Fausto (traduzido por António Feliciano de Castilho)/Quadro II

Aposento gótico, altamente abobadado. Uma porta ao fundo, e janela à direita. Entre um fogão, que fica à esquerda, arredado da parede, e o primeiro plano, uma porta que deita para um corredor. É noite. Por uma fresta ao alto côa o luar. Estantes. Alfarrábios volumosos. Pergaminhos. Máquinas. Retortas. Vidros. Esqueletos, etc.; tudo em grande confusão.

Cena I

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FAUSTO (dessocegado, sentado numa poltrona de sola e pregaria de cobre, com a cabeça fincada nas mãos, e os cotovelos na mesa de estudo, na qual derrama luz frouxa um candeeiro aceso.)

Ao cabo de escrutar co’o mais ansioso estudo
 filosofia, e foro, e medicina, e tudo
até a teologia... encontro-me qual dantes;
em nada me risquei do rol dos ignorantes.
Mestre em artes me chamo; inculco-me Doutor;
e em dez anos vai já que, intrépido impostor,
aí trago em roda viva um bando de crendeiros,
 meus alunos... de nada, e ignaros verdadeiros.
O que só liquidei depois de tanta lida,
foi que a humana inciência é lei nunca infringida.
Que frenesi! Sei mais, sei mais, isso é verdade,
do que toda essa récua inchada de vaidade:
lentes e bachareis, padres e escrevedores.
Já me não fazem mossa escrúpulos, terrores
de diabos e inferno, atribulados sonhos
e martírio sem fim dos ânimos bisonhos.
Mas, com te suplantar, fatal credulidade,
que bens reais lucrei? gozo eu felicidade?
Ah! nem a de iludir-me e crer-me sábio. Sei
que finjo espalhar luz, e nunca a espalharei
que dos maus faça bons, ou torne os bons melhores;
antes faço os bons maus, e os maus inda piores.
Lucro, sequer, eu próprio? Ambiciono opulência,
e vivo pobre, quase à beira da indigência.
Cobiço distinguir-me, enobrecer-me, e vou-me
co’a vil plebe confuso, à espera em vão de um nome.
E chama-se isto vida! Os próprios cães da rua
não quereriam dar em troco desta a sua.

(Depois de longa pausa meditativa)

Só falta recorrer às artes da magia.
No espírito há poder; na voz cabe energia,
que a transforma em cominando. Então, consociada
a palavra ao querer, talvez lhe seja dada
força para arrancar com soberano império
à natureza avara o íntimo mistério.
Se o chego a conseguir... que júbilo! que dita!
Não precisarei mais, desde essa hora bendita,
após trabalhos mil como esses que frustrei,
dar por certas ao mundo as coisas que não sei.
Ser-me-á fácil dizer o vínculo profundo
que uniu partes sem conto, e fez do todo um mundo;
ver a força motriz de tanto movimento,
e consignar-lhe a causa. Ah! desde esse momento
em que o cerrado enigma alfim me for notório,
foi-se o torpe chatim de estulto palavrório.

(Depois de pausa, e voltando-se comovido, para a fresta por onde entra o luar)

Oh minha lua cheia, oh minha doce amiga!
Possas tu não mais ver em tão cruel fadiga
o homem que tanta vez dos céus hás contemplado
 a desoras velando, em livros engolfado.
Melancólica amante! a claridade tua
achou-me sempre a ler. Se hoje um teu raio, ó lua,
me levasse a pairar nos cumes apartados,
a borboletear nos antros frequentados
dos espíritos só, a saltitar liberto
da científica névoa, em fundo de um deserto,
à luz crepuscular que tácita derramas
aos selvosos desvãos, por entre as móveis ramas!
Que refrigério d’alma um banho nesse rócio
não dera, amada lua, às febres do teu sócio!

(Silêncio. Cai em desalento. Depois levanta-se, e percorre com a vista o aposento)

Que masmorra que é isto! E aqui me vou gastando
neste covil infecto, abominoso, infando,
lôbrega escuridade a que o celeste dia,
prazer da terra toda, um raio a custo envia
pelos vidros de cor em treva mascarado.
Para onde quer que fuja o olhar do emparedado,
bate nesta Babel de livros bolorentos,
pastagem da polilha, informes, sonolentos,
e em rumas de papeis, do tempo denegridos,
caótico tropel de abortos esquecidos,
que trepa, galga, encobre, enluta, afeia, inunda,
a casa desde o solho à abobada profunda;
sem falar no sem-fim de drogas, pós, essências,
máquinas, que sei eu! misérias, importâncias,
que já me infundem tédio. E a isto se apelida
o meu mundo! Isto é mundo, ou esta vida é vida?

(Dolorosamente)

E inda perguntarás, pobre homem, donde vem
a angústia que te rala, e as forças te retém?
 Toda a gente a gozar dos bens que o Factor Sumo
lhe faculta na terra; e eu... neste ascoso fumo
entre ossos de animais e esqueletos!
Sus! Sus!
Fausto, longe daqui! Torna-te ao ar, à luz!

(Vai a sair. Retrograda lentamente)

Mas... agora me ocorre; é bom tentar. Vejamos
que nos diz no seu livro o sábio Nostradamus.
Não há guia melhor.

(Tira da livraria um calhamaço, e põe-no numa alta estante de coro, que está colocada a um lado do proscénio)

Aqui se põe patente
dos planetas o influxo; e logo em continente,
percebido o teor da natureza, tomo
com ela intimidade, e a meu sabor a domo;
trato-a de igual a igual. A espíritos é dada
esta mútua influência. Eis a teoria achada...

(Pausa)

Sim; mas o praticá-la! O humano entendimento
não pode só por si colher o pensamento

que o nosso abstruso autor depôs nestas figuras.

Génios que me cercais, volantes e às escuras,
se me ouvis, respondei!

(Continua a folhear o livro. Encara na estampa do Macrocosmo)

Que imagem peregrina!
que inefável delícia enleva repentina
todo todo o meu ser! enchentes de doçura,
nunca de mim sonhada! A mão que tal figura
aqui delineou, à fé que era divina,
pois só vê-la me acalma, a dor já me não mina.

O coração me exulta, alegre, alvoroçado,
sôfrego, crente, certo, ufano, endeusado
de atingir afinal explicação completa
do enigma que há já tanto os dias me inquieta.

Dar-se-á que eu seja um deus? Não sei. A claridade
que me cresce em redor, não é da humanidade.
Neste debuxo morto avisto claramente
a vivaz natureza, universal nascente,
estar-se em criações contínuas prorrompendo.
Vejo-o c’os olhos d’alma. Agora, agora intendo
a sentença do sábio:

(Em tom de quem recita coisa decorada)

- «O mundo espiritual
«a ninguém é vedado. O porque o julgas tal
«é por teres o senso obtuso, e o coração
«defunto. Rompe a inércia! Expulsa a indecisão,
«discípulo covarde, e engolfa-te brioso
«no arrebol que entrevês.»

(Contempla a estampa)

Quadro maravilhoso!
Como tudo se tece e junto se unifica!
Nora imensa e possante, esplendorosa, rica,
música e gemedora, esvaziando e haurindo
das matrizes dos céus, com jogo alterno e infindo,
vida e morte, uma à outra amplíssimo tesoiro,
tudo permisto e a flux nos alcatruzes de oiro,
e tudo de auras mil de bênçãos ventilado,
almo consolo empíreo ao mundo trabalhado!
Que visão teatral! mas ai! visão somente!
Oh Natureza enorme, oh tentação presente,
hei-de entrar-te...
Mas como? Onde é que tens sumidos
os seios da abundância, a que andam suspendidos
céu e terra? O meu ser, murcho, desanimado,
almeja ir lá sugar leite caudal, jorrado
a quanta sede há ’í! vê que só eu definho
faminto na abundância.

(Voltando impaciente uma porção de folhas do livro)

Avante! Outro caminho!

(Dá com a figura do Espírito da Terra)

Acho influição melhor nesta figura.

É Génio mais vizinho este da Terra.
Recresce-me vigor; como que entrada
de um vinho novo me referve a mente.
Ouso ao mundo lançar-me: aos bens e aos males;
Arcar com temporais; sentir sem medo
O estrondo de um naufrágio.

(A ser possível, o teatro representará tudo que no decurso da fala se vai mencionando)

Olha o negrume
que lá vai pela abobada! Sumiu-se
de todo a lua. A lâmpada vasqueja...
apagou-se, fumega. Raios rubros
sinto zunir-me em derredor das fontes.
Da abóbada me sopram calafrios...

Bem te pressinto, Espírito invocado!
Aparece! Todo eu já sou tumulto.
Transforma-se o meu ser: anseio, anelo
por novas sensações. A ti me entrego.
Obedece! Mando eu. Sai! sai! Não tremo;
custe-me embora a vida.

(Pega do livro, e profere em baixa voz a fórmula da evocação do Espírito. Acende-se uma chama avermelhada e trémula. Aparece nela o Espírito.)

Cena II

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Um ESPÍRITO e o dito



ESPÍRITO
Quem me chama?

FAUSTO
Horrendo aspecto!

ESPÍRITO
Pois me evocaste
da minha esfera,
eis-me...

FAUSTO (afastando os olhos, e como quem foge)
Não posso!...

ESPÍRITO

(Durante esta fala, FAUSTO vai fazendo os gestos e accionados que o ESPÍRITO denuncia)

Olha-me! Espera!
Já que almejaste
por ver e ouvir-me,
podes falar!
Olha-me firme
sem titubar!
Aos teus conjuros
obedeci.
Bem! Que me queres?
Pronto! Eis-me aqui.
Pasmas, covarde?
foge-te a cor?
perdeste a fala?
tremes de horror?
O sábio, o forte,
o sem segundo,
o que em seu peito
criava um mundo,
o que nutria
orgulho tal,
que a nós, Espíritos,
se cria igual,
aí jaz por terra
convulso, exausto!
Quem me dá novas
do antigo Fausto?
Tu, que ousaste apostrofar-me
no teu carme,
co’a insolência mais que rara
de afrontar-me cara a cara,
mal que aspiras
o ar que efundo,
já deliras,
já no fundo
mais profundo
do teu ser,
verme calcado,
sentes a vida
quase perdida!

FAUSTO
Eu ceder-te, fogo fátuo!
Nunca tu presumas tal!
Sou Fausto; sou Fausto;
de ti sou igual.

ESPÍRITO
Neste mar,
neste mar tempestuoso
do viver e do actuar,
subo, desço, não repouso,
vou e venho sem cessar
neste mar.
Morredoiras vidas,
mortes renascidas
em fogosas lidas,
sem jamais parar...
eis de que eu fabrico
no imenso tear
as roupas fulgentes
que o rico mais rico,
que o Ente dos Entes
se digna trajar.

FAUSTO
Génio activo e infatigável,
bem que abarques todo o mundo,
eu, Espírito incansável,
posso crer-me a ti segundo.

ESPÍRITO
Segundo a um ser, tua invenção,
mas a mim não.

(Desaparece.)

Cena III

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FAUSTO ()
A ti não! a quem então?
Eu que de Deus imagem ser me cri,
nem sequer posso comparar-me a ti?
(Batem à porta)
Que raiva! Não me engano... Há-de ser Wagner,
o aluno cá de casa. E lá se perde
tão bela ocasião. Vem este mono
dar-me quebra a visões desta importância!

Cena IV

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FAUSTO ()
Como estes crendeirões esperam sempre!
Fossam na terra, à cata de um tesoiro,
dão co’uma vil minhoca, e ficam pagos!
Mas aqui, aqui mesmo, onde há tão pouco
me conversava um génio, como pude
ouvir a voz deste homem? Todavia
bem hajas tu, misérrimo vivente,
pois vieste arrancar-me ao desespero
que me ia aniquilar.
Tão monstruosa
era aquela avejão, que me sentia
a par dela pigmeu.
Ter eu suposto
que era imagem de Deus! Crer-me chegado
à intuição da verdade, já despido
na plena luz o invólucro terreno!
e exceder querubins! e a meu talante
por toda a natureza insinuar-me,
fruindo gozos da criadora essência!!...
Pago bem caro o orgulho. Trovejou-me
tremenda voz: «És nada.»
Sim. Nem posso
equiparar-me a ti! Pude evocar-te
mas reter-te não pude. Vi-me a um tempo
sumo e ínfimo. Espírito inclemente,
co’um mero Vade retro me atiraste
de novo ao flutuar da sorte humana.

A quem já buscarei para instruir-me?
e de que hei-de temer-me?
É bem que eu ceda
ao meu impulso actual, ou que o resista?
Que maior jus terão sobre a existência
Os males do que a força?
És tu, matéria,
parte vil do meu ser, és tu quem sempre
vem contrastar do espírito os arrojos.
Como na vida há bens, fora da vida
já não cremos que os possa haver maiores.
Altos assomos d’alma, que haveriam
de nos dar a ventura, eis que os afoga
um mar d’interessículos mundanos.
Quando audaz fantasia arranca o voo,
brada insofrida: Eternidade, és minha!...»
leva-lhe as asas repentino raio;
esperança, alegria estão desfeitas,
e um cantinho qualquer então lhe basta.
Mas se a vaidade é ida, aí vem cuidados
ralar-nos o interior e destruir-nos
alegria e descanso; não sossegam;
trajam máscaras mil; agora a casa,
logo o paço, a mulher, a prole, os servos,
fogo, punhal, venenos, mar. Trememos
com receios quiméricos; choramos
perdas sonhadas, ilusórias, nulas.

(Pausa)

Deus, eu! Pois eu não vejo claramente
que não sou Deus? Imagem sua! imagem
mais depressa de um verme: um verme vive
a afuroar na terra, a alimentar-se
do pó da terra, enquanto um passageiro
o não pisa e sepulta.
E em a realidade
que é senão pó tudo isto que me cerca,
em tanta prateleira acumulado?
toda essa pedantona bugiaria,
que inda ao mundo dos vermes me afeiçoa?
Ali é que hei-de achar o que me falta?
Terei de ler milheiros de volumes
para saber que em tudo e em toda a parte
os homens tem vivido a atormentar-se?
não havendo senão de longe em longe
num sítio ou noutro alguém que se não queixe?

(Encarando no esqueleto)

Que me estás tu daí zombeteando,
caveira despejada? Entendo a mofa:
dizes que os teus miolos, quando os tinhas,
também como hoje os meus, esfervilhavam;
tudo era afadigarem-se às escuras
em demanda da luz que vivifica;
por gosto erravas, mísero, qual erro,
traz a verdade e em vão.

(Virando-se para as máquinas)

Se até vós mesmos,
instrumentos, que nunca houvestes alma,
estais co’as vossas cordas e cilindros,
rodas e dentes, a meter-me à bulha!
Eu ter-vos, eu supor-vos chave mestra
de tanto arcano, estar-lhe ansioso à porta,
forcejar... e afinal desenganar-me
de que a chave não diz co’a fechadura!
Ciosa de seus véus a natureza
nem ao mais claro dia se descobre;
e o que ela nos não mostre por si mesma
não lho hão-de arrancar máquinas.
Conservo
para aí todas essas velharias
porque eram de meu pai, que eu fruto delas
inda o não vi; nenhum! Olha a roldana,
como está do candeeiro enfumaçada!
Pudera! um lucubrar de tantos anos!
Melhor eu me tivera descartado
de tão reles herança, encargo e carga
que me faz suar tanto! O que homem herda
só o pode chamar seu quando o utiliza.
Haver que nos não presta é simples ónus.
Só no uso consiste a propriedade.

(Encara numa âmbula de vidro, que está na
 prateleira)

Mas, que atracção possante,
dalém, a todo o instante,
me está chamando o olhar?
Âmbula cristalina,
teu brilho me fascina,
me alegra e me ilumina.
Nesta alma, selva escura,
graças a ti fulgura
esplêndido luar.

(Tira a âmbula)

Salve, ó cristal que eu tiro
do ocioso teu retiro
com fé, com devoção!
Conténs a quinta essência
da indústria, da ciência,
a inércia, a sonolência,
a morte fulminante.
Sê-me, ó licor prestante,
refúgio e salvação.

Miro-te, e a dor se acalma.
Empunho-te, e já n’alma
se infiltra placidez.
Outra maré que estua:
Que ímpeto em mim actua!
e sobre a face tua,
vítreo estendal das vagas
me arroja a ignotas plagas
onde outros céus já vês.

Ígnea carroça alígera
aí vem tomar-me. Parto.
Já por caminho insólito
da terra vil me aparto.
Remonto no éter fluido.
Sacudo a humanidade.
Engolfo-me nos vórtices
da suma actividade.

Oh! que existir magnífico!
Sublimo-me até Deus.
Sus, verme; sus, blasfemo,
que o ínfimo ao supremo
alças nos sonhos teus!

De insanos terrores zomba!
Costas vira ao sol da terra!
Portão que a todos aterra,
eis braço audaz que te arromba.
Por um acto só pendente
da minha própria vontade,
provarei que a humanidade
é também omnipotente;
que não passam de delírios,
abortos da mente insana
esses infernos-martírios
com que a morte à vida engana.
Almejo ir com ledo rosto
devassar o passo estreito,
onde o humano preconceito
tão vivos fogos tem posto.
Partamos! É vinda a hora;
rompa-se a treva cerrada;
embora no arrojo, embora,
meu ser se resolva em nada.

(Tira um copo lavrado)

Desce! Vem! Sai do cofre esquecido
(e há bem anos) oh taça, que hás sido
dos avitos festins o prazer.
De conviva a conviva girando
nenhum triste, em te aos lábios chegando,
resistia ao teu ledo poder.
Cada um quando a vez lhe chegava,
sua trova às figuras cantava
do teu fúlgido insigne lavor,
e depois te enxugava de um trago.
Como em voz a sorrir inda vago,
tempos bons do meu flóreo verdor!
Agora estou sozinho;
não há já ’í vizinho
a que haja de passar-te.
Agora já não tenho
que me apurar o engenho
nos teus primores d’arte.
Bom! Venha este licor que súbito inebria;
dele é que te hei-de encher; eu mesmo o preparei;
nenhum lhe chega em força.

(Depois de ter vazado o veneno, da âmbula
 para o copo, diz com solenidade:)

Aurora do grão dia!
Com este tetro misto alfim te brindarei!

(Ao chegar a taça aos lábios tangem campas; ouvem-se anjos a cantar)

CORO DE ANJOS(não vistos pelo espectador, sons que chegam da Igreja vizinha)
Cristo ressuscita!
Jubilai alturas!
Paz às criaturas,
salvas e seguras
da prisão maldita!

(Continuam a ouvir-se ao longe repicar os
 campanários da cidade.)

FAUSTO
Que divina toada e inesperado encanto
dos lábios me repulsa o líquido letal!
Este repique ao longe é já o sinal santo
que anuncia aos fieis o júbilo Pascal?
Será este cantar o do celeste coro
que outrora em dia igual, trocando em festa o choro,
por cima do sepulcro aberto ao Redentor
hosanas entoara à nova lei do amor?

CORO DE MULHERES (que cantam, sem serem vistas
também, no próximo templo)
Por nós, seus devotos
aqui foi trazido;
aqui, entre votos
de aromas ungido,
aqui o envolvemos
no linho mais fino.
Como é que o perdemos,
o Mestre Divino?

CORO DOS ANJOS (que não são vistos)
Ressurgiu Cristo amante,
ileso, triunfante
de tanta provação.
Traz por coroa ufana
a humana salvação.

FAUSTO
Vozes celestiais, potente suavidade,
que assim baixais ao pó, de mim que pretendeis?
Não faltam por aí fracos em quem podeis
empregar-vos em cheio. Oiço-vos, é verdade,
mas falece-me a fé... Sem fé, que racional
daria seu assenso ao sobrenatural?
Àquelas regiões, donde oiço a boa nova,
não ouso abalançar-me. E ainda todavia,
só porque na puerícia os mesmos sons ouvia,
como que reverdeço, e o crer se me renova.
Ai, domingo Pascal, o que eras algum dia!
Coavas por mim dentro um ósculo celeste.
O argentino repique era uma profecia...
Ai, dia do Senhor, que júbilos me deste!
Era-me êxtase orar. Impulso irresistível,
inefável saudade, encanto indefinível
me levava a girar nos campos florescentes,
ou no mais ermo bosque, onde em silêncio fundo,
debulhando-me à farta em lágrimas ferventes,
sentia dentro n’alma abrir-se um novo mundo.
Este alegre cantar era, naquela idade,
um bando de folgança à pronta mocidade:
Vinha lá primavera! Inda hoje estas lembranças
de boa fé tamanha e tão pueris folganças
tanta força em mim tem, que junto ao passo extremo,
depois de resoluto... hesito, se não tremo.
Bem hajais! Prossegui!... oh cânticos celestes,
que abrir-me enfim soubestes
a fonte onde a ternura as lágrimas encerra.
Por vencido me dou: reconquistou-me a terra.

CORO DOS DISCÍPULOS (Invisíveis para o espectador)
Do avarento moimento arrombado
reascendeu para o trono paterno,
Deus de Deus, luz de luz, sempiterno,
perenal Criador incriado.
Ai de nós! ai, que invejas ao Mestre!
De ora avante sem ele tão sós
cá ficamos no exílio terrestre,
Ai saudades! ai céus! ai de nós!

CORO DOS ANJOS (invisíveis para o espectador)
Da corrupção da morte
alou-se incorruptível.
Discípulos do forte,
fugi da mesma sorte
da culpa à herança horrível!
Aos que amam de verdade,
cumprem a caridade,
e para a eternidade
chamando os homens vão,
a esses, pia gente,
o que chorais ausente
é, foi, será presente:
pai, mestre, amigo, irmão!