O Veado e a Moita
Perseguido pelos caçadores, um pobre veado escondeu-se bem quietinho dentro de cerrada moita. O
abrigo era seguro, e tanto que por ele passaram os cães
sem perceberem coisa nenhuma.
Salvou-se o veado; mas, ingrato e imprudente, logo que ouviu latir ao longe o perigo esqueceu o beneficio e pastou a benfeitora — comeu toda a folhagem que tão bem o escondera.
Fez e pagou.
Dias depois voltaram novamente os caçadores. O veado correu em procura da moita — mas a pobre moita, sem folhas, reduzida a varas, não pôde mais esconde-lo, e o triste animalzinho acabou estraçalhado pelos dentes dos cães impiedosos.
— Bravos, vóvó! aplaudiu Narizinho. A senhora botou nessa fabula duas belezas bem lindinhas.
— Quais, minha filha?
— Aquele “ouviu latir ao longe o perigo”, em vez de ouviu latir ao longe os cães; e aquele “pastou a benfeitora” em vez de pastou a moita. Se tia Nastacia estivesse aqui, dava á senhora uma cocada.
Dona Benta riu-se.
— Pois essas “belezinhas” são uma figura de retorica que os gramaticos xingam de sinédoque...
— Eu sei o que é isso; berrou Emilia. E’ “sem” com um pedaço de bodoque.
Ninguem entendeu. Emilia explicou:
— Sine quer dizer “sem”. Quando o visconde quer dizer “sem dia marcado”, ele diz “sine die”. E’ um latim. E “doque” é um pedaço de bodoque...
— Parece que é assim mas não é, Emilia, explicou dona Benta. Sinédoque é a synedoche dos gregos, e quer dizer compreensão.
— E que tem a compreensão com as duas belezinhas? quis saber a menina.
— Tem que falando em “perigo” em vez de cães, e em “benfeitora” em vez de moita, toda gente compreende a troca das palavras e fica a tal belezinha que você achou. A sinédoque troca a parte pelo todo, como quando dizemos “velas” em vez de “navios”; ou troca o genero pela especie, como quando dizemos “os mortais” em vez de “os homens”; ou troca uma coisa pela qualidade da coisa, como quando dizemos “perigo” em vez de “cães” e “benfeitora” em vez de “moita”.
— E para que serve isso? perguntou Narizinho.
— Para enfeitar o estilo.
— Mas a senhora mesma não disse que o estilo muito enfeitado, muito floreado, é feio?
— Sim. Quando é muito enfeitado fica feio e de mau gosto, mas se aparece discretamente enfeitado fica bem bonitinho. Se você vai á vila com uma flor no peito, fica linda como uma sinédoque. Mas se se enfeitar demais, fica apalhaçada e revela mau gosto. Tudo na vida depende da justa medida; nem mais, nem menos; antes menos do que mais.
— Então é o tal usar e não abusar, lembrou a menina.
— Isso mesmo. Discreção é isso.
Narizinho, que era uma menina muito discreta, compreendeu perfeitamente.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.