No dia seguinte a essa noite, inolvidável para Paulino, Santinha veio visitar dona Sinhá.
Era pouco mais de meio-dia quando chegou. Corina estava a uma das janelas do seu toucador, que dava sobre o fundo da chácara, e esperava que Alfred, o valet de chambre, saísse do belvedere, para ir cuidar dos livros, pequenos objetos e bibelôs de Paulino, quando Maurícia - a velha mucama mestiça, que a criara de leite em casa do conselheiro e entrara no seu dote - penetrou no quarto e disse:
— Dona Sinhá, nhá Santinha está aí.
Corina voltou-se com um sobressalto, como se houvesse sido apanhada em ato ilícito; a mucama repetiu o recado. Surpreendia-a a visita da amiga. Esteve um momento para negar-se a recebê-la.
— Você disse a ela que eu estava em casa, Maurícia?
— Disse, sim senhora.
— Bem; manda-a entrar.
— Para aqui mesmo?
— Sim, para aqui.
E preparou-se para receber a amiga; deu um jeito rápido de desalinho aos cabelos, estirou-se na cadeira grande, tomou do livro mais à mão e simulou estar lendo atentamente.
Enquanto esperava a visitante, com os olhos no livro, perguntava a si própria a que viria ela e, depois, como recebê-la: friamente? Com calor?
Havia quase dois meses que estavam interrompidas as visitas que se faziam uma à outra, duas e três vezes na semana, e as saídas a compras, a passeio, a visita de amigas comuns. A causa desse esfriamento de relações tão intimas - causa inconfessada, antes dissimulada cuidadosamente - era o doutor Paulino. Santinha, insaciável loureira, que julgava de seu dever fazer-se cortejar por todos os homens novos, belos ou célebres, havia jurado aos seus deuses - ou ao seu deus, que era o filho de Vênus - que havia de disputar o recém-chegado à sua amiga intima, obrigando-o a fazer-lhe a corte, se a amá-la não pudesse.
Corina que percebera logo o plano, entrou de pronto a manobrar para combatê-lo e inutilizá-lo. Levara-a a isso, no princípio, apenas o amor próprio: se Paulino a alguma delas devia fazer a corte, era decerto, a ela, a quem conhecia há mais tempo, em cuja casa morava, e que era mais moça, mais bonita e mais elegante. Preferir-lhe a amiga seria injuriá-la, feri-la de morte no ponto mais delicado de sua alma. E começou a desenvolver a sua tática militar para afastá-lo da amiga, sem reparar, a louquinha! que afastando-o de Santinha, aproximava-o de si própria - resultado tanto mais seguro que se viam e falavam diariamente, quase morando juntos.
Havia cerca de dois meses que as duas amigas só se visitavam nos dias de recepção de cada uma: o dia l° - Corina, o dia 15 - Santinha.
E que a intimidade antiga estava estragada por um secreto fermento de malquerença, que não era senão ciúme, amor-próprio assanhado; já não tinham que se dizer entre si, constrangidas ambas. Assim, limitaram as suas visitas aos dias oficiais, em que facilmente podiam simular a cordialidade extinta.
Paulino, tendo compreendido logo o que se passava, e querendo evitar os perigos e mesmo o pouco de ridículo de sua situação, resolvera não aparecer mais nos dias de recepção - quer em casa de uma quer na casa da outra. Assim, pretextando um doente grave e uma enxaqueca tenaz, falhara à última partida de Santinha e à última de Corina - recurso de defesa que bastante desconcertou a ambas, principalmente a Santinha, que poucas ocasiões tinha de vê-lo.
Nessas condições, a visita da amiga, só, aquela hora, causava a Corina uma surpresa justificável. Que seria? A que viria? E como acolhê-la? Friamente? Cordialmente?
Mas a entrada da amiga tirou-a dessa dificuldade. Santinha ali estava, ruidosa, expansiva, risonha como dantes.
— Vinha ver se tinhas morrido, ou, caso estivesses viva, perguntar-te se me julgavas morta!
Corina desculpou-se mal, mas como pôde. Então a outra, sem transição:
— E o dr. Paulino, como tem passado? Não o vejo há um mês, pelo menos.
— Não sei, julgo que passa bem. Raramente o vejo apesar de quase morarmos juntos - respondeu Corina, com um ar despreocupado, demasiado frio e solto para ser sincero.
— Mentirosa! - exclamou a outra, rindo.
— Seriamente - afirmou dona Sinhá. Mas o rugor que subitamente lhe subiu às faces desmentiu-a sem permitir defesa.
— Olha, meu bem, franqueza! Queres saber de uma coisa? Venho oferecer-te pazes e...
— Como pazes? Não estávamos em guerra, creio eu...
— Venho oferecer-te pazes e... aliança - apoiava nesta palavra. - Não deves mais ter ciúmes de mim.
— Ciúmes, eu? De quem? Por quê?
— Ciúmes do dr. Paulino. Eu sou da escola do "pão, pão: queijo, queijo". E não deves tê-lo mais, porque eu não o amo, nem o quero, nem aspiro a que venha a amar-me.
— Mas...
— Não me interrompas, Corina. Ouve-me. Vou dizer-te, confessar-te tudo, abrir-te a minha alma, como este livro; - e tomando o livro que estava no colo da amiga - era a Mulher de Gelo, de Bellot - abriu-o com as mãos ambas. - Quando o dr. Paulino chegou da Europa e o vi assim, bonito, elegante, distinto, cuidei que ia amá-lo; dias depois acreditei que já o amava, porque a tua convivência com ele exasperava-me; a idéia de que o vias todos os dias e lhe falavas e que jantavam e passeavam juntos punha-me louca de...
— De inveja... - interrompeu com maldade a outra.
— Seja de inveja. Mas, depois de alguns dias, tive a prova de que o não amava.
— Ah! E pode-se saber qual foi essa prova? - perguntou a voz irônica de Corina.
— Posso eu, por ventura, ter segredos para ti, minha querida? A prova que tive de que não amava o Paulino foi simplesmente esta: conheci que amava a outro.
— O boticário? - perguntou Corina. Mas desta vez, com uma ironia tão mordente, tão agressiva, que a mulher de Viriato lhe respondeu, muito séria, com voz trêmula:
— Para que me falas com essa ironia, com essa maldade? Se continuas nesse tom, vou-me embora. E eu que vim tão contente, tão arrependida, tão disposta a tudo te dizer, com a maior sinceridade!
Levou o lenço aos olhos. Chorava como uma criança. Corina comoveu-se; aquele pranto desarmou-a, fê-la acreditar na sinceridade da amiga.
— Perdoa-me, Santinha, perdoa-me! - e abraçava-a e beijava-a. - Mas é tão estranho tudo isto: a tua visita inesperada, as coisas extraordinárias que me tens dito, que eu, involuntariamente, desconfiei e preveni-me contra ti. Mas agora creio que és sincera. Perdoa-me e continua.
— Não, não se trata de Honorato - volveu Santinha enxugando os olhos e com a voz úmida ainda. Esse moço fez-me a corte de um modo tão rápido e cerrado que eu, no primeiro momento, meio aturdida, não pude repeli-lo. Mas, pouco depois, refleti e consegui conservá-lo a distância conveniente, o que me foi fácil, porque era Paulino que eu queria, que eu julgava amar. E de outro que se trata, que há apenas um mês conheço e a quem amo perdidamente. Oh! Não sorrias, não duvides! Desta vez te juro que é sério, não é como das outras - um mero capricho; é o amor, o verdadeiro amor!
— Ora, Santinha, tenho-te ouvido dizer isso, e quase pelas mesmíssimas palavras, a respeito de todos os teus amantes. Ainda não há um ano o dizias em relação ao Barros, o "boneco de louça"; já te não lembras?
— É possível, mas não o dizia deste modo, com este calor, este entusiasmo sincero. Desta vez estou apaixonada loucamente.
— E quem é esse príncipe encantado, que conseguiu abrasar de puro amor o coraçãozinho da fada borboleta?
— E, é... - Santinha hesitava. - Mas não te rias. E o João Ferry.
— O Ferryzinho? Mas é uma criança!
— Ah! Tu o conheces?
— O Fernando mostrou-mo na rua, e depois ouvi-o recitar uns versos, no festival da Gemma Cunibertti, creio eu. Podia ser teu filho, Santinha.
A mulher de Viriato corou até a raiz dos cabelos; mas, depois de um momento de silêncio, tornou, com um tom contrafeito:
— Que queres tu? Caprichos da sorte! Eu tinha-o lido. Decorei mesmo algumas das poesias dos Rondós e Baladas. Seus versos encantaram-me, tão sentidos, tão apaixonados! Já o admirava; da admiração à estima a distância é curta e a da estima ao amor ainda mais curta.
— E onde o conheceste?
— Na Exposição da Academia de Belas-Artes. Foi o Barinelli que me apresentou ele.
— Qual dos Barinelli - o pintor ou o escultor?
— O escultor. São muito amigos. Fez-me tal impressão o rapaz, que me perturbei toda; quase perdi a fala.
— É assim tão formoso?
— É formoso, sim, como uma pintura antiga. Jesus Cristo aos 20 anos devia ser assim. E, depois, que voz agradável! Conversamos muito tempo. Ofereceu-se para mostrar-me a exposição; levou-me diante dos principais quadros. Recitou-me versos que fizera sobre o grupo Jesus e a Pecadora do Barinelli. Que bonitos! Por fim separamo-nos. E não o pude ver mais. Foi isso há 15 dias. Debalde tenho ido à Rua do Ouvidor e voltado à exposição. Mas ontem lembrei-me de que ele me havia dito que freqüentava muito o atelier dos Barinelli; ora, como o escultor me convidou para visitar o atelier deles, veio-me a idéia de lá ir, na esperança de encontrá-lo lá.
— É uma boa idéia.
— É; mas como seria esquisito ir sozinha à casa de dois rapazes solteiros, embora artistas, venho pedir-te que me acompanhes.
— Eu? Que idéia!
— Nada mais natural. Somos ambas casadas: vamos a um atelier ver obras de arte. Que tem isso de reparável?
— Sim, pensando bem... - concordou Corina.
— E é um grande favor que me fazes. Sei que não é o primeiro. Mas estou pronta a prestar-te idênticos serviços quando precisares deles.
Corina refletiu um momento e acedeu por fim:
— Pois sim, acompanhar-te-ei. Quando querer ir lá?
— Hoje, agora mesmo.
— Que pressa!
— Se soubesses como têm sido longos os dias que tenho passado sem vê-lo!
E, mudando de tom e agarrando a amiga pela cinta:
— Já vês que eram as pazes e a aliança que eu te vinha propor. Aceitas?
— Como não hei de aceitar, minha querida? E as duas amigas beijaram-se comovida e longamente.
Quando se desabraçaram, Santinha disse baixinho, com um sorriso de mistério grato:
— Ama à vontade, livremente, o teu Paulino, e dispõe de mim como entenderes.
— Eu, amá-lo? Estás louca? - fez dona Sinhá, e as faces purpurejaram-se-lhe vivamente, como se o clarão de uma lanterna vermelha lhe batesse de chapa no rosto.