Quem conhecesse o aspecto de uma larangeira esgarçada pela traquinagem do rapazio garoto, faria idéa da physionomia de Fantina ; mas como a nhé-nhá cada vez peorava mais, muitos tomaram a brusca mudança do seu natural, como tendo causa nos sentimentos pela partida de Daniel e nos encommodos da senhora.

Rita que fòra a denunciante de Roza levou ao conhecimento de D. Luzia os ultimos acontecimentos que presenceára. D. Luzia por um supremo esforço ergue-se do leito com os impetos desgrenhados de uma bacchante. Seus olhos baços tinham lampejos sinistros, onde se reverberavam dois grandes sen timentos : o ciume que dá energias desconhecidas, e o desespero da pessoa do marido.

Suava frio; tinha a côr da nata do leite corrupto ; seus dentes rangiam como um instrumento que acompanhasse as tremuras do corpo cadaverico. Chamou Rita e mais outras e mandou-as conduzir Fantina ao tear. Despida e amarrada ás argolas de um caixão, Fantina mostrava serenamente as carnes que ainda conservavam os fogos da puberdade. Das pernas cobertas de um feltrezito avelludado e das cheias nadegas, voavam fragmentos de carne como pedacinhos de algodão que caem das bordas da corda. Gemia só, por que tinha a bocca tapada com um lenço. E quando pelos movimentos convulsivos do corpo, que parecia fugir á proporção que a garra do couro descia, o lenço deixava aberto um canto da bocca, sahia este grito entrecortado :

— Nhé-nhá, eu sou innocente !

A senhora encostada á parede, dizia que antes tivesse feito á Fantina o que sua avó fizera a uma escrava que incorreu no mesmo crime. Essa escrava, dizia ella, foi amarrada pelos pés aos galhos de uma arvore, ficando com a cabeça no chão; depois despejaram-se três ou quatro alqueires de milho ao redor, e soltaram a porcada que estava presa a cinco dias. Em menos de um quarto de hora só se via o corpo da cintura para as pernas.

Emquanto esteve ao alcance do focinho dos animaes, viam-se os entestinos puchados como um fio de linha de um novello.

Fantina esteve de oratório oito dias. Esperavam todas as tardes quando Frederico sahia a passeio e reproduziam as scenas da escravidão. Depois Frederico soube e quiz salva-la. Abriu contra a vontade de D. Luzia a porta do tear e cortou as cordas que apertavam os pulsos sulcados por uma ferida azulada.

Martyrisada, sem se alimentar, com as faculdades mentaes meio alteradas, Fantina apresentava o aspecto de umu machina, Não teve uma palavra para Frederico quando elle acabando de cortar as cordas deu-lhe um beijo nas faces pallidas e macilentas. D. Luzia teve impetos ferinos ; e revolvendo-se no leito, parecia um cadaver rompendo com a mão mirrada o sudario apodrecido pela humidade da sepultura. Frederico não tornou a entrar no quarto da enferma. D. Luzia, meia hora antes de morrer, vendo Fantina perto do leito,inda ponde quebrar-lhe a cabeça com um vidro de bromureto de potassium.

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O Zé de Deus, depois de acompanhar o enterro da comadre, entrou na taverna do Roberto e disse :

— Foi a minha bôa comadre para o outro mundo ; e quem a mandou fui o Frederico. Me despresou. Morreu, e elle agora vae botar o Ingaseiro fôra. O Roberto com um olhar desconsolado e triste, e cora um filho nú nos braços, ouvia esta historia.

Frederico sosinho na fazenda, viuvo, senhor de grandes cabedaes, rumininava os dias saborosamente.

O estado de Fantina era triste. Aquelle semblante onde brilharam ardentemente todos os fogos da mocidade, estava velho e cavado pela paixão Nas vesperas da maternidade, Fantina caiu gravemente enferma. Frederico não quiz vê-la morrer sob suas vistas. Libertou-a e mandou um escravo leva-la para residir á cidade.

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