Fausto (traduzido por Agostinho de Ornelas)/IX
Por quanto amor na terra achou desprezo !
Pelo fogo do inferno! Quem me dera
Cousa peor que praguejar podesse.
Que tens tu? que te morde tanto ao vivo?
Uma carranca assim jamais hei visto.
Aos diabos me dera neste instante
Se diabo não fosse.
Na cabeça
Alguma cousa tens desarranjada ?
Fica-te bem berrar como um possesso.
Ora pensa. O ad'reço que trouxera
P'ra a Margarida, um padre arrebatou-o!.
Mostra as joias á mãe, que occulto medo
Sentiu logo n'alma; a tal senhora
Tem olfacto mui fino, no seu livro
De orações o nariz tem sempre, e cheira
Os trastes todos para ver se santos
Ou profanos serão. As joiasinhas
Logo viu que não eram benzidas.
Minha filha, exclamou— bens mal ganhados
São da alma grilhões, da paz imigos,
Á mãe de Deus as joias consagremos,
Que com manná celeste ha de pagar-nos.
A Margaridasinha fez careta,
E comsigo pensou: cavallo é dado,
E um impio não era certamente
Quem com tal arte soube aqui trazel-o.
A mãe mandou chamar um padre; e este
Apenas soube o caso, regalou-se
De ver as prendas e fallou dest'arte:
«Pensastes muito bem, com muito acerto,
Quem se sabe vencer é quem mais lucra.
Gosa a Egreja de estomago excellente,
Pois que terras inteiras devorando
Não teve indigestões ; somente a Egreja
Tem o poder, minhas amadas filhas,
De digerir riquezas mal ganhadas.»
Isso é uso geral, o mesmo fazem
Os Reis e os Judeus.
E dito isto,
Bracelete, collar, anneis e brincos,
Tudo levou como se fossem nada;
Não auradeceu mais que se lhe dessem
Uma cesta de nozes, prometteu-lhes -
Recompensas celestes, — e deixou-as
Profundissimamente edificadas.
E Margarida ?
Vive em dessocego,
Não sabendo que faça nem que queira,
Noite e dia pensando no ad'reço,
E muito mais em quem lá foi levar-lh'o.
Subel-a magoada desconsola-me,
Outro adreço lhe arranja promplamente,
Que não era o primeiro gran riqueza.
Pois não! para o senhor tudo é brinquedo.
E anda, faze tudo o que desejo,
Com a visinha mette-te, não sejas
Diabo de agua doce; eia, outras prendas
Para ella me traze.
Hei de fazel-o
Do coração, meu generoso amo.
(Sáe Fausto.)
Um tonto assim devéras namorado,
Sol, estrellas e lua quei:naria,
Para um fogo de vistas dar á amante.