Fausto (traduzido por Agostinho de Ornelas)/X
Perdoe nosso Senhor a meu marido,
Para mim não foi bom; por esse mundo
Lá se foi divertir, e na miseria,
Sosinha me deixou. Nunca pesada
Lhe fui, sabe-o Deus, sempre lhe tive
Muito amor.
(Chora.)
Pode ser que já morresse...
Oh dor! se a certidão tivesse ao menos.
Senhora Martha.
Que é, Margaridinha ?
Mal me tenho nas pernas, outra caixa
De pau de ebano achei no meu armario,
E magnificas joias, em riqueza
Muito além das primeiras.
Não no diga
À menina á maman, que as mette logo
Nas mãos do confessor.
Veja lá, olhe.
Oh bemaventurada creatura !
Mas com ellas saír não posso nunca,
Nem á missa leval-as.
A miudo
Vem ter comigo e põe as tuas prendas
Aqui ás escondidas, do espelho
Por deante passeia uma horasinha ;
Assim sempre teremos algum gosto.
Havendo occasião, em qualquer festa,
Vai a gente mostrando-as pouco e pouco:
Põôes primeiro o collar, depois arriscas
De perolas os brincos; não repara
A mãe ou lhe contamos uma historia.
Quem seria que trouxe as duas caixas?
Assim com cousas boas não succede.
(Batem.)
Jesus! se é minha mãe.
Um extrangeiro.
Entre.
Vir eu assim tão sem cer'monia
Queiram estas senhoras perdoar-me.
Dona Martha Schwerdtlein é quem procuro.
Sou eu. E o senhor o que deseja?
Já a conheço agora, estou contente;
Tendes hoje visitas mui distinctas,
A liberdade que tomei perdoem-me.
Voltarei esta tarde.
Pensa, filha,
Que singular engano, o senhor julga
Que és uma fidalga!
Rapariga
Bem pobre sou. Jesus, muita bondade
Tem o senhor, não são as joias minhas.
Não são somente as joias, um ar tendes,
Um olhar tão altivo; quanto estimo
Poder me demorar.
O que procura,
Se me faz o favor.
Oxalá fosse
Mais alegre a noticia que vou dar-lhe,
Não me queira por isso mal, lhe peço.
Seu marido morreu e recommenda-se.
O meu homem morreu. Ai que desgraça!
Meu marido morreu, ai que desmaio.
Minha rica senhora não se afflija.
A miseranda historia ouvi agora.
Por isso em minha vida amar não quero,
Matar-me-hia a perda.
Não se encontra
Alegria sem dor, dor sem delicia.
Contae-nos pois o fim da sua vida.
Jaz sepultado em Padua; logo Junto
De Santo Antonio, em terra consagrada,
Frio leito de seu repouso eterno.
E não tendes mais nada que trazer-me ?
Sim, um pedido bem pesado e grave,
Que lhe mandeis dizer trezentas missas
Por alma, e em quanto ao mais, senhora,
As minhas algibeiras 'stam vasias.
O que? Nem um presente, um pobre enfeite,
O que guarda no sacco o jornaleiro,
Como lembrança, padecendo fome,
Chegando a mendigar para poupal-o.
Minha senhora, tenho muita pena;
Mas não desbaratou elle o dinheiro.
Tambem se arrependeu dos seus peccados
E mais inda chorou sua desgraça.
Como os homens, meu Deus, são desditosos.
Hei de rezar por elle muito requiem.
Bem mer'cieis achar um casamento,
Sois tão boa menina.
Isso não pode
Ser ainda.
Pois se não for marido
Que seja um namorado. Dos maiores
Dons do ceu ha de ser, tão linda cousa
Pelo braço levar.
Não é costume
Cá na terra.
Costume ou não costume
Sempre pode fazer-se.
Ide contando.
Do seu leito de morte estive junto;
Era melhor que esterco, palha podre:
Mas como bom christão morreu, dizendo
Que mer'cera peor. Como me devo
Aborrecer, dizia, bem do fundo
Do coração, por ter mulher deixado
E meu emprego | Ai, Deus, que só a lembrança
Me mata. Se ella ao menos nesta vida
Me perdoasse.
Eu, perdoei-lhe ha muito,
Marido meu amado.
Mas a culpa
Foi della, Deus o sabe, mais que minha.
Mentira! Pois ousou mentir á beira
Da sepultura ?
Estava delirando
Em seu extremo arranco, se de engano
Eu victima não sou. Não tinha tempo
Para me divertir, dizia elle,
Era mister primeiro fazer filhos
E ganhar-lhes depois pão, na mais lata
Accepção da palavra; e nem podia
O meu quinhão comer. tranquillamente.
Assim do meu amor pôde esquecer-se,
E do que lhe aturava noite e dia?
Pelo contrario, tinha-o bem presente ;
Quando saí de Malta, accrescentava,
Por filhos e mulher orei devoto
E foi-me o ceu propicio, que o navio,
Em que ja, aprezou baixel de turcos,
Do sultão com o thesouro carregado.
Dessa vez boa paga ao valor coube,
E tambem recebi, como era justo,
Della uma parte muito bem medida.
Talvez o enterrasse. Onde seria?
Onde o terão agora os quatro ventos!
Quando inda extranho em Napoles andava,
Delle se namorou moça formosa
E de fé e de amor lhe deu taes provas,
Que no leito da morte inda as sentia.
Infame ! roubador dos proprios filhos!
Nem miserias nem faltas lhe poderam
Atalhar o viver escandaloso.
Vêde lá que o pagou elle co'a vida.
Se eu estivesse agora em Vosso caso,
O anno de decencia punha lucto,
E buscava entretanto outro marido.
Ah meu Deus, como era este primeiro
Facil outro não acho neste mundo,
Não podia existir melhor doidinho.
Só tinha amor demais á vida errante
E a mulheres alheias, e á bebida
E ao jogo de azar, que Deus maldiga.
Vamos lá; ia a cousa á maravilha
Se pouco mais ou menos outro tanto
Vos perdoava elle. Aqui vos juro;
Com essa condição, de mui bom grado
Trocária comvosco annel de noivo.
Quer vossa senhoria divertir-se.
Vou-me safando a tempo, capaz era
De pegar na palavra té ao Diabo.
(A Margarida.)
O vosso coração como se sente ?
O que quer o senhor dizer com isso?
Tu innocente, santa creatura!
Adeus, senhoras.
Guarde-o Deus.
Dizei-me,
Bem quizera arranjar um áttestado
De como, quando e onde meu marido
Morreu e se enterrou. Fui sempre amiga
Da boa ordem, quero na gazeta
Annuncio do seu obito.
Senhora,
De duas testemunhas pela boca
A verdade se prová em toda a paíte.
Tenho comigo um fino companheiro
Que 'stá prompto a jurar. Virá comigo.
Pois fazei isso, sim?
Mas tambem ha de
Esta menina vir? Um bello moço,
Tem viajado muito e é mui polido
Com as damas.
Terei tanta vergonha
Desse senhor.
De nenhum Rei da terra.
No meu jardim, alli detraz da casa,
Estaremos à noite á vossa espera.