a agitava, ao enterrar os insectos, as bonecas quebradas... — “Agentes multiplos, ignotos, extraordinarios; germens que trabalharam em gerações successivas, explodem, completam-se, tornam-se principios activos nessa mulher”—dizia a si mesmo João.
Elle queria vel-a, estar a sós com ella, afim de sondar-lhe os sentimentos, saber-lhe os pormenores, as minucias dessa affeição.
Certo dia, pela volta das duas horas, o sr. D´Almada chegava á casa de sua tia. Ao ser informado de que esta e Dinah haviam saido, em visita a uma senhora, elle se não conteve de alegria: — “Que felicidade, será effeito do amuleto que aqui trago, preso ao relogio?” — pensou elle. Era uma salamandra de lapis-lazuli, comprada em Punnah, a um fakir, quando em viagem pelas Indias.
Ladice recebeu-o com alvoroço, festiva, risonha. Ella gostava em extremo desse primo, tão pallido, tão distincto, original, bizarro, que parecia trazer de cada paiz onde estivera um habito, um traço: fumava o opio em narguilé; dormia é sesta, estirado em pelles de lhamas negras, a cabeça sobre almofadas de cetim, resguardado da aragem por um biombo minusculo, onde crysanthemos se alteavam ao lado de ibis sombrios; na sua cabeceira, pendurado, á maneira de santo, um idolozinho de bronze, de pernas cruzadas, de bôca repuxada, a eternizar um riso.
Ladice costumava dizer que a cara de João trazia escripto um romance; era uma cara altamente suggestiva; as faces um pouco magras e descoradas; a fronte larga e fugitiva; os olhos escuros e áridos; os labios finos e vermelhos, sempre contrahidos; os cabellos pretos, collados, que lhe moldavam as curvas do craneo, lembravam-lhe, suggeriam-lhe a parte insolada de além-mar: andaluzas a bailar ao rythmo de castanholas, perfis lividos, silhuetas elasticas, attitudes humildes, vigilias, insomnias, todos os peccados que ella ignorava...
— Se soubesses o quanto estás linda, assim, nesse vestido apertado, de melenas soltas, e garganta núa... Como te invejo o futuro noivo...
— Não tenhas inveja... E´s maís bonito que elle...
— Sim, mas serás delle e não minha...
— Que te importa, se gosto mais de ti que delle...
— Será possivel? Então, não o amas? — inquiriu-lhe João, attonito, retendo-lhe as mãos.
— Não, não o amo; nem terei outro amor — respondeu ella, baixando os olhos.
— E ficas noiva nessas condições?
— Apenas obedeço á vontade imperiosa de meus pais. Morreriam, se não acquiescesse...
— Mas, Ladice, não poderás viver sem amor...
— Bem sei que passarei dias insupportaveis... mas que fazer? Ah! que fazer? — E suas mãos torciam-se, agoniadas.
— Espera. Talvez, mais tarde, encontres o teu idéal... Feliz do homem a quem amares—accrescentou elle, examinando-a.
— Já te disse que nunca amarei...
— Tu me repetes essa phrase com tanta pertinacia, que creio teres uma paixão infeliz...
Ladice enrubesceu.
— Esse rubor te tráe... Tenho certeza mesmo... Oh! amas alguem... Dize-me quem é!...
— João, é um segredo que deve permanecer entre mim e Deus... não insistas...
— Não te mereço confiança? Somos grandes amigos... quasi o teu paizinho...
— Pois bem, mas só no teu ouvido. — E Ladice, rapida, com um joelho no gofá, as mãos nos cabelos de João, bôca rente á sua orelha, murmurou-lhe baixinho—E´ Theophilo, — E, escondendo a cabeça, ajuntou: — Não te zangues...
O ar. D´Almada, embaraçado, sem saber o que dizer, apertava contra o peito seu perfil triste. Depois de instantes silenciosos, mostrando em a physionomia o pesar que essa confissão lhe cansava:
— Desde quando, Ladice?
— Desde o dia em que me falaste delle...
— Mas se apenas o viste...
— O sufficiente para tel-o total em mim...
— Não será romantismo?
— O meu coração para elle é qual o da Virgem d´Avila para o Christo: um extase que deseja extases... Vês, Jean, sou de estructura delicada, mas meus sentimentos são fortes, são como a vida, accumulam-se mais, ainda mais...
João via-lhe nos olhos todas as instancias lyricas de sua natureza esplendida...
— Pobre criança! Vais soffrer muito. Como ousas casar com um coração em brasas, com um incendio a te consumir.—E João, meigo, alisava-lhe os cabellos irrequietos.
— Theophilo para mim está perdido; é de outrem... Meus pais insistem... O dr. Assis tem grandes qualidades... — explicava ella.
— Tu te casas por novidade, por curiosidade, não é mesmo?
— Enganas-te, tenho ao meu futuro noivo uma amizade immensa, e, além disso, o meu sacrificio dará alegria à minha familia... E´ preciso que todos riam, embora eu morra..
— A amizade não te satisfará... E´s flôr que pede tormenta, raiva, luz, cuidados para desabrochar — dizia João, lentamente, afagando-a com os olhos, com as volições...
— Já trago em o coração a paixão ardente, luminosa, profunda...
— Mais tarde comprehenderás... O amor espiritual pertenco a Deus, ás coisas de religião. O amor da mulher no homem não se fecha na imaginação... Vai além, causa desordens...
Essas palavras entraram no coração de Ladice, como um toxico... embutiam-lhe nas fibras, a fórma de todos os beijos. Depois de uma pausa, ella o inquiriu com empacho:
— Tiveste noticias de Theophilo?
— Está em villegiatura na Italia, em peregrinação intellectual.
— E elle é feliz?
— Tanto quanto serás, uma vez casada, por suggestão, por ordem alheia...
— Não sabes quando voltará?
— Nunca antes de tres annos...
— Tanto assim?
— Pudesse eu, e retel-o-ia eternamente lá na Europa.
— Mas, por que?
— Para o teu bem...
— Que tolice, João; olvidal-o-ei logo que me case...
Ladice falava machinalmente; as palavras lhe saiam apenas com som e inflexão. Theophilo jazia-lhe no intimo, envenenava-lhe o espirito, as sensações.
— E´ uma obrigação de tua consciencia... Varre-o de teu coração, Em todo o caso — continuou João — não assistirei o teu casamento; não quero ser testemunha de teu sacrificio, e, talvez, quem sabe? de tua ruina. Se não fôra Theophilo, amarias a um outro. Lastimo que principies a vida de mulher com um infortunio não calcado, com um ardor peccaminoso, capaz de abranger os teus dias vindouros. Mas esquece-o, filha, para tua felicidade. Pensa sómente no homem que deverá ser teu marido. —E João deu-lhe na fronte um beijo casto e puro.
Urgia á Ladice saber do primo o que o seu sêr inteiro reclamava, implorava, rogava. — O juizo de Theoplilo a seu respeito. — Com a cabeça baixa, segurando-lhe, inconscientemente, ora um botão do collete, ora outro, vencendo a hesitação, temerosa, quasi imperceptivel, balbuciou :
— Conta-me a impressão que Theophilo recebeu de min?
— Não falemos mais disso... Nada te adeanta... Não te direi coisa alguma — respondeu elle, firme.
De mãos unidas, olhos supplices, picada de curiosidade, Ladice lhe implorava de continuo; mas elle, inflexivel, cruel, rude, dizia-lhe: não.
Era preciso domal-o, desarmal-o; assenhorsar-se-lhe da consciencia, dos poderes da resolução; tel-o em as mãos, tornal-o ductil, malleavel, não elle...
Ladice sabia por seus proprios instinctos que o homem cede, rende-se, submeíte-se, é objecto, é verme, herva rasteira, valor menor, ante o carinho da mulher que traz em sua fragilidade as excepções maximas, o alarido multiplo de mysterios que querem ser, o raio dourado da ventura que ri, o viço do imprevisto, da renovação, a mobilidade incisiva das paixões que lhe batem no sangue, quaes os corações immensuraveis e avidos da Terra fecunda.
Oh! o homem é servo cabal; é sombra flagrante e inteiriça, cópia ambulante da mulher, que lhe dá a ebriez dionysiaca, a ebriez apollinea...
Chegando-se a elle Ladice deu um salto e passou-lhe pelo pescoço os braços pallidos, roliços, serpentinos: sua cabeça se inclinava sobre a cabeça de João, buliçosa, gracil, impaciente, lunatica; era como a caricia das frondes, das alturas, da nuvem, das luas cheias, das ramas... Sens cabellos desfaziam-se, espalhavam-se, emmaranhavam-se no rosto, nas mãos, de seu primo, á feição de perfumes liquidos, de tranças de incenso, de ondulações febris, de pensamentos convulsivos... seu corpo apoiava-se, abandonava-se, sustentava-se em a nuca, em o hombro de João como um sim ainda indeciso, hesitante, não liberto do não... Seu queixinho roseo e branco, sem o saber, pousava em a fronte do companheiro, uma volupia fixa, uma idês ignea... Ella o premia contra as rendas do vestido, contra os membros esbeltos, resvaladios... Acompanhavam-lhe os sorrisos, palavras gentis, amabilidades, lisonjas, promessas de virtude; eram actos infantis, cheios de pureza, de candura ; explosões innocentes, manifestações sem écho, eclosões estereis, sem raizes, de um sêr em o auge da curiosidade, enfunado de interesse...
João, impotente, suffocado, tonto, subjugado, acquiesceu; segurando-lhe os pulsos, as pupíllas incendiadas, disse-lhe, devagar:
— E´s horrivelmente perigosa... Foste má e impiedosa para commigo... Triumphaste... Ris, emquanto soffro... O que vais ouvir te exaltará; mas tambem te dará tristezas incoerciveis; é como uma gota de veneno, que não mata, mas que affecta a saude... — Ahi elle parou um pouco e poz-se a observal-a. — Deixaste-lhe a impressão de uma Hypatia ardente, cujos olhos possuem o reflexo mysterioso dos sóes de Alexandria; que, ao teu lado, experimentava a vertigem da arte e das ancias ignotas...
Ah! João, quanta magnificencia. — E o delirio, a alegria bravia não refreada pelo espirito, pela razão, irrompeu em Ladice, cobrindo-a, qual vês phosphorescente e vaporoso.
O sr. D´Almada, sério, presenciava essa transformação, a erupção, a subida, a violação: d´esse mal unico, dessa verdade, em o organismo de sua prima; dos cílios, das ondas dos cabellos, da brancura da pelle, da virgindade, fugia-lhe, escapava-lhe, envolvendo-a, condensando-se-lhe em as linhas, a vaidade, o amor, a juventude bulhenta, o orgulho, a sonoridade de emoções nascentes...
Essas palavras ficaram, permaneceram em o intimo de Ladice, como a essencia das leis naturaes, como a consistencia subjectiva das concepções, do destino, das theorias metaphysicas... Ellas eram... ella mesma.
Por vezes, á força de repetil-as, tornavam-se ôcas, incomprehensiveis, nullas, brancas...
Essas palavras eram a eternidade, a pausa dentro das evoluções do sêr e das paixões; o principio inabalavel das alterações, do augmento, da diminuição de suas grandezas; a ideia de seus sysmbolos e mutações...
A senhorinha de Santo Hilario sentia-se feliz; essas palavras abastavam-lhe a consciencia; presentemente, ella nada mais desejava da vida. A certeza de haver impressionado o Vate bem amado, haver-lhe arrancado a admiração e, quiçá o amor, davam-lhe a coragem necessaria para arrostar as vicissitudes que se lhe impunham.
Mas Ladice não podia guardar para si só essas palavras que cresciam, se avolumavam, se distendiam, se desdobravam incessantes, suffocando-a, avassallando-a... Era-lhe mistêr communical-as, transmittil-as a alguem, commental-as com outrem, pesar-lhes o valor, vestil-as de sons novos, ouvir-lhes o tilintar.
Essa mesma tarde, após o jantar, emquanto passeavam pelas aleas aromatizadas do jardim, ella contou á Dinah. Em o fazendo, porém, não conseguia velar, dominar a ebriez que lhe estagnava no senso. Ella tinha a impressão de ser rosa da Palestina, com as suas cento e cincoenta folhas em flammas, trespassadas de flexas, de rythmos, de lendas mortas...
Dinah d´Elvas, apesar de certa ingenuidade, sentia o paganismo, a peccaminosidade d´essa paixão, e, como virgem destinada ao Senhor, assustava-se, alarmava-se pela salvação de sua prima, quasi irmã. — “O amor que Deus abençôa é o amor calmo, tranquillo, commedido”, Ella mesma, quando rezava ante o Santissimo, seu coração se enternecia de amor para Jesus, mas de um amor que era uma especie de melodia sacra, um “Kirie”... — pensava ella,
Seu fervor redobrava para que Ladice recebesse, qual baptismo de pureza, as auras santas do Jardim das Oliveiras; para que seu exterior fosse menos flôr, menos claridade, menos estranho, severo, modesto, singelo, qual habito de freira; para que seus olhos perdessem o calor do estio, tivessem a paz da renuncia; para que sua paixão se divinizasse, e sua alma de vibrações e coloridos intensos se impregnasse de beatitudes, de escrupulos, de ancias espirituaes; para que seu orgulho a fulgisse de virtudes; para que ella rastejasse, florescesse, vicejasse aos pés de Christo, submissa, azul, sem arcanos, como a flôr da trapoeraba; para que seus desejos tivessem a candura das faixas das commungantes, dos lirios trabalhados pelas mãos santas de “Soror” Maria da Trindade, do convento onde estivera; para que ella perseverasse no bem, rija como a madeira verde, como a fé dos prophetas, o aço, q bronze, a torre de marfim das ladainhas; para que seu coração, em as noites de dezembro, quando o cheiro das drocenas é mais penetrante, não estalasse de amor pelo mundo; mas, que, transfigurada, humilhada, soberba de remorsos, se atirasse ao coração de Jesus, exclamando, como nos Psalmos:—“Levantai-me para vós. Sou em vossa presença como uma terra sem agua !...”
Emquanto a alma de Ladice se zurzia de ascendencias lyricas, emquanto ella atravessava as horas, os dias, ligando-os como se fôra a necessidade radiosa, potente, magnifica do sol, o dr. Francisco Everardo de Assis resolvia duvidas e divergencias que surgiam, apesar de sua vontade. À confissão da senhorinha de Santo Hilario sobre sua paixão e a affirmação de nunca mais ter outra igual, torturavam-n´o —“O amor será como a generosidade, que só dá e nada recebe ?—inquiria elle a si proprio, temendo ir além, tentando parar a reflexão. — Será elle um sentimento que para ser, pairar, peça outros nervos, outras caricias, contemplações, pupillas extacticas, membros estarrecidos, mãos passionaes? A fé para persistir reclama o exemplo dos martyres, o crucifixo, o estimulo da confissão, a palavra convincente do prégador, o Calvario... Mas tambem, quando o amor é imnmenso, nada pede; é prodigo, é vendado, é perdulario... Oh! ella conseguirá tudo de mim” — concluiu elle, convencido, embora impotente para apagar a multidão de fórmas, de figuras que lhe enxameavam na mente scenas vindouras e inevitaveis. — Ladice formosa e fria, olhares dolorosos e vehementes; ancias invisiveis nos seus labios por outros labios; busca infrene de sem senso por outro senso, encontro atordoante, paixão, fuga, morte... Suicidio, tragedias só tragedias... Mas seu optimismo triumphava, sua dôr esvahia-se. O dr. Assis appellava para a religião de Ladice, os seus principios, a sua educação, a probabilidade de que ainda poderia amar; lembrava-se com orgulho de sua posição social, de sua fortuna, de seus dotes physicos e moraes...
“Seremos muito felizes—repetia elle, satisfeito. — Que importa que lhe possua apenas a amizade, se lhe terei o corpo maravilhoso, a intelligencia, os gestos estonteantes... Oh! aprisional-a em os braços, beijal-a, beijal-a a todo o instante... Seu proprio mal me será bemdito” — ajuntou elle, a delirar.
Nessa noite, o dr. Assis se apresentou em casa de Ladice para pedil-a em casamento.
Ao enfrentar a senhorinha de Santo Hilario, risonha, esguia, flammante, como um desejo agudo, elle sentiu-se perplexo, constrangido, cheio de acanhamento... Pela primeira vez, seus olhos fugiam dos olhos de Ladice, desviavam-se delles, não se animavam a se deter naquelles olhos, que pareciam misturar-se, unir-se, fundir-se, fazer uma só linha escura, brilhante, movediça...
Elle experimentava a sensação do suicida, quando prepara a arma fatidica; o arrepio de medo e de coragem, de destruição e de victoria; o desfallecimento, o estimulo dos velivolos, quando furam, atravessam, hombream o espaço, a tempestade, os raios...
Ladice se comprazia com observar um besouro, que voejava no redor das lampadas: olhava-o a subir, a descer, no afan tenaz de urdir linhas, arabescos, sem fórma, impalpaveis, intangiveis, como as ideias abstractas, como os dictames do porvir,
— Recorda-se de me haver dito, a ultima vez que nos vimos, senhorinha de Santo Hilario: — “Sou capaz da estima, da amizade sufficiente para a vida a dois?” — Ladice acenou ligeiramente com a cabeça. — Desejaria saber se essa phrase, que me trouxe esperanças e alegrias — continuou elle — provém da piedade ou do coração, de sua sinceridade, emfim...
— Do coração... De tudo que ha de bom em mim — respondeu ella, mansa.
— Seu coraçãozinho é muito difficil de se obter?
— Não sei...
— Com certeza, é inaccesso; ou, então, requer heroismo, lutas, para deixar-se possuir?...
— Depende, doutor; um sorriso, um olhar, uma supplica muda e elle se dá inteiro... Emquanto riquezas, estrepitos de intelligencia, abnegações o não terão, se o amor está ausente...
A dubiedade dessas palavras o amorteceu, embora o enthusiasmasse.
—— Confirma-se o meu juizo sobre a sua personalidade: — E´ uma amorosa, uma sentimental. Como isso é raro em os dias de hoje. De ordinario, as moças só querem dinheiro, luxo, apparencias vistosas. São esses traços extraordinarios que me prendem á senhora, que me fazem amal-a profundamente... Oh! não é surpresa confessal-o... Amo-a, desde o dia em que a vi no baile... Tenho vivido de suas palavras, de seu perfil, de sua belleza... Deponho-lhe aos pés minha vida, meu sêr. Acceita-o?
Em o intimo de Ladice todas as mentiras, todas as sombras, todos os esforços, todo o azinhavre dourado, todas as vontades falsas, se despedaçaram, se sumiram, se apagaram, deixando despida, luzidia, potente, robusta — a verdade — o seu amor inveterado a Theophilo... Era preciso, porém, reagir, obedecer, obliterar-se, ceder, florir consciencias imperantes... Com o coração sem sangue, sem palpitações, pallida, quasi morta, balbuciou um sim imbelle...
Entre elle e ella, Theophilo surgia...
O dr. Assis tomava por emoção o que era um sacrificio, uma ruptura...
Segurando-lhe as mãos, beijando-as lentamente, disse :
— Oh! que ventura indizivel vela sempre ao meu lado, chamal-a minha. Ser-me-á flor viva, perfume dos dias, a dona do meu corpo e da minha alma! Ah! como a vida me é dadivosa! — exclamou elle, fitando em Ladice olhos que ora lampejavam, ora eram vidrados, sem raios, sem luz...
— O quanto é mesquinho o meu sentimento comparado com o seu... Terá em retorno apenas a minha amizade, não lhe devo esconder; seria uma mystificação. Minha consciencia opina para que eu o recuse... Não será feliz. — A voz de Ladice era feita do som de todas as dôres...
— Já pesei as consequencías... Quero-a minha assim mesmo sem amor...— interrompeu elle vivamente.
— Não se engane a meu respeito... Sou cheia de defeitos... Creio não possuir qualidade alguma que me recommende como futura mãe de familia... Adoro a paz, a solidão, as coisas estranhas... Sou extremamente independente. Gastarei os dias a ler, a estudar... Rio-me muito, digo tolices; mas tambem tenho melancolias impenetraveis, que me roem as proprias fontes da existencia; é-me um mal ingenito. Peço-lhe respeite a minha liberdade, como lhe respeitarei a sua... E, o momento, doutor, em que estiver enfarado de mim, quando me não amar mais, seja franco, não recorra a subterfugios, diga-m'o abertamente.
— Ah! d. Ladice, o amor não morre... O que me acaba de relatar são qualidades patricias de uma grande intellectualidade. Como me envaideço de possuir uma mulher tão esplendidamente dotada...
Ladice tentou mais uma vez dissuadil-o. Ella sentia frio em a alma, em os joelhos, em as mãos:
— O amor lhe está cegando a razão... Espere... reflicta...
Dir-se-ia que o recão de Ladice lhe multiplicava os sentimentos, lhe aprofundava as resoluções, o incitava a proseguir, a ir avante...
— E´ uma decisão final, amadurecida pela minha paixão, que é mais vehemente que tudo... Tendo-a, que me importam as vicissitudes, os infortunios, as asperezas da vida... — Em seu pensamento, Ladice aureolava-se de nobrezas, de fulgurações transcendentes...
Em um gesto de piedade e de compaixão, a senhorinba de Santo Hilario extendeu-lhe as mãos; seu senso, seu espirito, nesse instante solemne, elevaram-se ao céo, arderam, fugazes, de desejos santos, pediram o milagre a Deus.
Ao se despedir, o dr. Assis beijou-lhe a fronte.
Após havel-o acompanhado até á porta, Ladice voltou para a sala e sentou-se na mesma cadeira. Ella pedia silencio, solidão, ella mesma. A visita fôra curta, apenas de quinze minutos. Sua mãe, que se achava retida no quarto, devido a um resfriamento, saberia mais tarde...
A vida, o impeto, o enthusiasmo, o encantamento juvenil lhe haviam fugido: ella era cantico emmudecido, vertigem de estro em repouso, saudação de primavera, jubilo do azul, ascendente das graças, dos lírios, das imagens harmoniosas, na paz, no socego, na doce transição... Ella era estandarte abandonado pelo vento, pelos sons heroicos, pelo estridor da metralha, pela raiva da coragem; era arvore sem florescencia, despida, atra encarnando no verdor do campo, o riso de um demonio... As lagrimas corriam-lhe quentes, doridas, abundantes; seus pés, suas mãos, seus nervos torciam-se, voltavam-se; pelos cabellos passava-lhe a tristeza dos males pathologicos, das asas que pendem; seu coração entregava-se a todas as tragedias da imaginação... Ella sentiu até aos ossos, até ás cellulas, um arrepio de terror, um arrepio algido, um arrepio de morte, ao pronunciar as palavras: nunes mais. Parecia-lhe que o corvo de E. Poë sacudia ao redor della seus açacalados remigios seculares. Ladice estremeceu, teve medo, levantou-se.
Ao entrar em os aposentos de sua mãe, abriu os braços e exclamou, sorrindo: — “Consummatum est.” E ella creu escutar o estrondo amortecido das trevas, suffocando as horas luzentes de sol, quando um Deus expirou.
Os beijos, os abraços que recebia lembravam-lhe as flôres, as corôas, as escabiosas que se atiram nos mortos...
Ladice desconheceu o deslumbramento da vida da mulher — o noivado de amor — essa ponte de ouro, que liga um céo a outro céo, as flammas de um horizonte, as rosas roseas da aurora...O noivado entra no senso humano com frenesis, ardideza, lyrismo, febres, pausas de rythmo... E´ o desejo inexoravel, virente, immensuravel, para o triumpho, a luz, a eternidade... E´ o desejo morbido, ebrio, estonteante do beijo dado hoje e já do de amanhã... E´ o desejo rubente, convulsivo, dansante, de um sim a outro sim... E´ o desejo delirante, agudo, bravio, que liga uma certeza extincta a outra que renasce... E´ o desejo bulhento, azoinante, estrepitoso, de uma promessa que se realiza e de outra vindoura... E´ o desejo irritante, fatal, incisivo do Sol, da Lua, dos Astros pela Terra immensa... E´ o desejo elastico, subtil, serpentino, de crystal da esperança sobre outra esperança... E´ o desejo extremo, allucinado, doentio dos auges, que faz com que se diga: — “Toma-me, eu sou a tua abelha, a tua cigarra desassisada... E´ o desejo radioso, sévo, unico, toxico de uma sensibilidade estranha, quando maltratada, brandida, rota de vehemencias pela Paixão, pelo Amor, pela Unidade, onde se entalham o perfil, a alma, a louca efferverscencia... do Ente bem amado.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.