Fausto (traduzido por António Feliciano de Castilho)/Quadro III

Fora de portas. Variado campo. Ao fundo escureja a porta baixa e arqueada da cidade. À direita do espectador, um oiteirinho, com sua pedra tosca em cima para assento. Do lado fronteiro, vista de montes ao longe, e mais perto um rio com seus barquinhos a ir e a vir. Também se descobrem, por aqui por acolá, veredas rústicas, com gente passeando em várias direcções. Ao meio de um terreiro, há uma tília copada (árvore grande que em Alemanha se encontra em todas as povoações, fora de portas, para os bailaricos do povo).

Cena I

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Vem sucessivamente aparecendo OFICIAIS DE OFÍCIO, CRIADAS DE SERVIR, ESTUDANTES, BURGUESES, UM MENDIGO, UMA VELHA, DUAS SENHORITAS, UM RANCHO DE SOLDADOS, e PASSEANTES DE TODA A CASTA, que vem saindo da cidade, a espairecer-se.



(Diversos oficiais de ofício)

UM
Por aí!

OUTRO
Não é caminho
 para a casa do monteiro?

O PRIMEIRO
Nós gostamos mais do oiteiro
 do Moinho.

UM OFICIAL
Para a parte da cascata
é que era o melhor recreio.

SEGUNDO
Isso é caminho que mata,
não passeio.

OUTRO
Tu que votas? que é que fazes?

TERCEIRO
Sei cá? vou c’os mais.

QUARTO
Rapazes,
é mister que alguém decida.

FAUSTO
Toca a Burgdorf; é subida,
mas vale a pena; verão
belas moças de feição;
cerveja de encher o papo;
e para um chibante guapo,
como todos vocês são,
muito labrosta pimpão
com quem se jogue o sopapo.

QUINTO
Já te não lembram, farsola,
as duas vezes que lá
te derrearam as costas?
 Queres terceira! Se gostas
sopeteia, vai; eu cá
não caio na corriola.

UMA CRIADA DE SERVIR
Escusas de aporfiar!
Torno já para a cidade.

OUTRA
Verás que o vamos achar
além no olmedo a esperar
comidinho de saudade.

A PRIMEIRA
E eu com isso que aproveito?
Se eu gostasse do sujeito,
valeria a pena; assim
só para o ver no terreiro
ser teu constante parceiro
no bailarico, isso sim!
Olha que bem para mim!

OUTRA
Vem decerto acompanhado.

A PRIMEIRA
Sim?

A OUTRA
Sim; disse-me que vinha
com ele o tal Carapinha,
que assim tinham ajustado.

UM ESTUDANTE (para outro)
Ih! que pernas que elas tem!
Parecem-me ventoinhas.
Digo que estas cachopinhas
dão calças à gente. Vem!
Vem daí! mexe-te! avia,
senão perdemo-lhe a pista.
Eu cá dos gáudios na lista
só acho três de valia:
pinga forte, esperto fumo,
e servas embonecradas.

UMA DONZELA BURGUESA (afirmando-se nos estudantes)
Mocetões assim, no rumo
das tristes de umas criadas!
É força de indignidade!
Não podiam conseguir,
em mais nobre sociedade,
objectos a quem servir?

SEGUNDO ESTUDANTE (ao primeiro)
Forte correr! Pouco atrás
vem duas tão bem vestidas,
tão elegantes! Verás.
São duas páscoas floridas.
... Ai ai ai, que vem com elas
a minha bela das belas.
Oh! que dita! A minha, a minha
formosíssima vizinha,
o meu anjo, o meu amor!
co’o seu passo miudinho
aposto seja o que for
que nos alcança o ranchinho.

PRIMEIRO
Que seca de emprazadoras!
Anda daí, companheiro.
Deixa-as lá. Não ’stão primeiro
criadas, do que senhoras?
Achavas agora graça
em perder o rasto à caça
que vai fugindo? Vem, vem!
Olha que a mão que mais destra
varre ao sábado, também
domingo a amimar é mestra.

UM BURGUÊS
O tal Burgomestre novo
não me cheira. A nomeação
fê-lo soberbo co’o povo:
vara na mão do vilão.
Que bem tem feito à cidade?
O que eu vejo cada dia
é crescerem sem piedade
vexames e tirania.

UM MENDIGO
Oh meus devotos senhores!
Minhas santinhas floridas!
Lançai vistas condoídas
A quem só vos canta dores!!
Co’a vossa bendita esmola
calai-me as lamúrias tristes!
A esmola que repartistes
também voss’alma consola.
Almas devotas e pias,
haja festa para todos!
Sobras dos ricos são bodos,
e trégua a mil agonias.

OUTRO BURGUÊS
Ao domingo, ou num dia de festa,
não conheço delícia como esta
de estar a gente
nas suas terras,
mansa e contente,
forra a perigos,
falando em guerras
co’os seus amigos.
Diz que a Sublime Porta
tudo em barulho traz.
E a nós que nos importa
que haja lá guerra ou paz?
A Turquia é no cabo do mundo.
Onde há pois outro bem mais jucundo
do que isto de estar
um homem pregado
na sua janela,
vazando quod ores,
e a ver pelo rio
os barcos pintados
de tanto feitio,
que sobem, que descem,
a remos e à vela!
Corre o dia satisfeito;
chega a noite regalada;
vai-se ao leito
prosseguir sonhando a eito
nesta paz abençoada.

TERCEIRO BURGUÊS
Assim digo eu também, senhor vizinho.
Deixá-los lá matar-se os tais Turquescos,
com tanto que haja paz neste cantinho,
vivendo todos como bons Tudescos.

UMA VELHA (a uma Senhorita)
Psiu! Como vai casquilha!
Certo é que a mocidade
é quem no mundo brilha.
Ai, benza-te Deus, filha,
que a tal graciosidade
seria maravilha
que resistisse alguém.
É só esse desdém
esse ar de soberbia
que lhe não fica bem.
Sorria!... Isso que tem?
Sorria!... Vá... sorria!
Assim. Ora inda bem.
Não sabe? Tenho um dedo,
que tudo me adivinha,
e diz que esta rosinha
nutre, mas em segredo,
um bicho que a definha...
 amores, bem me entende,
e eu sei quem eles são;
e dar-lhe o que pretende
está na minha mão.

SENHORITA
Que impertinência! Oh Águeda,
Deixe-me! tenha siso!
E forte causticar!
Para me governar
conselhos não preciso,
Se alguém nos visse agora
aqui sós de palestra
com esta bruxa-mestra...
Suma-se, vá-se embora

(Aparte para as companheiras)

E contudo o certo é
que em noite de Santo André
me amostrou distintamente
a figura que há-de ter
o futuro pretendente
com quem me hei-de receber.

A OUTRA
Tal qual, sem tirar nem pôr.
Mandou-me o espelho mirar,
e vi nele um militar,
que há-de ser o meu amor.
E que figura tão linda
que ele era entre os mais soldados!
Desde então, dez mil cuidados
tenho posto em no buscar,
e não o encontrei ainda.

SOLDADOS (cantando)
Castelos roqueiros,
e altivas donzelas
de assalto levar;
¿onde há, bons guerreiros,
coroas mais belas
para um militar?
Se é agra a vitória,
a glória é sem par.
Tocou-se a rebate.
Vencer ou morrer!
Voe-se, ao combate!
Isto é que é viver.
Caí, fortalezas!
Rendei-vos, belezas!
Triunfo e cantar!
Se é agra a vitória,
a glória é sem par.
Ao som dos peloiros
ceifaram-se os loiros.
Avante, soldados!
Por nós são os fados.
Avante! marchar!

Cena II

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A maior parte dos ditos, que giram ad libitum. FAUSTO, WAGNER
(Wagner é um amigo e discípulo do Doutor Fausto)



FAUSTO (conversando e caminhando com Wagner para o proscénio)
Descoalharam-se os rios e ribeiros.
Bem haja a primavera! Já nos viça
por todas essas veigas esperança.
O inverno, já caduco, aí vai buscando
refúgio pelas serras. Pobre inverno!
ver como ainda está baldando raivas
por se vingar da fuga! e nós a rirmos
dos tiros mortos, que de lá nos lança,
granizo imbele, que realça os verdes,
mal que um raio de sol os desmortalha.
Por toda a parte desabrolham vidas.
Que folgazão que é o sol! Como se alegra
de entrajar de matiz a natureza!
Como inda por aqui lhe minguam flores,
supre-as com tanta gente pintalgada.

(Continua sempre a sair gente da cidade)

Vira-te para trás! Desta eminência
olha para a cidade; o formigueiro,
que do escuro da porta vem surdindo!
Não há quem neste dia não cobice
vir ao campo assoalhar-se. Este alvoroço
co’o ressurgir de Cristo, é clara mostra
de outra ressurreição em todos eles.
- Da casa-sepultura, - das canseiras
da oficina ou do trato; - da estreiteza
dessas vielas, que apelidam ruas,
- do soturno dos templos, - é o instinto
quem os promove à luz. Vê com que anseio
se atira a turbamulta ao campo, às quintas!
Que barcadas de gente jubilosa
sobem, descem, transpõem a movediça
veia do rio! Vê-me aquele bote
além, além, o último; de cheio
já mete a borda na água; até as sendas
dos montes lá ao longe estão querendo
quebrar-nos olhos co’as garridas cores
do gentio que as peja. Já cá chega
o estrondear da aldeia. O céu do povo,
se há céu do povo, é isto; o rapazio,
os homens feitos, tudo grita, salta,
ri, tripudia. Aqui me sinto eu homem,
e me é dado que o seja.

WAGNER
Honra e proveito,
Senhor Doutor, é o passear convosco.
Mas eu, se dirigisse este passeio,
não vinha para aqui; nunca achei graça
ao que cheira e tresanda a grosseria.
Este zangarrear cantigas toscas,
estes jogos de bola, esta algazarra,
tudo isso odeio; implica-me co’os nervos.
Andam doidos; parecem-me possessos.
Nem é cantar nem festa; é só balbúrdia.

CAMPONESES debaixo da tília. (Canto e dança, ao som de uma rabeca)

VOZ
Viva o bailarico!
Já está no terreiro
o nosso ovelheiro
de graças mais rico;
laços no pelico,
flores por cimeiro.

CORO
Dancemos, voemos à volta do til,
rapazes e moças do balho gentil!
Zina, zana, zana,
zana, zana, zim.
Rabeca magana,
tocar sempre assim!

VOZ
Tão sôfrego vinha
que esbarrou no seio
de esbelta mocinha,
que assim reconveio:
- «Olha que lorpinha
«que ao balho nos veio!»

CORO
Dancemos, voemos à roda do til,
rapazes e moças do balho gentil!
Zina, zana, zana,
zana, zana, zim.
Quem viu nunca, ai mana!
ovelheiro assim?

VOZ
E como vai dando
co’os seus calcanhares!
Gire, gire o bando!
Saias pelos ares!
Ai, já vão cansando;
pendam-se aos seus pares!

CORO
Dancemos, voemos à roda do til,
rapazes e moças do balho gentil!
Zina, zana, zana,
zana, zana, zim.
Apertar com gana
braços de marfim

VOZ
- «Não seja atrevido,
«que eu não sou daquelas
«com quem se tem rido»
Baldadas cautelas!
Co’o seu repelido
fugiu dentre as belas.

CORO
Dancemos, voemos à volta do til,
rapazes e moças do balho gentil!
Zina, zana, zana,
zana, zana, zim.
Rabeca magana,
tocar sempre assim!

UM CAMPÓNIO VELHO (trazendo uma infusa, e dirigindo-se para Fausto)
Guapa acção, sô Doutor! Num dia destes
vir juntar-se co’a gente cá de fora,
toda ignorante, um sábio dessa polpa!
Aceite-nos portanto esta infusinha.
Melhor não se encontrou. Que a pinga é fresca,
isso é; mas o que importa mais que tudo
é ser de boamente oferecida
para que a beba em gosto, e tantos anos
lhe acrescente de vida, quantas gotas
contêm no bojo.

FAUSTO
Bem hajais! Aceito
o refresco oportuno; e correspondo
com outro tanto afecto ao de vós todos.

(Reúne-se o povo à roda)

OUTRO CAMPÓNIO VELHO
Quem nos dias ruins não faltou nunca,
bem devia na festa aparecer-nos.
Aqui está, vivo e são, mais de um salvado
pelo pai do senhor, quando as malinas
levavam tudo a eito; e a não ser ele,
inda agora durava a epidemia.
O senhor nesse tempo era um crianço,
e mesmo assim andava em roda viva
co’o paizinho por casa dos enfermos.
Caíam como tordos os defuntos,
e ele sempre de pé. Livrou de boa!
Livrou? Quis de propósito salvá-lo,
para bem nosso, o Salvador do mundo.

TODOS
Viva, viva tempos largos
quem nos põe à morte embargos!

FAUSTO
Reservai para Deus as vossas graças!
Quem ensina a salvar, quem salva é Ele.
(Vão-se todos para o fundo, e depois a pouco e pouco vão-se dispersando, ficando só Fausto e Wagner a conversar no proscénio.)

Cena III

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FAUSTO e WAGNER passeando


WAGNER
Mestre! mestre! Que arroubo hão-de causar-lhe
estas aclamações! Feliz quem saca
do talento e saber tão belos frutos.
Correm todos a vê-lo; os pais aos filhos
o apontam; é o oráculo das turbas.
Emudece a rabeca; a dança estaca;
formam alas ao sábio; as carapuças
voam pelo ar; e quase lhe ajoelham,
nem que fora o viático.

FAUSTO
Subamos
um pouco mais a encosta, e poisaremos
além na pedra.

(Sobem e sentam-se na pedra)

Quanta vez, meu Wagner,
não vim eu assentar-me aqui, sozinho,
co’a mente desvairada, consumido
do orar e de jejuns, rico de esp’ranças,
firme na fé! Que choros e suspiros,
que estorcer destas mãos, a ver se obtinha
do poder sobre-humano o fim da peste!
Estas aclamações soam-me a escárnio.
Se bem me leras no íntimo, verias
que nem filho nem pai merecem glórias.
Meu pai era um sujeito obscuro, honrado,
crendeirão, todo entregue a vãs teorias
sobre o teor do enigma Natureza.
Logrou ter seus prosélitos. Fechavam-se
numa cozinha negra, onde tentavam
toda a casta de récipes co’a mira
na fusão dos contrários: Leão ruivo,
(peralvilho montês) ia a consórcio
co’a tenra Flor de lis em banho morno;
passados logo a fogo mais intenso,
levantavam fervura ambos os noivos,
cada qual em sua câmara, e se uniam,
feitos os dois um só; bastava aquilo
para surdir num íris de mil cores
dentro no copo a juvenil princesa.
’Stava pronto o remédio; era tomá-lo,
o enfermo ia puxando, e ninguém punha
nem suspeição de culpa ao mata-sano.
(Morre quem tem seus dias acabados!)
Aqui verás com que infernais mistelas,
socolor de atacar a epidemia,
fomos por todas estas vizinhanças
muito mais peste do que a própria peste.
A quantos mil não propinei eu mesmo
a bebida funesta! e vendo-os ir-se,
ouvia ao mesmo tempo encomiados
por coisa grande os brutos assassinos!

WAGNER
Que aflição por tão pouco! A probidade
que mais tem que exigir, quando se exerce
honrada e pontualmente o que aprendemos?
Enquanto foi rapaz, novel no ofício,
ia-se com seu pai, que era o seu mestre,
e exemplar que na cópia se revia.
Cresceu, adiantou conhecimentos;
nada, mais natural. Depois, seu filho,
se o tiver, lançará mais longe a barra.

FAUSTO
Que ditosa ilusão, supor que ao homem
seja dado emergir do mar dos erros!
O que é mister saber, ninguém no atinge,
e o que se alcança para nada presta.

(Após alguns momentos de absorção:)

Fora com tais tristezas, que destoam
deste festivo dia!
Cede, ó alma, aos rebates da alegria!

Que lindeza de tarde! Olha os casais fronteiros
engastados no verde, e como estão festeiros,
banhados no esplendor do sol que vai fugindo!
Mais um dia vivido, um dia mais que é findo.
Vê-lo lá vai agora, o astro procriador,
alegrar sucessivo, e encher de almo calor
terras, céus, regiões, montes, cidades, povos,
que em círculo sem termo avista sempre novos.
E eu, eu, que o sigo assim co’os votos e co’a mente,
sem asas, preso ao solo e escravo eternamente!
Que delícia montar num raio vespertino,
e acompanhar no curso ao grão farol divino,
vendo sob os meus pés, na imensa profundeza,
sem eu lhe ouvir nem som, girar a redondeza!
montes a trajar sol; vales escurecidos;
os regatos de prata, em oiro convertidos!
Abismos e alcantis da serra mais bravia
não serviram de empacho à minha etérea via.
Oh! pasmo! aí vem o mar co’as mornas enseadas!
Que é isto, ó sol! quem faz que aos olhos meus te evadas?
Cansei-me eu de o seguir? Como? Por quê?
Reassumo
do querer força nova; hei-de alcançar-te, ó sumo
voador luminoso, eterno fugitivo,
fartar-me em ti de luz, vulcão perene-activo.
O dia me precede; a noite me acompanha;
por cima os céus; aos pés a undísona campanha.

(Pausa)

Que aprazível sonhar! mas ah, que o sol no entanto
cada vez mais se aparta e me desfaz o encanto.
Nas sedes do infinito, ó alma, em vão te abrasas:
prende-te ao solo o corpo; o corpo não tem asas...
não tem, não pode ter. Mas todos, por instinto,
já sentiram por certo o mesmo que em mim sinto:
cobiças de transpor, anseios de subir.
Quando na madrugada em giros se vê ir
subindo pelo azul a esperta cotovia,
que, já sumida à vista, inda o seu canto envia;
quando as águias reaes, sobre os pinhais da serra
pairam lá pela altura; e sobre o mar e a terra
o grou retorna à pátria, ao ninho, aos seu amores...
quem não inveja a sorte àqueles voadores?

WAGNER
Quimeras, também eu tenho sonhado;
mas dessa casta nunca. Isto de campos
depressa me enfastia; o ser alado
para quem gosta será bom, concedo,
mas eu não tenho inveja ao passaredo.
Tem lá comparação co’os gozos d’alma
do que anda a viajar de livro em livro
e de página em página! Há delícia
para alegrar no inverno as seroadas
como isto, que até dá calor aos membros?
Desenrolando um nobre pergaminho,
parece-me que a bem-aventurança
toda se embebe em mim.

FAUSTO
Sim. Por enquanto
não aspiras a mais. Conheces uma
das duas sedes d’alma; o céu te livre
de sentires a outra.
Albergo dentro
dois espíritos, dois; forcejam ambos
por se fugir: - um deles, voluptuoso,
abraça a terra; os órgãos o segundam;
o arraigam nela; - o outro, desdenhando
este mundo, este pó, se evade em busca
das regiões que nossos pais habitam.
Ah! se entre o céu e a terra existem entes
dotados de poder, eia! aos meus rogos,
do doirado nevoeiro onde se ocultam
descendam presto!
Dessem-me uma capa
de tal condão, que, em me embarcando nela,
me visse por encanto em longes terras...
não a trocava por nenhumas galas,
nem por manto de rei.

WAGNER
Tate! Não chame
por essa indigna cáfila de trasgos
que (toda a gente o sabe) andam sem termo
a remoinhar-nos pelos ares turvos
e a chover-nos a súbito desgraças.
- Os do norte com dentes navalhados
e lancetas por língua, a nós se atiram.
- Os do nascente secam-nos, consumem
o pulmão afanado. - Quando saltam
do deserto africano às nossas terras,
abrasam-nos. - Os d’oeste entram suaves,
mas para logo nos afogam tudo:
gados, campos, casais. Pérfidos todos,
alegram-se de ouvir nosso desejo
co’a mira sempre em convertê-lo em males;
folgam de nos servir para burlar-nos;
mensageiros do céu se nos inculcam,
e com doçura angélica nos mentem.
Mas, basta de passeio. Olhe que o dia
já se quer despedir lá do horizonte,
soltas as frias cãs; desce a cacimba.
Nesta hora é que é delícia o lar caseiro.
Não se demore!...
Que pasmar é esse?
que mira no crepúsculo?
(Avista-se um grande cão preto, que vai fazendo todos os movimentos indicados no diálogo)

FAUSTO
Um cão preto!
Não vês como anda à doida a espolinhar-se?
agora pelo chão da sementeira,
logo sobre o restolho?

WAGNER
Há muito o vejo.
mas isso que nos monta?

FAUSTO
Observa, observa!
Que julgas tu que seja aquele bruto?

WAGNER
Eu sei? algum cão d’água que perdesse
a peugada do dono, e ande, a seu modo,
naquele desatino a procurá-lo.

FAUSTO
Vê-lo em torno de nós caracolando
de giro em giro, e cada vez mais perto?
Se a vista me não mente, vai deixando
rasto de lume após.

WAGNER
O que eu só vejo
é um canzarrão preto. Isso é no mestre
alguma ilusão óptica.

FAUSTO
Suspeito
que anda a armar-nos em roda imperceptíveis
mágicos laços com que os pés nos tolha.

WAGNER
E eu entendo que a pobre da alimária
o que faz é saltar, medrosa e incerta,
por só nos ver a nós, em vez do dono,

FAUSTO
O círculo se aperta; ei-lo conosco.

WAGNER
Então já vê se é cão, ou se é fantasma.
Ele grunhe, ele agacha-se de rojo,
abana a cauda... Nada disso é novo;
nunca vi cão que não fizesse o mesmo.

FAUSTO (falando ao cão)
Boca, boca, vem cá!

WAGNER
Tem graça o perro.
Sempre gostei de um bruto desta casta:
- Se o dono pára, assenta-se; - falou-lhe,
salta-lhe doido em cima; - lambe e ladra;
- busca o perdido; - aboca da corrente
a bengala do amigo, e à mão lha torna.

FAUSTO
Tens razão; sim, tudo isso é mero ensino,
que não entendimento.

WAGNER
A cães tão mestres
não fica mal a um sábio o afeiçoar-se.
Este caiu-lhe em graça, e não me admira:
discípulo melhor não no há no mundo.

(Entram pela porta da cidade.)