Fausto (traduzido por Agostinho de Ornelas)/XIV
Espirito sublime, concedeste
Quanto pedir-te ousei. Não foi debalde
Que em fogo para mim volveste a face.
Para reino a soberba natureza
Me has dado, e poder para sentil-a
E gosar-lhe as bellezas. Não permittes
Que frias vistas só lhe lance attonito,
Deixas-me penetrar-lhe o intimo seio
Como um peito de amigo. Ante meus olhos
Dos viventes desdobras a cadêa,
E no bosque frondoso e fundas aguas,
Na vastidão do ar, irmãos me mostras.
E quando na floresta a tempestade
Ronca e brama, o pinheiro agigantado
Baqueando destroça hastes e troncos
Em torno, e ao fragor de sua queda
Com cavo e rouco som retumba o monte;
Então me guias a escondida gruta
E de meu ser o intimo descobres-me;
Do proprio peito meu mysteriosas
Profundas maravilhas se revelam.
E pura, serenando tudo em torno,
A meus olhos se eleva a meiga lua,
E das rochas a prumo e moitas humidas,
Surgem-me do passado argenteos vultos,
Que da contemplação vem mitigar-me
O austero gosar, enlevo ardente.
Oh que nada completo é dado ao homem,
Ora conheço eu. Esta delicia,
Que dos Deuses tão proximo me leva,
Para agual-a me deste o companheiro,
Que dispensar não posso, embora frio
Com insolente mofa ante mim mesmo
A abaixar-me se attreva, e só com um chasco,
Teus encantados dons em nada torne.
Accende no meu peito um fogo vivo
Que aquella imagem linda só cubiça,
E assim do desejar caio no goso,
E quando góso, desejar quizera!
De levar essa vida não 'staes farto?
Como podeis sustel-a tanto tempo!
Não é máo uma vez experimental-o,
Mas passando depois a cousa nova.
Oxalá que afazer maior tivesses,
Que vir atormentar-me num tal dia.
Como, como? deixava-te quieto;
Mas não ousas pedir-m'o seriamente.
Em companheiro tal, grosseiro e doido,
Perdera muito pouco. Em todo o dia
Um instante não tenho. O que lhe agrada
Ou se deve evitar, ninguem o póde
Ler na cara ao senhor.
É muito justo
O que estás a dizer. Agradecer-te
Devo inda em cima quando me apoquentas.
Pobre filho da terra, de que modo
Viverias sem mim? Dos disparates
De teu imaginar, por muito tempo
Curar-te soube, e se eu não fôra, ha muito'
Com a vida terias acabado.
Nas fendas dos rochedos, nas cavernas
Porque passas a vida como a c'ruja?
Que alimento sorves, como o Sapo,
Das pedreiras, do musgo humedecido?
Passatempo celeste, primoroso!
Inda tens o doutor dentro do corpo.
Se soubesses que vida e nova força
O vaguear no ermo em mim suscita,
Se podesses de leve suspeital-o;
És demonio de mais p'ra me deixares
Gosar tanta delicia.
É na verdade
Mais que humano prazer, sobr'as montanhas,
Ao relento da noite repousando,
Com a mente abranger em puro extasis
Toda a terra e os ceus, infatuando-se
Até julgar-se Deus, e com presago
Ardor ir revolver do mundo o seio;
Dos seis dias a Obra ter no peito,
Saborear com força altiva, energica
Não sei o que, fundir-se em doce rapto
Com este immenso todo, despojada
Toda a terrena essencia, e a sublime
Intuição —
Não posso dizer como? —
Terminar a final.
Mettes-me nojo.
Desagrada-vos isto; de dizer-me
Que causo nojo tendes o direito.
A pudicos ouvidos não se ousa
Dizer, o que de modo algum dispensam
Pudicos corações. Em fim, licença
Lhe dou de a si mentir algumas vezes,
Que não dura isso muito. Aborrecido
Já começas a estar, e dentro em pouco
Demencia, ancia ou terror te dilaceraim.
Basta já disso! Espera a tua amante,
Tudo no mundo achando escuro e triste,
Não lhe sáis do sentido, doidamente
Te ama. No principio, qual torrente
Engrossada das neves derretidas,
Trasbordou teu amor; todo no seio
Lh'o vasaste, c agora o teu regato
Secco de novo está. Lá me parece
Que em vez de reinar nos vastos bosques,
O illustre doutor melhor faria,
Agradecendo à pobre da creança,
Um tão sincero amor. Moroso o tempo
E pesado lhe é; põe-se á janella,
Vê por cima dos muros da cidade
Passar as brancas nuvens. «Ah, se eu fosse
Um leve passarinho!» eis a cantiga
Que repete de dia, á noite canta.
Alegre ás vezes 'stá, muitas mais triste,
Chorosa ou na apparencia socegada,
Mas namorada sempre.
Serpe, serpe!
Oxalá que te apanhe.
Indigno, vai-te!
Nessa mulher tão bella não me falles,
A cubiça de seu mimoso corpo
Não me tragas á mente desvairada!
Que ha de ser então? Julga-te ella
Fugido já e quasi o és deveras.
Perto estou della, e que estivesse longe.
Esquecel-a não posso nem deixal-a;
Do sacramento até tenho ciumes
Quando os labios lhe toca!
Bem, amigo.
Tambem vos invejei o par de gemeos,
Entre rosas pastando.
Indigno, infame
Vai-te daqui!
Insultos? Rio delles.
Esse Deus que creou mulher e homem,
Reconheceu tambem o nobre officio
De lhes facilitar gostoso encontro.
Andae lá, que não é grande a desdita;
Não ides a morrer, ides a casa
De vossa namorada.
E a ventura
Celeste de sentir-me nos seus braços
Que vale? Acalentando-me em seu seio
Pesa-me sempre a perdição de um anjo!
Pois não sou foragido, vagabundo,
Um monstro que não tem fim nem repouso,
Qual torrente que em furia se despenha
E se arroja espumante até o abysmo?!
Ella em sua innocencia, retirada
Na cabana que acoita o valle alpestre,
Neste pequeno mundo, em paz serena,
Toda a sua existencia circumscripta.
A mim de Deus precito não me basta
Os penedos levar, fazer pedaços;
É mister que a sepulte e o seu socego?
Inferno, para ti mais esta victima?
Ajuda-me, demonio, a ancia mencurta.
Isso que tem de ser, emfim succeda.
Sobre mim em ruinas baqueando
O seu destino caia, e na voragem
Comigo se despenhe ella pra sempre!
Como de novo ferve, como arde!
Anda lá, tolo, corre a consolal-a.
Quando uma cabecinha assim não acha
Sahida, logo a morte se lhe antolha.
Viva quem se comporta com bravura!
Pouco te falta já p'ra ser diabo,
E no mundo não acho cousa alguma
Mais seinsabor, que um démo desesp'rado.