Paulino ficou encantado com a instalação que no belvedere lhe preparara o amigo.

Mas não só este, que bem se adivinhava a mão leve e inteligente de uma mulher de gosto e educação na escolha de alguns móveis, e sobretudo na desses pequenos objetos íntimos indispensáveis a um homem de tratamento: escovas, pequenos espelhos, estojo de unhas, porta-jornais, vide-poches, porta-relógio, cinzeiros etc.; tudo isso disposto com aparente descuido, mas com requintado instinto artístico.

Da cama - de um gosto antigo, de colunas altas e torsas, sustentando um laquear do tamanho do próprio leito, e acolchoado de cetim azul - podia o hóspede, ao acordar, estender e passear os olhos, cansados de sono, pelo paradisíaco panorama que daquela elevação se desfrutava.

Uma campainha elétrica ligava o belvedere ao chalé, para chamar os criados; precaução inteligente, mas que pouco serviria, por haver o médico trazido o seu valet de chambre, o Alfred - um rapaz de 30 anos, de bigodes louros e olhos azuis, ar felino, cheio de astúcia e a quem foi dado o outro quartinho contíguo ao do amo. Esses dois quartos, uma sala-gabinete e um vão, no teto, para malas e caixas, eram todos os cômodos do belvedere.

Na sala-gabinete nada faltava - havia uma mesa central, redonda, uma excelente secretária americana, meia mobília do mesmo tipo, e estantes envidraçadas, esperando os seus futuros moradores.

— Então você tinha decretado a minha residência aqui, sem mesmo consultar-me? - perguntava o médico a Fernando no dia seguinte.

— Sim, tinha-o decretado e sem te dar a honra de consultar-te; Só o que faltava é que não viesses morar conosco!

— Principalmente havendo este chalezinho independente, onde podia estar em toda a liberdade acrescentou Corina, acentuando com um sorriso intencional as últimas palavras.

— Ah Em liberdade completíssima: podes entrar e sair quando quiseres. E a propósito: aqui tens as chaves.

— Obrigado - disse Paulino, recebendo-as, e acrescentou: - só lhes peço uma coisa, mas que é indispensável - é não se incomodarem comigo, não me esperarem nunca para almoçar ou jantar.

— Fica entendido. O almoço é às dez, o jantar às cinco ou cinco e meia. Teu talher lá estará sempre na mesa, quer eu esteja em casa quer não. Quando não estiveres à hora das refeições, fica entendido que não vens. Dessa forma nem tu nem nós nos incomodaremos.

— Perfeitamente. Vocês são um casal de anjos - respondeu Paulino.

E a vida dos três ficou assim regulada.

O médico abriu consultório na rua dos Ourives e arranjou-o com um certo luxo, que contrastava com a generalidade dos consultórios médicos: escuros, sujos, tristíssimos, cheirando a mofo e a baratas.

Aconselhado pelo amigo, e mesmo um pouco constrangido por ele fez anúncios um tanto espetaculosos, em que se declarava "ex-chefe de clínica do doutor X, de Viena, com prática nos hospitais de Paris, Londres, Viena e Berlim, especialista em moléstias do sistema nervoso e do aparelho circulatório" etc.

Não foi mau o conselho.

Dentro de algumas semanas já tinha uma clientela de cinco e seis consultantes por dia; o que o enchia de esperanças.

O seu plano, o seu sonho era clinicar, trabalhar incessantemente durante oito ou dez anos e com o dinheiro ganho, que devia constituir uma pequena fortuna, ir residir na Europa, em Paris provavelmente.

A sua prática de hospitais e os sérios estudos que fizera no estrangeiro haviam-no aparelhado para tornar-se dentro em pouco tempo um dos médicos mais procurados e mais reputados da corte. O seu programa apresentava-se, pois, em condições de fácil execução.

Seguindo os conselhos de colegas mais velhos, alguns seus ex-professores, limitou muito a sua clínica domiciliária, para evitar os ossos e não se fatigar depressa.

Descia geralmente muito cedo, logo após a ducha e o café, de modo que quase só nos domingos almoçava no chalé: mas jantava lá regularmente, quase sempre.

As vezes Fernando não vinha, o que acontecia todas as quintas-feiras, em que tinha a sua partida de voltarete em casa do corretor Paranhos. Nesses dias o médico e dona Sinhá jantavam sós. Depois do café davam um longo passeio pela chácara, conversando sobre mil coisas banais, descansando sob a copa das mangueiras: voltando a casa, Corina fazia um pouco de música, ele recitava versos de Coppée, Musset, Victor Hugo, ou jogavam as damas, e às dez horas, depois do chá, ele despedia-se e subia para o belvedere.

Nessas noites a luz do seu gabinete continuava acesa até muito tarde, acontecendo algumas vezes que Fernando, ao recolher-se lhe viesse dar as boas-noites e conversar um momento sobre as novidades do dia, antes de ir deitar-se.

Assim decorreram três meses.

Uma noite, Paulino voltando do Lírico onde fora com Fernando e a mulher ouvir a velha Força do Destino, e tendo-se despedido deles junto da escada que levava à sala de jantar, subiu para o belvedere e fez a sua toalete de dormir; mas, como não tivesse absolutamente sono, acendeu um charuto e veio debruçar-se a uma das janelas.

Noite encantada. O plenilúnio opalino, de uma transparência e suavidade dulcíssimas, banhava tudo, inundava o céu e a terra; envolvia as copas unidas das árvores, montes abaixo, num véu tenuíssimo de bruma luminosa e fazia-as projetar sombras fantásticas no chão.

O golpe de vista era imponente; abrangia todo o vale da Tijuca e Andaraí. Longe, muito longe, num formigueiro de pontos tremeluzentes, a cidade adormecida; umas filas deles destacavam retas, muito longas, algumas paralelas, outras cortando-se - eram os lampiões das ruas.

Um tilintar de campainha ouviu-se; era o bonde que os trouxera, que voltava para a cidade: lá passou ele, muito embaixo, ao fundo, rua Conde de Bonfim afora, como uma rubra lagarta fosforescente.

Era uma noite cariciosa de outubro - nem quente nem fria, apenas tépida, cheia de mistérios, em que se ouviam no silêncio augusto do luar os leves rumores da natureza no seu trabalho incessante, e um amavio lânguido e poderoso avassalava as almas, romantizando-as docemente.

Paulino, só, no alto do seu mirante, em face da profunda noite luminosa, sentiu-se, subjetivando-se a pesar seu, penetrado de uma melancolia inquieta e grave, como um pressentimento. Era o mesmo estado de alma em que se surpreendera na noite da festa da sua chegada, mas muito agravado; o que era então lineamento era agora traço, o que então era névoa fizera-se nuvem. Até aquele momento fora protelando covardemente o exame, a análise severa do seu estado psicológico, que ele sentia agravar-se progressivamente, Mas a intuição súbita e clara da sua gravidade decidiu-o a fazê-la naquela noite perturbadora. "Que tenho eu? Que se passa em mim? Amo eu porventura Corina? E quando nasceu em mim este sentimento desgraçado? Mas será mesmo amor?"

Estas interrogações formaram-se-lhe atropeladamente no cérebro. Não sabendo a qual responder primeiro, socorreu-se à memória e procurou recordar as primeiras impressões que lhe causara Corina.

Lembrava-se bem.

Morava com Fernando, seu amigo, seu protetor dedicado e delicado. Absorvido e ocupado inteiramente pela confecção da sua tese inaugural e depois com a revisão das provas e preparo dos exames finais, não acompanhava senão mui raramente o amigo nos seus passeios e divertimentos.

Um dia, voltando aquele de um baile, alta madrugada, e encontrando-o ainda curvado sobre os livros, confessou-lhe Fernando que estava apaixonado, mas apaixonado como Romeu por Julieta ou Paulo por Francesca di Rimini, e declarou-lhe que decididamente ia casar.

Era Corina, a afilhada do conselheiro Prestes, a mulher que ele amava e queria desposar. Não lhe pediu conselho; fez confidências.

Em breve estabeleceu-se correspondência entre ela e ele, trocaram-se os retratos. Fernando mostrou-lhe o dela: era formosíssima.

Fez um esforço violento da memória para recordar a impressão que lhe deixara o retrato de Corina, e lembrou-se: fora muito forte, mas rápida, logo apagada.

Cerca de um mês depois Fernando pedia e obtinha a mão da moça e convidava-o a acompanhá-lo a sua casa para apresentar-lha.

Foi com ele uma tarde quente de verão, 15 dias antes da formatura, à casa do conselheiro, nas Laranjeiras. Lembrava-se perfeitamente do seu vestuário, do seu penteado, das jóias que ela trazia naquela tarde. Vestia uma toalete de cassa branca com pintinhas vermelhas e fitas cor-de-rosa e tinha o cabelo suspenso das fontes e da nuca, deixando livre o pescoço, tendo nos lóbulos das orelhas, nos pulsos e no peito as peças de um adereço de coral rosa e branco.

Ficara perturbado ao vê-la e muito enleado ao falar-lhe. Por quê? Atribuíra-o na ocasião a ser Corina a futura mulher do seu melhor amigo, tomando aquela impressão por um reflexo da amizade que a este o ligava tão estreitamente. Mas aquela impressão repetiu-se da segunda vez que lá foi, e, se a perturbação passou por fim, não passou a timidez que sua presença lhe infundia sempre.

Formou-se; o banquete de sua formatura efetuou-se no Hotel do Globo, mas no dia imediato a família Prestes, em atenção a Fernando, ofereceu ao médico um sarau comemorativo da sua investidura cientifica. Lembrava-se nitidamente de quanto o fez sofrer a presença olímpica daquela mulher, que ia ser, que já era de outro homem, do seu amigo, do seu protetor. Mas, senhor de uma vontade firme e disciplinada, conseguiu dominar-se, abafar aquele sentimento absurdo e considerar sagrada, mesmo para o seu pensamento, aquela criatura adorável.

Assistiu ao casamento sem comoção, apenas triste, como invadido de um desânimo; mas, depois, quando ia, espaçadamente, visitar os noivos a Petrópolis, o espetáculo da felicidade do seu amigo, que parecia completa, enchia-o de alegria e de serenidade. Recordava-se ainda e muito bem que, ao contemplar demoradamente o retrato de Corina, tivera o pressentimento subitâneo, violento, claro como um fato, de que aquela mulher havia de exercer na sua vida uma influência, não só decisiva como funesta.

Todas essas idéias e todos esses sentimentos estavam sem dúvida profundamente adormecidos, se não estavam mortos, quando ele, dois meses depois do casamento de Fernando, embarcou para a Europa; mas, agora, perguntava a si próprio se não teriam influído na sua resolução de partir e no fato de ter-se demorado tanto lá fora.

Acreditava que não foram estranhos a essa dupla resolução porque se lembrava de tê-la formado no dia mesmo em que impôs à sua vontade o não pensar mais naquela criança.

Três anos de ausência não havia, então, bastado para matar o embrião daquela paixão criminosa? Entretanto, na Europa não pensara mais nela de modo especial, com idéias afetivas, mas, naturalmente, com a atenção comum que dispensava a tudo que o interessava mais ou menos.

Na viagem de regresso foi ainda dessa forma que pensou nela, como pensava na irmã, em Fernando, nos outros amigos: com uma alegria calma, sem ansiedade nem receio. Mas, ao chegar, quando, a bordo, ela, por ordem do marido, juntou seu busto ao dele, passando-lhe os braços em torno, pondo a cabeça ao alcance de seus lábios e ele a abraçou e lhe beijou os cabelos cheirosos... oh! Nesse instante sentiu uma comoção profunda, imensa, igual à que havia experimentado três anos e meio antes, naquele inolvidável sarau da casa do conselheiro. Naquela ocasião não ligara a essa comoção a importância que tinha realmente: julgava-a produzida pela solenidade daquele grande momento, em que revia quase todos os entes que lhe eram caros e a querida terra do seu berço. Mas nesse dia mesmo, à mesa do almoço, e à noite, no baile, o seu mal-estar indefinido, a sua inquietação sem causa, que foi crescendo dia a dia, terrivelmente, como uma planta venenosa, e que agora o subjugava, clara, enorme, inocultável, como um sol, esse estado enfermo da sua alma, tudo isso... Ah! Não podia mais fugir à evidência, como não se foge à dor: era preciso suportar-lhe a presença, admiti-la, reconhecê-la, confessá-la! Amava Corina, amava a mulher do seu amigo, amava-a como um louco, como um perdido, como um réprobo, como um miserável! E, em face da noite profunda, augusta, serena, à luz melodiosa do plenilúnio argênteo, o desgraçado soluçou longamente, angustiadamente, a infinita miséria do seu criminoso amor!

Depois que as primeiras lágrimas correram, abundantes e ardentes, num desafogo largo, uma tranqüilidade desceu sobre o espírito do médico. Dir-se-ia que elas o haviam deixado quite com a sua consciência; já podia suportar a idéia do seu crime: comprara com uma grande dor e com amargo pranto o direito de ser infame! E a sua consciência repetia-lhe: "Amas a mulher do teu melhor amigo, do teu protetor", sem que ele se defendesse mais, com o silencioso assentimento de um réu confesso.

Mas o espantoso foi que nessa alma direita e limpa, logo após essa tremenda certeza, em vez de um movimento de revolta indignada, esta interrogação apontasse:

"E ela? Amar-me-á também?"

Quando ele ouviu em si mesmo, de si para si, a voz dessa curiosidade terrível, teve um gesto de pavor, saiu da janela, abriu um livro qualquer sobre a secretária e, apertando a cabeça nas mãos, mergulhou os olhos na página... E leu, leu, leu... Leu maquinalmente, sem entender o que lia...A pergunta maldita subia sempre, do seu coração, mais alta, mais ansiosa, mais aflitiva. Era inútil tentar afogá-la. Acolheu-a, como ainda há pouco havia acolhido a certeza do seu amor culpado: o primeiro degrau é que custa.

Meditou longamente, estudando o caráter, o temperamento, a educação de Corina. Primeiro que tudo tinha a certeza de que ela não amava o marido. E que o não amava provava-o o seu flerte em Petrópolis com o secretário da legação francesa, flerte que, estava informado, tinha ido até onde ir um flerte de mulher casada que não adulterou, e aquela não havia adulterado só porque Fernando, graças à sua carta de Paris, abria-lhe os olhos a tempo: provou-o depois o namoro escandaloso com o barão de Santa Lúcia, segundo soubera também, namoro que foi interrompido pelo seu regresso... se de fato o foi!

E a ele, Paulino, amava-o ela? Recapitulou todas as fases, todos os incidentes ocorridos depois da sua chegada. Havia indícios veementes de afirmação - olhares, alusões, apertos de mão, sorrisos, suspiros. Além disso havia algum tempo que ele notava em seu quarto, quando voltava da cidade, um vestígio qualquer da estada ali de Corina - flores frescas num vaso, uma arrumação elegante dos frascos e utensílios do toucador ou dos livros da estante e um vago perfume, esse odor di femina, que se não confunde, que paira, atraiçoa e grita...

Mas que importância tinha isso, partindo de uma mulher coquete? Não, Corina não o amava, provocava-lhe a corte, por mero coquetismo; aceitaria o dele, levado talvez até ao ato físico, mas não o amava. Era uma leviana.

Oh! Ainda bem, porque então estava salvo! Fugiria! Mas de que modo?

A primeira coisa a fazer era mudar-se para a cidade, deixar aquela proximidade, aquela convivência perigosíssima. Ser-lhe-ia fácil achar um pretexto: a sua clínica, cada dia mais extensa. Uma vez mudado, espaçaria as visitas, procuraria distrações, e que melhor que a própria clínica, que o exercício escrupuloso da sua profissão?

Estava encontrada a porta de salvamento. Uma grande alegria o invadiu então, como um bálsamo. Continuaria sendo um homem honrado, digno da amizade de Fernando.

E essa satisfação moral acalmou-o tão completamente que se deitou e adormeceu, momentos depois, de um sono profundo, pesado e sem sonhos, como o sono dos justos e das crianças.