Eram nove horas da manhã quando Paulino se recolheu ao hotel. Dormira apenas três horas, de um sono de esgotamento, pesado como chumbo, de que foi despertado, entretanto, em sobressalto, como se alguém o houvesse sacudido com rudeza.
Ao seu lado dormia tranqüilamente a infeliz criatura que a dona do hotel lhe havia mandado para o quarto, e que ele já encontrara adormecida, quando desceu da sala da roleta, e que adormecida deixou, sem lhe tocar. Contemplou-a alguns minutos com um olhar de compaixão profunda e um sorriso de amarga ironia.
Era uma mulher franzina, morena, de 17 a 18 anos; um tipo de anêmica-nervosa, membros delicados, cabelos negros, rosto miúdo, de traços finos e graciosos: nos seios descobertos não havia ainda vestígio de cansaço: conservavam, só eles, um resto da virgindade poluída e morta não havia muito.
Era, evidentemente, uma estreante, uma novata da escola do vício. Estaria totalmente perdida? E Paulino, que apenas despira o paletó, revestia-o lentamente, contemplando sempre a infeliz e cismando, comovido, na sua sorte. De repente sentiu incomodá-lo no lado esquerdo do peito um volume grosso, que estava no bolso interno do fraque. Levou a mão ao bolso e subitamente - por uma singular associação instantânea de uma recordação e de uma idéia - lembrou-se do dinheiro que ganhara, horas antes, à roleta e pensou em salvar com ele aquela rapariga.
Estivera de uma "sorte única, de uma chance brutal", como dizia, maravilhado, o Oliva, que perdeu até a última nota de cinco tostões. Era a primeira vez que jogava a roleta, e, como soe geralmente acontecer, por um capricho estranho e perverso da sorte, fora de uma felicidade assombrosa. Jogava sem cálculo, sem plano, com vontade e intenção de perder... Para que diabo precisava de dinheiro, ele, um condenado à morte? E repugnava-lhe o ganho ao jogo. Mas, apesar de tudo, ganhava sempre. Era uma perseguição da fortuna, cruelmente irônica, e que, por lhe parecer tal, irritava-o sobremaneira. Às cinco horas da manhã terminava a banca, rebentada, levada à glória pelo jogador bisonho e calouro, com espanto e inveja dos parceiros e com sombrio e calado despeito do banqueiro, o qual, entretanto, desfez-se em amabilidades com ele, convidando-o a voltar naquela noite:
— Não falte logo, seu doutor. Está de sorte; deve aproveitá-la. A parceirada é boa e o botequim está às ordens. É pedir o que quiser, até champanha. - E nos olhos piscos do Teixeirão ardia a febre sórdida da cobiça, lia-se a ânsia de apanhar novamente nas garras o jogador móvel, para arrancar-lhe todo o lucro e mais o dinheiro que levasse.
Paulino nada respondeu, nauseado de tanta miséria. Mas pensava no destino que daria àquele dinheiro vil. Eram dez contos e quinhentos mil-réis. A primeira idéia foi dá-los ao Oliva; mas repeliu-a logo: voltariam para a roleta, para o banqueiro, sem benefício de ninguém. Dou-o aos pobres; pensou. E com essa idéia meteu-o no bolso num grande rolo.
Agora, diante daquela pobre coitada, encontrava o destino melhor que podia dar aquele dinheiro imundo para poder purificá-lo, fazendo o bem: arrancar com ele aquela mulher do vício, da ignominia, da miséria.
Puxou uma cadeira para junto do leito, sentou-se nela e acordou brandamente a moça, tocando-lhe repetidas vezes no ombro nu. Ela abriu os olhos, que fechou logo, encadeados pela luz forte do sol, para, reabrindo-os, fitá-los no médico. Deu um gritinho de espanto e puxou a colcha para cima, tapando a cabeça.
Paulino abaixou a colcha brandamente, descobrindo-lhe o rosto e disse-lhe:
— Então que é isso? Não se assuste; e conversemos.
Ela sorriu, reparando nas feições daquele desconhecido que lhe falava tão docemente, bem impressionada por elas. E disse, com uma voz um tanto pastosa:
— Foi vancê que dormiu comigo?
— Fui eu, sim.
— Ué! Como é que eu não senti nada?
Paulino sorriu, mas, em vez de explicar-lhe o fato, disse-lhe, tomando-lhe uma das mãos, que pendia da cama:
— Diga-me: pode acreditar que um homem desconhecido, que a vê pela primeira vez, possa desejar sinceramente, sem interesse, fazer-lhe um grande beneficio? - Ela arregalou os belos olhos, grandes e negros, num espanto; mas acudiu logo:
— Acredito, sim; por que não? Ainda há gente boa no mundo...
— Tanto melhor - volveu Paulino. - Agora, conversemos. Desejo salvá-la do lameiro em que vai afogar-se. Mas conte-me antes a sua história, sem omitir nada, sem mentir, como se eu a confessasse.
— Conto, sim se seu doutor quer saber ela, eu conto. E olhe que eu não sei mentir. Mentira é uma coisa tão feia! O pior é que eu não sei falar direito.
— Fale como puder; que eu a ajudarei. Bastará que me responda o que eu lhe perguntar. É casada?
— Sim senhor. Me casei vai fazer um ano, com um home muito mau, de quem eu não gostava. Eu queria casar era com primo Juca, isso sim. Mas papai não quis; perferio seu Zidóro, que tinha negócio de criação no mercado. Que havera eu de fazer? Casei mesmo. Papai morreu alguns meses depois. Seu Zidóro me maltratava, me obrigava a fazer serviços supriores às minhas forças. Depois pegou a beber e quando estava nelas me espancava. Até que uma noite fugi pra casa de mamãe.
— E ele não foi lá buscá-la?
— Quais o que! O que ele queria era ver-se livre de mim. Pois se já tinha amigação tratada com a Maricota Cocada, uma mulata gorda, doceira, também do mercado! Eu fiquei morando com mamãe e ajudando ela. Mas, coitadinha, está quase entrevada do reumatismo; tem dias que nem pode se mexer. Eu quis trabalhar, mas meu trabalho não chegava para tanta coisa, para cozinhar e lavar para nós e ainda coser para fora. Eu, só com minhas tristes mãos não podia, não é? - perguntou ela, com um tom ingênuo e sincero, como buscando justificar-se previamente.
— Decerto - fez Paulino. - E, depois que sucedeu?
— Depois... esta mulher daqui, dona Felisberta, que me conhecia do mercado, por ser freguesa de meu marido, tendo sabido que eu fugira, começou a freqüentar nossa casa, a nos fazer presentes, a nos dar gêneros, muito obsequiadeira. Até que se explicou. Me convidou para ir um dia à casa dela: que ia lá um moço que me conhecia de vista e me estimava muito e que ele queria se amigar comigo. Eu contei a mamãe. Esta, no princípio, me aconselhou que não, que não... Depois, como dona Felisberta já não dava mais nada pra nós e a fome ia chegando, mamãe, um dia, me disse que não era mau eu vir até cá ver o moço. Se servisse... E eu disse, então, a dona Felisberta isso mesmo. Ela ficou muito contente e deu-nos de tudo: farinha, carne-seca, feijão... E disse pra mim que uma noite iria me buscar. E eu fiquei esperando ela.
Paulino lembrou-se então que a alcaiota lhe dissera que estava reservando aquela rapariga para o "Comendador".
— E depois? - perguntou.
— Onte, já muito tarde, dona Felisberta foi me buscar. Eu não queria vir, tinha medo àquela hora... Mas a mulher explicava que o moço tinha chegado de uma viagem e queria por força me conhecer, que era só para ele me conhecer e eu conhecer ele; que era só para conversar... Se me agradasse, entonces... E mamãe, que tem muita confiança em dona Felisberta, me mandou vir com ela, certa de que não havia de assuceder nada. E eu vim. Ela me trouxe para este quarto, me despiu, botou cheiro na minha camisa, me disse que esperasse um bocado, que ela ia buscar o moço. Eu chorei, tive medo... Um home que eu não conhecia! Mas... depois... não sei mais nada. Dormi, parece. O moço era vance?
— Era eu, sim, e dormi um pouco a seu lado, sobre as roupas da cama, mas sem tocar no seu corpo.
— Como vancé é bom! E é tão bonito! - exclamou, com uma expansão de admiração infantil. - Havemos de viver muito bem, muito felizes, se vancê se agradar de mim. Eu sou uma pobre caipirinha... não sei nada... Mas sou muito quieta, muito mansa, verá... Olhe, conheço vancê há meia hora, e já gosto muito de vancê, acradita? Mas... por que tem esse ar tão triste? Não é feliz? Não lhe agrado? Diga! - e, meigamente, tomava-lhe as mãos.
Ele teve um sorriso de tristíssima ironia; mas, em vez de responder-lhe, perguntou-lhe: - Então nunca teve relações com outro homem senão seu marido?
— Lhe juro por este breve bento que não! - Exclamou ela, puxando do seio um cordão de ouro fino, de que pendiam bentinhos, figas, corais torcidos, e beijando um dos escapulários.
— Muito bem, agora responda-me: quer viver honestamente com sua mãe, garantida de privações?
— Uê, gentes, pois isso é coisa que se pergunte?
— Então, ouça... Mas antes diga-me ainda: você não tem algum parente sério, capaz de dar-lhe bons conselhos em relação a negócios, a dinheiro?
— Tenho, sim, meu padrinho, seu Manuel Vicente, que é tipógrafo de um jornal. O defeito dele, coitado, é ser pobre; mas tem muito juízo e todos lhe querem bem.
— Tanto melhor; escute. Aqui neste embrulho estão dez contos e quinhentos mil-réis. Os dez contos são para você; os quinhentos mil-réis para você distribuir com os pobres, em minha intenção. Você irá procurar seu padrinho e lhe entregará este dinheiro com um cartão meu, em que vou escrever que fui eu que lho dei.
E Paulino pôs o dinheiro sobre a beira da cama, e tirando um cartão, escreveu-lhe a lápis, no dorso! "Entrego nesta data a...
— Como se chama? - perguntou ele, levantando os olhos para a rapariga.
Ela não pôde responder-lhe logo: chorava, com o lençol comprimido aos olhos; mas, pouco depois, tartamudeou:
— Corina... Corina Amélia de Sousa.
Se a pobre rapariga não tivesse os olhos ocultos nas dobras do lençol e fitasse o seu estranho protetor, teria soltado um grito de espanto e receio. Paulino estava lívido, com os lábios trêmulos e brancos; os olhos arregalados... A coincidência era tão grande e tão imprevista que justificava aquele estado de confusão e assombro.
Ergueu-se, passeou um pouco pelo quarto. Já então Corina o fitava, acompanhando-lhe os movimentos com os olhos úmidos e um sorriso delicioso de felicidade. Ao fim de cinco minutos, mais senhor de si, concluiu o bilhete: "...a Corina Amélia de Sousa a quantia de dez contos de réis, de que lhe faço presente, com o fim de concorrer para a sua felicidade. Este dinheiro é meu e ganhei-o ao jogo na noite de ontem..." Datou e assinou. E veio entregá-lo à rapariga, sentando-se de novo. Esta, num movimento rápido, saltou da cama para os joelhos dele e, enlaçando-o nos braços nus, exclamava, ora rindo, ora chorando:
— Como vancê é bom! Como vancê é bom!
De repente, fitando-o com os olhos banhados de felicidade, perguntou-lhe , com um encantador acento de ingenuidade, recuperando, num momento de sublime transfiguração moral, a voz, o encanto e a graça da virgindade perdida:
— Vancê me dá um beijo?
Paulino segurou-lhe a cabeça, com ambas as mãos, e beijou-a na testa. Nesse momento sentiu a caipirinha rolarem-lhe no seio moreno, por dentro do cabeção de crivo da camisa, duas lágrimas quentes, grossas, vagarosas - e que não caíram dos olhos dela.