Os dois Burrinhos
Muito lampeiros, dois burrinhos de tropa seguiam trotando pela estrada além. O da frente conduzia bruácas de ouro em pó; e o de trás, simples sacos de farelo. Embora burros da mesma igualha, não queria o primeiro que o segundo lhe caminhasse ao lado.
— Alto lá! dizia ele. Não se emparelhe comigo, que quem carrega ouro não é do mesmo naipe de quem conduz farelo. Guarde cinco passos de distancia e caminhe respeitoso como se fosse um pagem.
O burrinho do farelo submetia-se e lá trotava na traseira, de orelhas murchas, roendo-se de inveja do fidalgo.
De repente...
— Oah! oah!...
São ladrões da montanha que surgem de trás de um toco e agarram os burrinhos pelo cabresto.
Examinam primeiramente a carga do burro humilde e,
— Farelo! exclamam desapontados. O demo o leve! Vejamos se ha coisa de mais valor no da frente.
— Ouro, ouro! gritam, arregalando os olhos. E atiram-se ao saque.
Mas o burrinho resiste. Desfere coices e dispara pelo campo afóra. Os ladrões correm-lhe atrás, cercam-no, e dão-lhe em cima, de pau e pedra. Afinal saqueiam-no.
Terminada a festa, o burrinho do ouro, mais morto que vivo e tão surrado que nem suster-se em pé podia, reclama auxilio do outro, que muito fresco da vida tosava o capim sossegadamente.
— Socorro, amigo! Venha acudir-me, que estou descadeirado...
O burrinho do farelo respondeu zombeteiramente:
— Mas poderei por acaso aproximar-me de Vossa Excelencia?
— Como não? Minha fidalguia estava toda dentro da bruáca e lá se foi nas mãos daqueles patifes. Sem as bruácas de ouro no lombo, sou uma pobre besta igual a você...
— Bem sei. Você é como certos grandes homens do mundo que só valem pelo cargo que ocupam. No fundo, simples bestas de carga, eu, tu, eles...
E ajudou-o a regressar para casa, decorando, para uso proprio, a lição que ardia no lombo do vaidoso.
— Eis aqui, meus filhos, outra fabula bem boa, disse dona Benta. O mundo está cheio de orgulhosos deste naipe...
— Que é naipe? quis saber Narizinho.
— E’ um termo usado para as cartas de jogar. Ha quatro naipes — ouro, espadas, copas e paus.
— Então naipe quer dizer “qualidade”, “tipo”? Do mesmo naipe quer dizer do mesmo tipo?
— Exatamente.
— E igualha, vóvó?
— E’ sinonimo de naipe.
— Então por que a senhora não diz logo “qualidade” em vez de “naipe” e “igualha”?
— Para variar, minha filha. Estou contando estas fabulas em estilo literario, e uma das qualidades do estilo literario é a variedade.
Pedrinho observou que o coronel Teodorico fizera tal qual o burrinho do ouro. Quando se encheu de dinheiro, arrotou grandeza; mas depois que perdeu tudo nos maus negocios, ficou de orelhas murchas e convencido de que era realmente uma perfeita cavalgadura.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.