Fausto (traduzido por Agostinho de Ornelas)/V
Ninguem ri? ninguem bebe? Hei de ensinar-vos
A não 'star de carranca. Acho-vos hoje
Mais molles do que papas, quando sempre
Solis mais vivos que azougue.
A culpa é tua;
Porcaria não fazes nem asneira.
Pois juntas hi as tens.
Que grande porco !
Pediste-m'o tu mesmo, obedeci-te.
Fóra! p'ra a rua quem armar pendencia !
Berrae, bebei, cantae quanto quizerdes !
Vamos — hop, oh, la, oh!
Ai, quem m'acode!
Algodão, que me partem os ouvidos.
Quando resòa o tecto é que se sente
Da voz de baixo a força.
Mui bem dito!
Quem d'isto não gostar, ponha-se fóra.
Ah! tara lara la!
Ah! tara lara la!
As guelas já temos afinadas.
O sacro romano imperio
Como pode inda durar?
Que pessima cantiga! Pfui ! politica,
Cantiga de má casta! Dae vós graças
A Deus todos os dias, de não terdes
De curar do romano sacro imperio.
Em quanto a mim, de:mui feliz me prézo,
Por não ser chanceller, nem mesmo Cesar.
Mas comtudo de chefe precisamos,
Escolhamos um Papa. É já sabido
Que qualidade da eleição decide
E a tal dignidade eleva o homem.
Vôa vôa, rouxinol,
Minha amada vae saudar
Nada de saudações, não quero disso.
Hei de a amante saudar, tu não m'o tolhes.
Abre à noitinha o ferrolho,
Abre que espera o amado,
De manhã vae-o fechar
Canta lá, canta, a teu contento a louva,
Hei de rir-me de ti ainda algum dia.
Comigo foi sem fé, sel-o -ha comtigo.
Por amante lhe seja dado um bruxo,
Com quem na encruzilhada folgue à noite;
Um bode velho; do Blocksberg á volta,
Lhe berre boas noites galopando.
Homem de carne e osso é pra a menina,
Muito mais que merece. As serenatas
Que lhe hei de dar, são pedras nas janellas.
Escutar, escutar. Obedecei-me |
Haveis de confessar que tenho modos;
Gente temos aqui apaixonada,
E segundo o costume, é mister dar-lhes .
Serenata nocturna. Attenção peço,
Ahi vai uma cantiga das mais novas,
Repeti bem de rijo o estribilho.
N'uma dispensa houve um rato
Que só manteiga comia,
Uma pansinha creára
Que nem Luthero o vencia.
A cosinheira veneno
No buraco lhe foi pôr;
Em taes apertos se viu
Como quem arde d'amor.
Como quem arde d'amor'!
Dentro e fóra corre doido,
Infinda agua bebia,
A casa toda roendo,
Não mitigava a agonia,
Dava pulos desesp'rados,
Tanto o apertava a dor,
De cansaço está rendido
Como quem arde de amor.
Como quem arde de amor !
A final agoniado
Apparece á luz do dia,
Na cosinha anda a correr
E no lar já s'estendia.
Estrebuchava o coitado,
E vendo-o no estertor,
Ria a cosinheira. O pobre
Expirou como d'amor.
Expirou como d'amor!
Como os brutos se riem! É bonito
Ir veneno deitar aos pobres ratos.
São protegidos teus, pelo que vejo.
Olha o pansa pellado, a dor commove-o;
Na ratazana inchada vê o retrato.
Em primeiro logar mostrar-te devo
Alegre companhia, p'ra que vejas
Como é facil viver. P'ra esta gente
Todo o dia é de festa. Com juizo
Mui pouco, mas com muita liberdade,
Num circulo acanhado se divertem,
Quaes gatinhos correndo atraz do rabo.
Se de dor de cabeça se não queixam
E está prompto a fiar o Taberneiro,
Contentes vivem, de cuidados livres.
Da jornada chegaram neste instante,
Logo se vê de seus extranhos modos ;
Não haverá uma hora que aqui andam.
Dizes bem, na verdade, que este Leipzig
É um Paris pequeno, apura a gente.
Quete parecem estes forasteiros ?
Deixa-me cá, com um copinho cheio
Fal-os-hei, sem maior difficuldade,
Dar co'a lingua nos dentes. Dous fidalgos
Parecem elles ser, modos altivos
E desdenhosos teem.
São uns valdevinos
Sem duvida, até aposto.
Talvez sejam.
Attenção, que os vou metter a bulha.
O demo não suspeitam elles nunca,
Nem sequer quando a mão já vai deitar-lhes.
Bons dias, meus senhores.
Obrigado.
Olha, aquelle manqueja d'uma perna,
Daes licença que ahi vamos sentar-nos?
Em vez de boa pinga que não temos,
Gozaremos da bella companhia.
Par'ceis estar mui mal acostumado.
De Rippach a partida já foi tarde,
Ainda com o João ceastes antes?
Hoje passámos sempre. Conversando
Com elle o outro dia, muitas cousas
Nos contou de seus primos, e a todos
Manda ternas saudades.
Ora chucha,
Elle sabe da cousa.
É um fino azougue.
Pois não !
espera lá que já o apanho.
Se me não engano ouvi
Bellas vozes cantar córos;
Faz o canto effeito aqui,
Estes muros são sonoros.
Talvez que vós sejaes cantor eximio?
Nada, sou fraco, mas adoro o canto.
Dae-nos uma cantiga.
Mil daria.
Cousa que seja nova.
Ha pouco tempo
Que nos tornámos da famosa Hespanha,
Do vinho e das canções classica terra.
Houve um Rei que a uma pulga
Grande amizade tomára,
Ouvistes? a uma pulga, compr'endestes ?
É uma pulga p'ra mim bemvindo hospede.
Houve um rei que a uma pulga
Grande amizade tomára,
Queria-lhe mais que a seu filho
Que com tanto amor creára.
Mandou chamar alfayates,
Alfayates ahi estão —
Tomae medida ao fidalgo,
Para pellote e calção.
E não vos esqueçaes de aos alfayates
Encarecer immenso, que cuidado
Com a medida tomem, e se estimam
A cabeça, não faça o fato prégas.
De ricas sedas, velludos
Eil-a toda ataviada,
Duzias de fitas no peito
E ema cruz encarnada.
Nomeou-a El-Rey ministro,
Grande commenda lhe dava,
E seus irmãos e irmans
Á sua côrte chamava.
Os cortezãos e as damas
Andavam mui compungidos,
Da Rainha ás açafatas
Todos eram bem mordidos ;
E não podiam matal-as
E nem coçar-se sequer.
Nós cá é logo esmagal-a
A que morder-nos vier.
Nós cá é logo esmagal-a
A que morder-nos vier.
Bravo, bravissimo, agradou a cantiga.
Assim ás pulgas todas aconteça.
Pegae-lhes com dous dedos bem de leve.
E viva a liberdade, viva o vinho!
De bom grado bebêra á liberdade,
Se o vinho que tendes melhor fosse.
Não torneis a dizer-nos cousas dessas.
Tenho medo que grite o Taberneiro;
Senão aos nobres hospedes daria
Vinho da nossa adega.
Venha sempre,
Que tomo sobre mim as consequencias.
Dae p'ra cá boa pinga, e cantaremos
O vosso panegyrico; mas nada
De mostrinhas pequenas, quando provo
Quero a boca bem cheia.
São do Rheno,
Segundo desconfio.
Uma verruma!
Que fareis vós com ella? Acaso tendes
Os toneis alli fóra ao pé da porta?
Ali 'stá um cabaz com ferramenta.
Agora é dizer lá que vinho escolhe.
Como? pois tendes tantas qualidades ?
Podereis escolher á vossa guisa.
Já tu lambes os beiços.
Bem, se posso.
Á vontade escolher, vinho do Rheno
Desejo, pois prefiro os dons da patria.
Venha um pouco de cera para as rolhas.
Ora ! são invenções de saltimbancos.
E vós?
Quero Champagne bem espumante.
Nem sempre se dispensa o que é de fóra,
'Stá ás vezes o que é bom de nós tão longe.
Allemão ás direitas a francezes
Nem pode ver, mas os seus vinhos bebe-os.
Não sou grande amador de vinho secco,
Dae-me bebida bem assucarada.
Vae manar-vos Tokai deste buraco.
Olhae-me bem p'ra cara, meus senhores,
Estaes-vos divertindo á nossa custa ?
Com hospedes tão nobres! quem ousára ?
Arriscado seria. Eia, depressa!
Com que vinho quereis vós ser servido ?
Seja qual for. Mas basta de perguntas.
Cachos produz o bacello,
Longos cornos tem o bode;
Vinho é succo, pau a cepa:
Vinho dar a meza pode.
Da natura o fundo olhae,
É milagre, acreditae.
Agora destapae, beber podeis.
Que bella fonte corre.
Tomae tento,
Não deixeis entornar nem um só pingo.
Somos mesmo uns cannibaes,
Uns porcos, uns animaes!
O povo é livre. Vè como elle folga.
Queria ir-me d'aqui.
Antes repara !
A bestialidade e vis instinctos
Em todo o seu primor vão revelar-se.
(Bebe sem precaução, o vinho entorna-se e inflamma-se)
Ai fogo! Aqui d'El-Rey, arde o inferno.
(Fallando d chamma)
Elemento querido, tranquillisa-te.
(Aos outros)
Por esta vez só foi do Purgatorio
Um pinguinho de fogo.
O que foi isto?
Esp'rae que o pagaes caro. Quer par'cer-me
Que não sabeis quem somos.
Ora deixa,
Fica para outra vez.
Melhor seria
Pedir-lhes que se fossem socegados.
O que, senhor! levaes o desaforo
A vir fazer aqui vossos bruxêdos!
Quietinho, borrachão.
Páo de vassoura,
Pois inda em cima atreves-te a insultar-nos ?
Espera que já chovem bordoadas.
Ai que me queimo, ai!
É feiticeiro,
Pode qualquer matal-o. A elle, a elle!
(Tiram as facas e correm sobre Mephistopheles)
Falso ver, falso fallar
Mudam sentido e logar,
Estae aqui e acolá.
Onde estou eu? que terra tão bonita!
São vinhas, não m'engano.
Aqui 'stão cachos.
Debaixo destas parras verdejantes,
Olhae que cepa, olhae que bellas uvas !
Desvenda-lhes os olhos, erro, vejam
Como brinca o demonio.
Que foi isto?
Como ?
Pois era o teu nariz?
Cá tenho
O teu na minha mão!
Sinto um abalo
Por todo o corpo, uma cadeira, eu cáio!
Nada, dizei-me ao menos, que foi isto?
Que é feito do tratante, se o pilho
Não m'escapa com vida.
Pela porta,
Num tonel a cavallo, o vi safar-se.
Tenho nos pés um pezo como chumbo.
Se ao menos o vinho ainda corresse !
Tudo foi illusão, mentira, engano.
Eu sempre julgo que bebi bom vinho.
E como foi aquillo das parreiras ?
Diga-me agora alguem, — não ha milagres!