Foi esse um tempo magnífico para a Filomena; vivia muito entretida com a construção de seu teatrinho. Era ela própria quem dirigia as obras; quem arranjava os desenhos decorativos da sala e do frontispício; quem administrava e conduzia os trabalhos do cenógrafo.

Quinze dias depois, estava em ensaios a primeira peça. A casa tomou um caráter boêmio de atelier; encheu-se de amadores dramáticos, de músicos. Havia certo movimento, certa agitação alegre, feita de conversas em voz alta, de risadas, de afinações de instrumentos. Viam-se carpinteiros, de cachimbo ao canto da boca, trabalhando e cantarolando em mangas de camisa; panos enormes, estendidos no chão, cobertos de tinta; costureiras, aderecistas, operários de todos os gêneros, a entrar e a sair numa atividade ruidosa.

O Borges andava muito atrapalhado com tudo aquilo, e principalmente com o seu

papel.

— Ora que diabo me havia agora de cair na cabeça!...dizia ele consigo. Eu nunca tive queda para ator. Esta só a mim sucede!

Mas a peça ficou ensaiada; expediram-se os convites, e no dia do espetáculo o teatrinho de Filomena encheu-se de amigos.

O Barradinhas era o melhor dos curiosos, e fazia de galã. Devia ir muito bem; tinha enorme talento para a cena; "uma figura de arrebatar"! Bonito, cabelos crespos e uma voz que nem um tenor italiano"! Filomena representava a sua amante; ele caia-lhe aos pés, várias vezes, e dizia-lhe longas frases retoricamente apaixonadas.

O Borges é que não ficava muito satisfeito com a história. — Ele, para que o havia de negar?... não morria de amores por aquele gênero de divertimento!...

E cuidava muito mais em vigiar o galã do que em estudar o seu papel. Pode ser que se enganasse... mas ia jurar que aquele pelintra não tinha por ali muito boas intenções!.. . Ah! ele sabia perfeitamente que a mulher não era das mais fáceis... (Oh! se sabia!) não estava, porém, em suas mãos afastar os olhos de cima do tal galã! Era lá uma cisma!...

— Também! Pobrezinho dele se me cai na arara de tentar alguma! jurava o mestre de obras. Racho-o de meio a meio!

E rachava. Mas o bonito curioso, bem a contra-gosto, não tinha achado ainda uma boa ocasião para dizer em particular a Filomena o que lhe repetia todos os dias, ajoelhado a seus pés, defronte do marido. Por várias vezes estivera até "vai não vai", chegara a supor que a coisa se decidia; mas o diabo do Borges apresentava-se de repente, e... lá se ia a ocasião.

— Por ela, coitada! estou garantido! Considerava o Barradinhas, pensando nos olhares prometedores de Filomena. Está caidinha! Assim dispusesse eu de um momento!... Não queria mais que um momento!... Dizer-lhe uma palavra; entregar-lhe uma carta; fazer-lhe um sinal — bastava!

Mas o demônio do marido nem isso permitia!

A peste não fazia outra coisa senão vigiar a mulher! — Cacete!

Chegou o dia do espetáculo, sem que o Barradinhas tivesse oportunidade de ouvir dos lábios de Filomena aquilo que havia tanto tempo diziam os olhos indiscretos da formosa criatura.

— É para maçar! pensava ele indignado. É para fazer um homem perder a paciência! Sei que sou amado por uma mulher que adoro; caio-lhe aos pés, tomo-lhe as mãos, bebo-lhe nos olhos a confissão de sua ternura, e, a despeito de tudo isso, não consigo estar com ela um só instante; porque essa mulher tem um marido impossível, um marido único, um marido que não a larga, um marido que não vai cuidar de seus negócios, um marido-calamidade! Diabo leve quem inventou semelhante homem!

E o lindo curioso dramático, quando fazia esses raciocínios, ficava colérico, furioso, a passear no lugar em que estivesse, com as mãos nos bolsos, o coração oprimido como por uma injustiça.

— Oh! ela será minha! Isso juro eu! Para que serve então ter talento e ser moço e bonito?...

Às oito horas da noite estava o teatrinho completamente cheio; a orquestra havia já tocado a sua sinfonia, e esperava o sinal para lançar a música com que tinha de principiar a peça. Corria nos espectadores um sussurro de impaciência. Filomena, nervosa, trêmula, esperava atrás de um bastidor que o pano subisse, para mostrar-se ao público, esplêndida na sua roupa de caráter, com o seu papel na ponta da língua. O contra-regra corria de um para outro lado, perguntando se todos estavam prontos e declarando que ia principiar o espetáculo. "Fora de cena! Fora de cena!" O ponto correu a esconder-se no seu buraco. E, na confusão que se fazia na caixa, cada um tratou de tomar o seu lugar. Mas ninguém sabia dar notícias do Borges.

— Ora, onde, diabo, se foi meter este homem?!... perguntou o contra-regra aflito.

Por esse tempo, o Barradinhas, que vira Filomena pela primeira vez sem o marido, meio oculta no vão sombrio de um bastidor, concebeu logo a idéia de aproveitar a ocasião; deu uma volta pelo fundo da caixa, e, surgindo misteriosamente por detrás dela, ia a segurar-lhe a cintura e ferrar-lhe um beijo, quando a bela mulher vira-se de súbito, recua dois passos e solta em cheio no lindo rosto do galã a mais sonora bofetada.

O regente, supondo ser aquela palmada o sinal que ele esperava, rompeu a orquestra, o pano ergueu-se logo, e os espectadores viram o seguinte:

Filomena, sem poder conter as gargalhadas, torcia-se num divã; e Barradinhas, vestido de calção e meia, procurava uma saída, perseguido pelo Borges que, em mangas de camisa e botas de montar, numa cabeleira a escapar-lhe pelo pescoço, cercava-o por toda a parte, a dardejar bengaladas. No meio do palco uma das amadoras escabujava com um ataque de nervos, entre o grupo assustado dos curiosos, que iam e vinham, num fluxo e refluxo de encontrões promovidos pelo Borges.

O público defronte daquela cena tão agitada e tão ao vivo, tomou a resolução de aplaudir; enquanto o dono da casa, repetindo as bengaladas, bramia possesso:

— Pensavas que eu não te via, grande velhaco? Não sabias que trago há muito a pulga atrás da orelha, grande maroto?!

O Borges, com efeito, não perdera de vista o galã, na ocasião em que se vestia no camarim, farejou-lhe os planos e tanto bastou para ir, munido de bengala, esconder-se sorrateiramente perto da mulher, por detrás de uma empanada, sem mais pensar no drama, e surdo completamente aos reclamos do contra-regra.

Entretanto, o Barradinhas, vendo que não conseguia fugir pelos fundos do teatro, arremessa-se sobre a orquestra, salta por cima dos rabequistas, enfia pela platéia e ganha a chácara, e afinal a rua, onde se lançou de carreira, na frente do populacho, que a sua estranha roupa de veludo chamava e atraía.

É inútil acrescentar que este fato cortou pela raiz a idéia das representações, e induziu o Borges a fazer um bom conceito da mulher. Esta circunstância em parte o consolou de seus duros infortúnios; mas... desgraçado! uma nova provação já o esperava.

Filomena descobriu que o Urso lhe fazia mal aos nervos, e declarou positivamente não estar disposta a sofrer em casa semelhante bicho.

— Porém, que mal te fez o pobre cão?... perguntou o Borges, sobressaltado com a idéia de separar-se daquele fiel amigo de tanto tempo.

— Ora! respondeu ela. É um animal feio! feio, e está sempre a pregar-me sustos! Ainda não há dois dias, achava-me eu descuidada na sala de jantar, quando o maldito surge-me pelas costas. Não imaginas que susto apanhei! Demais, só gosto dos cães em certas e muitas determinadas circunstâncias: &mdashcomo acessório pitoresco de uma paisagem, não são maus; na qualidade de guia de cego, ao longo da rua, num dia chuvoso, também não desgosto; ou então dentro de casa num gabinete de trabalho — um cãozinho felpudo, asseado, muito gordinho, um kingcharles esquecido sobre as cadeiras — tem sua graça. Mas o Urso não está em nenhum desses casos, é um cão detestável, feio, sem pitoresco, sem razão de ser, sem pés nem cabeça de cão; parece um monstro, é grande demais, é bruto, não se lhe vêem os olhos, não vai bem em parte alguma; tão mal fica sobre o tapete da sala, como sobre a grama da chácara. Além disso, enche-me a casa de pulgas e tem uma morrinha insuportável! Se soubesses como ficas repulsivo depois de brincar alguns instantes com ele!...

Esta última consideração resolveu o Borges separar-se do querido Urso. Mandá-lo-ia para a casa de um amigo, morador do Engenho Novo, visto que na ocasião não dispunha em Paquetá de alguém que se pudesse encarregar disso.

Foi com os olhos cheios d'água que o bom homem viu no dia seguinte partir o seu fiel companheiro.

— Vai! disse consigo. Vai, meu pobre Urso! Não contavas naturalmente que eu te enxotasse de casa, como se enxotam os Guterres e Barradinhas.

— Tu! que sempre foste bom e verdadeiro!

— Pobre animal! pobre animal! dizia o Borges, fechando-se no quarto. Como tudo se vai transformando em minha vida! Já não possuo os meus dois melhores amigos, os únicos que me restavam — o Barroso e o Urso!

E chorava. O Barroso fora o seu companheiro de infância, em Paquetá. Principiaram a vida trabalhando no mesmo serviço e às ordens do mesmo patrão, pois que o Barroso era nesse tempo caixeiro do pai de Borges; antes do casamento, nunca tinham tido a mais ligeira rusga — foram sempre unha com carne, unidos — inseparáveis; mas depois... esfriaram, nunca mais se deram, e por conseguinte só restava o outro — o Urso, o fiel, o sempre o mesmo, o único que lhe não fazia recriminações...

E agora era este que se ia também... talvez para sempre!

Oh! quantas vezes não passaram juntos, horas esquecidas, como dois iguais!... Com que prazer o Borges, ao voltar do trabalho, não recebia no ombro as patas do companheiro e não lhe corria a mão pelo enorme lombo felpudo?...

Ah! Mas ele sem que Filomena o soubesse, havia de ir visitá-lo, pelo menos duas vezes em cada mês.

E desde então, efetivamente, o Borges, quando lhe apertavam as saudades do Urso, metia-se no trem e lá ia passar com ele alguns instantes. Que idílios nessas curtas visitas clandestinas! Que festas não trocavam entre si os dois amigos!

O animal parecia compreender aquela afeição do Borges, porque, mal o via apontar ao longe, disparava a correr para ele, grunhindo, a sacudir a cauda, a fazer-lhe negaças, a cercá-lo, a pular, a morder-lhe os calcanhares, num alvoroço de prazer. Mas um belo dia em que o mestre de obras foi visitá-lo, disseram-lhe que o dono da casa havia na véspera fugido aos credores, e ninguém sabia dar notícias dele, e muito menos do Urso.

O Borges voltou muito triste, e assim se conservou durante o resto do dia. A mulher veio a saber a causa dessas mágoas, e, para o consolar, tomou-lhe a cabeça, entre as mãos, e deu-lhe um beijo em plena boca; mas fugiu logo, deixando o marido na doce esperança de ver terminar ali as suas provações e com elas o longo suplício de Tântalo, que o devorava.

Assim não sucedeu.

Nem só o trinco permanecia corrido, como a paixão de Filomena pelas festas e pelos requintes de luxo exacerbava-se de um modo assustador. Agora, não se passava um dia, uma hora, que lhe não acudissem novos meios de gastar "carradas de mil réis". Ela quis carruagens, parelhas de raça, lacaios gordos à moda parisiense, grooms de cara raspada, que servissem o chá de gravata branca e casaca; quis as esquisitices do gosto, os sévres, as sedas de Macau, os móveis caprichosos e as jóias empobrecedoras para quem as dá.

O Borges principiava a temer uma ruína. Ele era rico..., mas, afinal, que diabo! não tinha à sua disposição as Índias inglesas! Daquele modo onde iriam parar?... Verdade é que ultimamente, instigado pela mulher, que desejou sentir as comoções comerciais, arriscara na Bolsa grandes quantias que lhe trouxeram lucros consideráveis.

— Mas a fortuna também cansa! refletia o capitalista. E se me desanda a roda, posso dar com os burros n’água.

Por esse tempo exercitava-se ele no bilhar. Já sabia tomar grogues, dizer mal dos cantadores do lírico, e perder dinheiro nas corridas do Prado.

— Contudo, ainda te falta uma coisa, observou-lhe a mulher uma vez em que ele queria fazer valer os seus progressos.

— Ainda! Qual?

— Um título.

— Mas para que um título?

— Não posso compreender um homem sem qualquer distinção. Um título serve para disfarçar a nulidade do nome. Creio que não terás a pretensão de imaginar que possues um nome!

— Como assim?! Pois eu não...

— Teu nome não existe; não tens uma individualidade, não tens por onde te possas distinguir dos outros! Se se disser o — João Borges — é como se se dissesse — o José da Silva; ninguém sabe quem é, ninguém conhece!

— Mas, filha, cada um é conhecido na sua roda. Eu sou conhecido na praça!...

— Que praça!...

— A praça do comércio.

— Ora! fez a mulher com desdém — isso não é ser conhecido; ainda se fosse na praça pública, vá!

O Borges fez um gesto severo.

— Se tivesses talento, acrescentou a mulher, lançar-te-ias na literatura, ou na política, ou no teatro, ou na guerra de qualquer país. Mas nem é bom pensar nisso! Tuas ambições limitam-se a uma patente da guarda-nacional, a uma faixa de subdelegado ou à presidência de alguma irmandade religiosa; coisinhas que eu abomino, como a expressão mais chata e mais ridícula da estupidez burguesa!

— Mas, filha, nem eu sou subdelegado, nem nunca prestei serviço à guarda-nacional; e, desde que torceste o nariz às irmandades, nunca mais aceitei cargos, tanto da ordem de Nossa Senhora da Candelária, como do Sacramento e da de S. Francisco!

— Grande fúria! exclamou a mulher. O que sei é que não tens um título, e é preciso que o tenhas!

— Isso é o que menos custa! disse o Borges. Serei comendador, arranjarei a comenda da Rosa!

— Comendador! Estás doido! Isso não é um título! Eu só aceito de barão para cima. Comendador! Comendador todo o mundo o é! Ora, comendador! Com efeito!

— E se eu arranjar um baronato? Heim?! Se eu o arranjar, prometes ser mais condescendente?...

Filomena respondeu passando-lhe os braços em volta do pescoço, e dando-lhe um beijo na face.

— Pois juro-te que serás baronesa ou coisa que o valha. Hoje tudo isso se obtém com muita facilidade do governo português...

— Mais receio a demora! volveu Filomena. Ardo de impaciência por ser alguma coisa — baronesa! condessa! viscondessa! oh! como é bonito! como é poético. "A sra. condessa quer se dar ao incômodo de entrar?. . . A sra. baronesa já se retira?... Oh! É excelente! É encantador! Lamento apenas não me ter lembrado disto há mais tempo; a estas horas podíamos estar já no gozo do título! Receio a demora!

— Não; talvez não demore muito, sra. viscondessa! disse o marido galhofeiramente, tomando as mãos da mulher.

— E se fôssemos a Portugal tratar disso?... Lembrou ela. Ainda não fizemos uma viagem!..

— Pois vamos lá a Portugal! disse o Borges. E ficou resolvido que partiriam, logo que estivessem dadas as providências necessárias para a compra do título.

Durante o resto desse dia, Filomena mostrou-se muito chegada ao marido. À noite, às costumadas visitas, não se cansaram de falar na próxima viagem. Borges estava radiante, a mulher nunca o tratara tão carinhosamente. Os amigos chegavam a estranhá-lo. Abriram-se garrafas de um Tokai magnífico, que o futuro titular recebia diretamente da Hungria, e o mestre de obras bebeu entusiasmado à sua felicidade.

— É agora! dizia consigo esfregando as mãos. É agora que se decide o negócio!

Mas o ferrolho ainda não se abriu dessa vez.

— Pois veremos quem vence, exclamou ele, atirando-se furioso na sua cama de solteiro. Ou eu conseguirei, quanto antes, entrar naquele quarto, ou leva tudo o diabo nesta casa! Arre! Nem sei até o que me parece semelhante coisa!

Não pôde dormir o pouco que lhe restava da madrugada, e, mal surgiam no horizonte os primeiros raios do dia, já o Borges estava de pé.

— Cecília! gritou ele, vendo passar a criada por defronte da porta do seu quarto. Espere aí, que tenho o que lhe dizer.

A criada fez um gesto de surpresa, vendo o marido de sua ama tão sobressaltado.

— Você é uma boa rapariga! principiou ele. É fiel, bem procedida e diligente!...

Cecília olhou-o espantada.

— Eu sempre tive boas intenções a seu respeito, continuou o Borges. Minha mulher está satisfeitíssima com o seu serviço!

— São bondades... balbuciou a rapariga. abaixando os olhos.

— Não! A verdade diz-se!... Sou-lhe grato, sou! Para que negar?..., E fique sabendo que hei de ajudá-la no seu casamento!...

A fisionomia da criada iluminou-se, e sem dizer palavra, ela pôs-se a torcer e destorcer o seu avental de algodão.

— Sei das suas intenções com o Roberto, e estimo que se casem. Pode contar com o enxoval!

Cecília quis beijar-lhe a mão.

— Não tem que agradecer. Olhe! guarde isto para comprar um vestido novo.

E o Borges meteu-lhe nos dedos uma nota de vinte cruzeiros.

— Oh! meu rico amo! Exclamou ela, com os olhos úmidos de comoção — como vossemecê é bom! Eu e mais o Roberto havemos de lhe agradecer por toda a vida!

— Bem, bem! disse o Borges, mas preciso que você me preste um serviço, um pequeno serviço...

Cecília adiantou-se mais, cheia de solicitude.

— É quase nada!

E abaixando a voz, depois de olhar cautelosamente para os lados:

— Desejo penetrar hoje no quarto de minha mulher.

A criada recuou estupefata. Agora o seu rico amo lhe parecia simplesmente doido. Que diabo queria dizer aquilo?!...

O Borges compreendeu o espanto da rapariga e disfarçou:

— Sim, sim! Não era uma simples questão de lá ir. . . Isso seria o menos! Puf!

— Então? animou-se a perguntar Cecília.

— Mas é que eu queria entrar sem que minha mulher contasse comigo, percebe?... A criada fez-se vermelha.

— Vossemecê então desconfia de minha ama?! Que aleive, meu Deus! Uma injustiça assim! Desconfiar de uma senhora que é mesmo um anjo! Uma senhora que...

— Não! Não é isso, filha! Quem lhe falou aqui em desconfianças?! Ninguém desconfia de sua ama. Está a tomar o pião à unha! — ninguém conhece melhor minha mulher do que eu!

— Ah! respirou a criada, credo! até me deu uma coisa na boca do estômago!

— Está claro que sua ama, nesse sentido, é o beijinho das esposas! Não tenho que me queixar, graças a Deus! Mas eu queria lá ir, sem que ela me esperasse; percebe? É uma fantasia como outra qualquer!... Vossemecê nem tem que se comprometer com isso... Ela, no fim de contas, é minha mulher, que diabo!

— Meu amo quer que eu lhe arranje a chave do quarto?...

— Qual! Isso não adianta nada! Ela tem um ferrolho, fechadinho por dentro.

— É exato, é! disse a criada, lembrando-se de já ter visto o tal ferrolho.

— Pois aí é que bate o ponto! Trata-se de arranjar os modos de abri-lo por dentro, sem que ela o saiba, compreende?

A criada ficou a pensar. Mas para que exigia o amo semelhante coisa?... A senhora podia ficar maçada e voltar-se contra ela!...

— Não tenha receio! disse o Borges. Eu respondo por tudo! Valha-me Deus! não é nenhum crime querer um homem entrar no quarto da sua mulher!...

— Vossemecê então promete?...

— Que a não deixo ficar mal? Ora! nem tem que saber!...

— Não é isso... digo: ajudar-me no meu...

— No seu casamento?... Pode ir descansada, contanto que arranje o que lhe disse.

Ficou assentado que Cecília nessa noite se esconderia no quarto da senhora, e, quando esta já estivesse dormindo, abriria cautelosamente o tal ferrolho, que ela, por cautela, untaria previamente com azeite. E se a criada guardasse bem o segredo de tudo isso, nem só teria o seu enxoval prometido, como ainda havia de chimpar um par de brincos à moda.

— Mas veja lá agora se vai dar com a língua nos dentes!

Foram as últimas palavras do Borges.

A criada saiu dali para ir ter com o Roberto.

— Esta noite não te posso aparecer senão mais tarde, disse-lhe ao vê-lo. Tenho que ficar no quarto da senhora.

— Há alguma novidade?

— Não! É cá uma coisa. É cá um negócio com o patrão! — E ria-se. — Eu não te posso dizer mais nada!...

— Olé! Então é coisa de segredo?...

— Estou a dizer que é, homem!

— Segredo! Você tem segredos com o patrão?!

— Mau, que me tomas o pássaro no ar! Eu nada tenho com o patrão! Tenho é de ficar no quarto da senhora!

Roberto mordeu a ponta do bigode:

— Tu premeditas alguma, raio de uma peste! Já! desembucha pr’aí, se não queres que eu te faça falar por outro modo!

— Mas é, que eu não te posso dizer nada! Só o que te afianço, é que as coisas vão mudar de figura! Não tens mais razão de demorar o nosso casamento; o amo cai com o enxoval e ainda com uma ajuda de custas! Hein? Que te parece?

— Parece que tudo isso me cheira a patifaria! Donde saiu agora essa bondade do patrão?!

E vendo que a criada não respondia:

— Não tencionas desembuchar, criatura?!

— É que se dou com a língua nos dentes, vai tudo por água a baixo!

— Ora, deixa-te de tolices e conta lá o que houve! Bem sabes que entre nós não há segredos!

— E antes houvesse! Mal fiz eu em permitir umas certas coisas antes do casamento!... Se não fosse isso, você com certeza não me trataria desse modo, e já me teria levado à igreja!

O Roberto sacudiu os ombros.

— É! fez Cecília, muito queixosa. Até aqui toda a dificuldade era o enxoval; venho dizer-lhe que o patrão se encarrega disso, e você, em lugar de despachar-se por uma vez, ainda me dá muxoxos e põe-se a desconfiar de mim! Tola fui eu em ir atrás de cantigas! Diabo do traste!

— Deixa-te tu de cantigas e vamos ao que interessa!... Despeja pr’aí o que houve!

— Não despejo nada! Você não me merece coisa alguma, é um velhaco; enquanto eu me fiz tesa, não lhe faltaram maneiras; agora é isto que se vê!.

E começou a chorar:

— É preciso não possuir um bocado de consciência para enganar desta forma uma pobre rapariga, que nunca teve pecha que lhe botassem.

— Guarda as lamúrias para outra ocasião, filha!

— Pois se é como eu digo!... Ingrato! Se eu não o quisesse tanto, não estava agora aqui me arreliando!

— Deixa-te de asneiras.., fez o criado, passando-lhe por condescendência a mão na cabeça. Não te podes queixar — eu também gosto de ti!

— Sim, sim. Mas o casamento não ata nem desata! dizia ela, soluçando.

— Ora! E que teríamos lucrado nós em nos termos já casado?...

— Que teríamos lucrado! Olha o disparate! Você talvez não lucrasse nada, mas eu?! Penso nisso todos os dias! Até estou mais magra! Lembrar-me só de você é muito capaz de deixar-me neste estado... dá-me venetas de acabar com a vida!

— Não digas asneiras, toleirona! O que tem de ser teu, às mãos te chegará!

E depois de beijá-la, sem carinho:

— Mas vamos lá. Conta o que houve entre vocês, tu e o basbaque do patrão!...

— Prometes guardar segredo?... perguntou Cecília, fazendo por esticar as carícias do noivo!

— Ora!

— Então lá vai! O patrão quer entrar, sem ser esperado, no quarto da patroa!

— Com que fim?!

— Sei cá! Diz ele que é uma fantasia como outra qualquer!...

— Mas dai?... Que diabo tens tu a ver com isso?...

— Pois aí é que bate o ponto. A patroa fecha-se por dentro; eu fico escondida no quarto para abrir a porta ao marido! Creio que aquilo é arrufo entre os dois!

Roberto coçou a parte inferior do queixo:

— Hum-hum! resmungando. Não sei, não sei! Queira Deus que essa história não te dê na cabeça!... Olha que não se encontram duas casas como esta!... Isto aqui, filha, vale mais que o céu!...

— Ora o que! fez a criada. — Não é crime introduzir um marido no quarto de sua mulher!... Aquilo foi arrufo com certeza; ela não quer dar o braço a torcer; mas eu que a conheço, sei que não lhe vou cair em desagrado, ao contrário — verás como me agradece!

— Isso é lá entre vocês, mulheres, que se entendem! Em todo o caso, é bom pensar antes no que vai fazer!

— Deixa correr o barco por minha conta!

Entretanto, o Borges, à proporção que a noite se aproximava, sentia o coração pulsar-lhe com mais força. Ah! desta vez, sem dúvida, iam acabar os seus tormentos. Aquele novo plano não poderia falhar!

Namorado algum, dos mais ardentes, palpitou com tanta febre no antegozo de uma aventura. Nunca uma alma apaixonada ansiou tanto pela entrevista de seu ideal; nunca os segundos foram contados com tanta impaciência; nunca o momento supremo da ventura foi atraído com tanta sofreguidão.

Borges, assim que viu a casa completamente recolhida, tratou de tirar as botas e subiu pé ante pé ao segundo andar.

Não se pode conceber o sobressalto em que ia o pobre homem; tremiam-lhe as pernas; a cabeça andava-lhe à roda; o sangue afluía-se-lhe ao coração, que parecia querer saltar-lhe pela boca.

— Filomena já devia ter pegado no sono, ou pelo menos estar adormecendo.

Esperou mais um instante. Nada, porém, de aparecer a criada!

Decorreu mais algum tempo — um quarto de hora, uma hora talvez; ele não o podia determinar: sua impaciência fazia parecer uma noite inteira, uma eternidade.

— Oh! Como o torturava aquela tardança!

E Cecília nada de aparecer; Borges principiava a desesperar. Haveria alguma novidade... ela teria ido contar tudo à senhora? pensou o namorado, rangendo os dentes e fechando os punhos!

— Se me traístes, miserável, verás o que te sucede! Verás o que te sucede!

Mas um rumor quase imperceptível veio nesse instante do lado do quarto de Filomena; a porta abriu-se muito de mansinho, e a criada saiu cautelosamente, às apalpadelas, como se não quisesse tocar com os pés no chão.

— Está dormindo?..., perguntou-lhe o Borges em segredo, indo ter com ela.

— Está, respondeu Cecília no mesmo tom. Pode entrar. Mas veja se me vai comprometer...

— Descansa. Aí tens para os teus alfinetes... Deu-lhe mais dinheiro.

A rapariga afastou-se, pensando no pobre noivo, o Roberto, que àquelas horas já devia estar farto de esperá-la; e o Borges, cheio de mil cautelas, penetrou no quarto perfumado e virginal de sua esposa.

Uma dúbia claridade de lamparina aquarelava meias sombras vagas e transparentes em torno do leito, onde Filomena se aninhava entre nuvens de linho branco. Ouvia-se um respirar tranqüilo e cadenciado, que vinha da cama.

Quando o marido sentou o primeiro pé no tapete da alcova, a mulher estremeceu, encolhendo-se toda com um suspiro.

Borges retraiu-se maquinalmente, e procurou esconder-se atrás do reposteiro da porta; mas o arfar ansiado de seu peito denunciou-o.

Filomena virou-se em um novo arrepio, e, depois de algum silêncio, perguntou com a voz alterada:

— Quem está aí?...

Borges não tugiu nem mugiu.

— Quem está aí? Não ouve?! tornou ela, erguendo a cabeça e fitando a porta.

O marido viu-a levantar a meio, desembaraçar um braço dos lençóis e procurar tateando alguma coisa na gavetinha do velador; ele porém, não respondeu, e apenas se traiu por um estalo seco das juntas do joelho.

— Quem está aí, fale com os diabos, se não quer receber uma bala nos miolos!

E engatilhou um revólver, fazendo pontaria ao reposteiro.