— Sou eu! disse o Borges, correndo para ela.
— Não dispares! É teu marido!
Filomena, ao senti-lo perto da cama, repeliu a arma e, embrulhando-se no lençol, saltou pelo lado contrário, prestes a fugir.
— Não sairás! gritou o esposo, cortando-lhe a passagem.
— É então uma violência?! perguntou a mulher.
— Seja o que for, mas não me escaparás desta vez!
— Socorro! gritou ela. Socor...
Não pôde continuar, porque o marido tomara-a nos braços e abafava-lhe com os beijos a voz.
Filomena debatia-se violentamente; afinal, soltou um grito desesperado, e caiu sem sentidos.
— Ora, mais esta!..., resmungou o Borges, depondo a mulher sobre um divã. Filomena! Filomena! Então?! Que é isso?!
Ela não respondia.
— Ora senhores! — Ó filoquinha! Anda! Volta a ti!
Filoquinha estrebuchava. Borges corria à procura de sais. Acudiram os criados. Cecília, aflita, andava de um para outro lado, sem saber que fizesse, a olhar espavorida para o amo, como quem olha para um bandido.
No entanto, o pobre esposo não saía de ao pé da mulher. Só no fim de meia hora, esta voltou a si, olhando estranhamente para os lados e a passar a mão repetidas vezes pela fronte.
— Ah! exclamou, dando com o marido. E escondeu o rosto, gritando entre soluços — que estava perdida, desonrada, chamando-se infeliz, pedindo a morte.
— Mas, meu amor, dizia-lhe o marido. Lembra-te de que sou teu esposo! Lembra-te de que não estou cometendo um crime!
— Deixa-me! Deixa-me! respondia Filomena desorientada, em soluços, — Fuja! Retire-se! Já! Não quero que o vejam aqui! Vá! Vá-se embora! Siga esta mesma noite para longe! Saia do Rio de Janeiro! do Brasil! da América! Saia, se não quer que eu lhe dê cabo da vida! Infame! Sedutor!
E chorava, desesperada, como se lhe tivesse sucedido uma grande desgraça. O marido dizia-lhe palavras de ternura, animando-a; ela, porém, não se queria conformar com a situação, e soluçava cada vez mais fortemente.
— O Borges, afinal, também se pôs a chorar. O dia veio encontrá-los numa orgia de lágrimas.
— Aí tem a minha bela vida de casado!..., dizia ele entredentes, na ocasião de abandonar a alcova de sua mulher. Esta, ainda em cima, o queria ver pelas costas!... Que vida a sua! Que vida, santo Deus!
Retirou-se para o seu quarto, desesperado, e atirou-se à cama, sem se despir, soluçando, escondendo o rosto entre os travesseiros.
Ia a pegar no sono, quando foi surpreendido por alguém, que chorava e gritava desesperadamente ao seu lado.
Era Cecília, que acabava de entrar no quarto, dizendo a berros que o Borges havia causado a sua desgraça; que a senhora pusera-a no olho da rua e que ela, pobre de si! desse momento em diante não tinha onde cair morta! Que o patrão fora a causa única de tudo aquilo! Que, infeliz que era! ia separar-se do Roberto, do homem destinado a ser seu marido e a quem dera por conta o seu coração e a sua ternura! E que agora...
Uma explosão de soluços sufocou-a.
— Sou muito desgraçada! berrava. — Sou muito desgraçada!
— Ora, não me amoles tu também! gritou o Borges, erguendo-se da cama.
— Mas é que a senhora me despediu!
— Pois que a despedisse! Vão todos para o diabo! Eu também estou despedido e não me queixo! Arre!
— Mas a questão é que, se eu me for embora, o Roberto será muito capaz de...
— Pois o Roberto que se vá também! Está despedido! Sou eu que o ponho na rua!
Roberto, que escutava tudo isso atrás da porta, entrou por sua vez no quarto e correu ao patrão, implorando-lhe piedade. — Que seria uma revoltante injustiça pô-lo na rua! Ele! que cumpria tão bem com os seus deveres! Ele! que, por amor dos amos, era capaz de ir às profundas do inferno! — Oh! Uma coisa assim até bradava aos céus!
E cada um dos criados agarrou-se a um dos braços do Borges, e principiaram ambos a choramingar, implorando-lhe compaixão por tudo que ele mais amasse nesta vida.
— Olhem que vocês me estão fazendo um berreiro nos ouvidos! bradou o amo, querendo arrancar-se daquela posição. — Arre! Pois tenho também de aturar este par de galhetas?! Vão para o diabo! Deixem-me! Deixem-me! Súcia de doidos!
E o Borges de um salto agarrou o chapéu, enterrou-o na cabeça, e ganhou em três pernadas a porta da rua.
— Safa! Safa! dizia ele a marche-marche pela calçada. — Que inferno! Isto lá é vida!
E assim andou até às dez horas pela cidade; tonto, sem destino, furioso, a abalroar com todo o mundo, a dar encontrões nas quitandeiras, e meter os pés no que encontrava, a praguejar, a promover barulhos.
Num restaurante, onde entrou para almoçar, à primeira réplica do servente, atirou-lhe com o sifão e fez voar a mesa diante de si com um soco. Um sujeito, que a recebeu pelas pernas, desafrontou-se, arremetendo contra o Borges o prato que tinha mais à mão.
Levantou-se grande desordem, e a coisa teria acabado na polícia, se o marido de Filomena, depois de lançar uma nota de cem cruzeiros ao dono do hotel, não distribuísse vários pontapés para os lados e não ganhasse a rua, levando na sua frente todos os obstáculos que se lhe antepunham.
Chegou a casa ao meio-dia, esbaforido, aniquilado, sem querer a presença de ninguém, disposto a fechar-se no quarto e deixar que aquela maldita vida girasse em torno dele, como bem entendesse.
Mas o aspecto revolucionado de seu "lar doméstico" o surpreendeu logo à entrada. Tudo estava em reviravolta. Cecília e Roberto arrastavam malas, despejavam a roupa dos gavetões da cômoda, empacotavam objetos de uso, acumulavam trouxas.
— Que é isso? perguntou o Borges.
— A senhora deu-nos ordem de preparar o necessário para uma viagem...
— Viagem de quem?!
— Nossa não é com certeza, porque nós já estamos despedidos.
— Quem vai viajar?! Desembuchem, com os diabos!
— A senhora, naturalmente; pelo menos esta roupa é dela.
Borges subiu ao segundo andar; encontrou a mulher muito tranqüila, assentada no divã, a ler.
— A senhora tenha a bondade de explicar que desordem é aquela lá embaixo? Que significam aquelas malas, aqueles preparativos de viagem?!
— O que vê. Trata-se justamente de uma viagem.
— Viagem de quem?
— Minha. Vou, uma vez que o senhor não quis ir. Juntos é que não ficaremos por coisa alguma! Não me quero arriscar a uma segunda agressão! Não posso ficar numa casa, onde não tenho a menor garantia, onde nem o meu quarto de dormir é respeitado!
— Mas a senhora esquece-se de que é minha esposa? A senhora não vê logo que eu não a deixo sair assim, sem mais nem menos?...
Filomena ergueu-se em silêncio, sacudiu os ombros e retirou-se da sala.
O Borges acompanhou-a.
— Filomena! disse ele.
— Que é?
— A senhora não tencionará acabar com essas coisas por uma vez?...
— Que coisas?
— Esses caprichos! Então está sempre resolvida a fazer a viagem?
— Estou.
— Pois nesse caso irei também! Acompanhá-la-ei ainda que seja para o inferno! Roberto! ó Roberto do diabo! Corre! arranja-me uma mala!
— Bem! Nesse caso não irei, disse Filomena, fechando o livro que tinha entre mãos.
É então um propósito firme de contrariar-me em tudo?! perguntou o marido, trêmulo de raiva.
— O senhor é que está nesse propósito! Parece que anda inventando meios e modos de mortificar-me! É bastante que eu mostre gosto em qualquer coisa para o senhor fazer logo justamente o contrário! Isso prova que o senhor não me ama! Que o senhor não deseja ter uma esposa; deseja é ter uma mulher às suas ordens! Animal! Bruto! Estúpido.
E, possuída de um violento sobressalto de nervos, atirou-se de bruços no divã a soluçar, a morder-se.
Borges correu para junto dela; tomou-a nos braços, fê-la encostar a cabeça no seu colo, e, com muita ternura, os olhos úmidos, começou a acarinhá-la, a dizer-lhe todas as meiguices que lhe inspirava o amor..
— Oh! Mas para que havia de se mortificar daquela forma?... Para que se maltratar assim? Para que nodoar com os dentes aquelas mãozinhas tão formosas?... O fato da véspera não justificava semelhante desespero! Se algum dos dois devia estar ressentido, era ele de certo, porque...
— Não! Não! Tu procedeste como um selvagem!... Tu foste violento! Tu foste brutal!
— Porque te adoro, minha vida!
— E juras que me amas?! Juras que não conheces outro ideal, outra preocupação, que não seja eu?! Juras que serás capaz de todos os sacrifícios por minha causa?!
— Ainda o duvidas?!
— Bem! Iremos juntos nesse caso; faremos os dois a viagem!...
— Sim, mas não é bonito, nem há razão para sairmos tão precipitadamente!!!
— Mau! Já principias tu com as objeções do costume!... Dessa forma não teremos nada feito!
— Mas, vem cá, minha santa, é que não há a menor necessidade de irmos como dois criminosos, que fogem à justiça! Para que havemos de nos sujeitar a umas certas coisas, quando, graças a Deus, não nos faltam recursos para termos todas as comodidades?...
— Oh! Eu mesmo faço muito caso das comodidades!...
— Sim, mas hás de confessar que...
— Ah! meu amigo! se tens medo de sair de teus hábitos, o melhor é desistirmos da viagem! Quem quer estar a gosto fica em casa!...
— Não é isso! não é isso! Já cá não está quem falou! Oh! Tu também te espinhas por qualquer coisa...
— Pois então, nem mais uma palavra sobre o assunto, e, no primeiro vapor que sair para a Europa...
— Estamos de partida!
— Ora muito bem!