O Corvo e o Pavão

O pavão, de roda aberta em forma de leque, dizia com despreso ao corvo:

— Repare como sou belo! Que cauda, hein? Que cores, que maravilhosa plumagem! Sou das aves a mais formosa, a mais perfeita, não?

— Não ha duvida que você é um belo bicho, disse o corvo. Mas, perfeito? Alto lá!

— Quem quer criticar-me! Um bicho preto, capenga, desengraçado e, além disso, ave de mau agouro... Que falha você vê em mim, ó tição de penas?

O corvo respondeu:

— Noto que para abater o orgulho dos pavões a natureza lhes deu um par de patas que, faça-me o favor, envergonhariam até a um pobre diabo como eu...

O pavão, que nunca tinha reparado nos proprios pés, abaixou-se e contemplou-os longamente. E, desapontado, foi andando o seu caminho sem replicar coisa nenhuma.


Tinha razão o corvo: não ha beleza sem senão.



— Que quer dizer “senão”, vóvó?

— Aqui nesta frase quer dizer defeito.

— E por que senão é defeito?

— Porque o modo de botar um defeito nalguem ou nalguma coisa era sempre por meio do “senão” — e por fim essa palavra ficou sinonima de defeito. “Fulana seria muito bonitinha, senão fosse aquele nariz de coruja”. “Este doce estaria otimo, senão fosse estar doce demais” — e assim por diante.

— Mas é verdade, vóvó, que não ha mesmo beleza sem senão?

— A fabula diz que não ha e as fabulas sabem...

— São sabidissimas, sim! confirmou Emilia. E a dos filhos da coruja é a mais sabida de todas. Quem é que andou inventando as fabulas, dona Benta? Foram os animais mesmo?

Dona Benta riu-se.

— Não, Emilia. Quem inventou a fabula foi o povo e os escritores as foram aperfeiçoando. A sabedoria que ha nas fabulas é a mesma sabedoria do povo, adquirida á força de experiencias.

— Mas não haverá mesmo beleza sem senão, vóvó? insistiu a menina.

— Ha, sim, minha filha. Para mim, por exemplo, você é uma belezinha sem senão.

Emilia torceu o nariz. Depois prometeu escrever uma fabula com o titulo: “Os Netos da Coruja”.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.