Eram sete horas da manhã. Fernando, de volta da sua ducha matinal, em pijama de flanela branca, de riscas vermelhas, e chinelas de palha, vendo abertas as janelas do belvedere disse consigo: "Paulino madrugou hoje" e foi vê-lo. Encontrou Alfred em mangas de camisa, arrumando.
— Bonjour, Alfred. Le docteur s'est levé aujourd'hui de bonne heure, n 'est-ce pas? Où est-il?
— Monsieur le docteur est parti au petit jour, monsieur.
— Comment! Il est parti? Mais pour où?
— Sais pas, monsieur. Il m'a remis cette lettre pour vous.
E entregou-lhe um pequeno envelope azul.
Fernando leu o seguinte bilhete:
"Meu caro Fernando, o calor começa a incomodar-me. Fujo para Nova Friburgo, onde vou passar alguns dias. Não tive ocasião de ver-te ontem e por isso deixei de avisar-te.
Comprimentos a dona Sinhá. Teu, Paulino".
— C'est bien, merci.
E Fernando desceu, contrariado com a ausência inesperada do amigo, porque precisava conversar com ele a respeito de uma grande empresa que projetava lançar em breve, sob a forma de sociedade anônima, com o título "Melhoramentos da Tijuca", e cuja presidência tencionava oferecer-lhe. Tomou o café na varanda, acendeu um cigarro e pôs-se a ler os jornais.
Estava em seu auge a febre de especulações da bolsa, que ficou conhecida sob a designação pitoresca e singular de Encilhamento, que domina o período decorrido da proclamação da República até meados de 1891
Todas as folhas vinham cheias de inúmeros e vistosos anúncios de companhias, lançadas com capitais formidáveis, que pompeavam em grossos caracteres tentadores. Cada dia pululavam novas empresas, de arrojados intuitos, de planos admiráveis e de resultados não só maravilhosos como infalíveis, no dizer dos incorporadores. Na parte comercial figuravam as ações de bancos e companhias com cotações extraordinárias, que acusavam ágios espantosos.
Fernando estava ganhando rios de dinheiro. Já havia incorporado dois bancos e três companhias, e era fiscal de meia dúzia delas. Inteligente e profundamente prático, não se deixava alucinar porém, em meio daquele delírio; jogava, sim, mas com uma calma relativa e aplicando logo em imóveis ou títulos de real valor boa parte dos lucros auferidos. Naquele momento verificava ele com visível contentamento o êxito completo de uma operação importante que há dias preparava e que lhe metia no bolso algumas dezenas de contos de réis. Foi quando ouviu a voz da mulher exclamar a seu lado:
— Muito bom dia, sr. Rothschild! - e sentiu os seus lábios frescos pousar-lhes na testa.
— Bom dia, queridinha - e enlaçou-lhe a cinta com o braço esquerdo, segurando na outra mão as largas folhas abertas do Jornal do Comércio. - Comecei bem o dia; acabo de verificar que o meu jogo nas Sorocabanas deu o resultado previsto: ganho uns 60 contos. Mas estou contrariado porque o Paulino... A propósito: ele jantou cá ontem?
— Jantou; encontramo-nos na rua do Ouvidor e viemos juntos da cidade.
Isto era mentira; mas Corina, com a prodigiosa perspicácia do seu sexo, antevira logo os inconvenientes de dizer que o havia encontrado no atelier dos irmãos Barinelli, porque podia parecer que era um rendez-vous combinado.
— E disse-te que partia hoje?
O ar feliz que enchia de riso os olhos e a boca da moça desapareceu subitamente, e os supercílios franziram-se-lhe numa forte contrariedade.
— Não; mas ele partiu?
— Sim, esta madrugada, para Friburgo. É esquisito que, tendo jantado contigo, não te haja dito coisa alguma.
— Nem a você.
— Deixou-me este bilhete; lê.
Se Fernando fosse observador ou se tivesse motivos para o ser, teria notado o tremor das mãos da mulher sustendo a pequena folha de papel, e, ao almoço, que ela apenas tomara um ovo quente e uma chávena de chá. Mas nada disso notou, nem mesmo a frieza com que ela recebeu a notícia de haverem chegado da Europa o cupê e o landau mandados vir pelo marido e que ela esperava ansiosamente, pedindo notícias todos os dias.
Quando se viu finalmente sozinha, respirou de alivio.
Fechou-se no quarto.
Não havia dúvida de que a partida súbita de Paulino fora resolvida depois do incidente daquela noite e provavelmente por causa dele. Era evidente, nesse caso, que aquele primeiro beijo, preparado pelo capricho ou pela maldade do acaso, o perturbara profundamente e de modo tal que o obrigara a fugir, atordoado, receoso das suas conseqüências.
Mas era, então, claríssimo que a amava! E esta idéia expeliu do seu rosto conturbado a última sombra de desgosto. E se ele não voltasse? Voltaria por força. Tinha ali tudo o que lhe pertencia. E que ficaria fazendo em Friburgo? Havia de voltar... Mas se se mudasse? Era o mais provável; porém ela havia de encontrar algum meio de impedi-lo.
Lembrou-lhe consultar Santinha; era precioso o seu conselho para esses casos. Não havia dificuldades para aquela mulher: achava saída para tudo; a sua imaginação sugeria-lhe expedientes seguros para todas as situações, mesmo as mais difíceis ou melindrosas.
É verdade que lhe tinha medo e não só medo, também uma espécie de repugnância vaga, instintiva. Achava-a pervertida em demasia. Não podia compreender aquela sede insaciável de gozo em que ela ardia e que a atirava aos braços de todos os homens com quem podia tratar de perto, sem amá-los, contanto que fossem moços. E lembrava-se com certo terror que se houvesse obedecido a todos os seus conselhos já teria tido três ou quatro amantes. Felizmente o acaso ou a sua boa estrela a havia protegido sempre da sua influência nefasta, muitas vezes no momento mesmo da queda, como acontecera com o caso do barão de Santa Lúcia.
Mas agora a coisa era outra. Ela amava Paulino e acreditava que ele também a amava ou viria a amá-la com igual ardor; mas sentia-o fugir-lhe, como que defendendo-se, e era preciso retê-lo. Ora, só a experiência e o tato da amiga poderiam fornecer-lhe o plano estratégico de que precisava.
Resolveu ir vê-la, e já começava a vestir-se quando se lembrou de que tinha todo o dia tomado: esperava a costureira e o professor de canto. Ficou muito aborrecida. Com que severidade julgou o delicado trabalho da sra. Durandot, a modista do high-life feminino de todo o Catete e Botafogo! Tudo lhe parecia inferior ou mal feito: os estofos, o corte, os enfeites... Nunca errara tantas notas e compassos como naquele dia, a ponto de não acabar a lição, pretextando estar com enxaqueca - essa providência das mulheres feridas do mal de amor.
Estava impaciente, nervosa, quase febril. Felizmente o marido telefonou que não viria jantar, retido na cidade por negócio urgente.
Quando ele entrou, as dez horas, já ela dormia profundamente, calma e risonha como um anjo.