Aquela cena imprevista com a pobre caipirinha, encontrada num bordel e que a sua boa fortuna lhe permitiu arrancar ao vício e à miséria, fizera ao seu espírito, profundamente agitado pelos terríveis pensamentos gerados da sua resolução suprema, um benefício inefável: produzira nele o mesmo efeito do azeite sobre as ondas enfurecidas do mar: acalmara-o subitamente.
Assim se explicava a serenidade, apenas melancólica, do seu rosto ao penetrar no quarto do grande Hotel. Num incidente fortuito, triste episódio da vida noturna dos viciosos, encontrara e bebera e energia e a calma de que precisava para cumprir o seu fadário negro, para executar a sentença que, como juiz, contra si próprio pronunciara...
Apenas fechava a porta à chave, uma pressa o tomou de "acabar com aquilo".
Urgia matar-se: Fernando podia chegar naquela noite mesmo, podia sobrevir qualquer fato que o obrigasse a adiar o suicídio, quem sabe a voltar ao Rio... Mas sentia-se fraco, fatigado, e também um pouco febril: era o cansaço da noitada.
Tomou uma ducha fria, que lhe ergueu as forças e fustigou os nervos; almoçou rapidamente e depois de haver vedado a sua porta sem exceção de visitante, fechou-se no quarto a trabalhar.
Em duas horas estava copiada a carta para Fernando. Sobrescritou-a e lacrou-a com cuidado. Escreveu outra depois e meteu-as ambas em uma só sobrecarta.
Depois do almoço, passou a fazer o seu testamento.
Constituiu herdeiros de todos os seus bens a seu irmão Adolfo e a sua única irmã, esposa de Castrioto; deixou contos de réis para o seu afilhado Dano, filho destes; legou todos os seus móveis, quadros e livros a Fernando Gomes, as jóias e o relógio ao seu cunhado, e todas as roupas ao seu criado Alfred.
Uma vez concluído o testamento, foi levá-lo à aprovação de um tabelião; terminado esse ato, dirigiu-se ao correio, onde registrou uma volumosa carta, com este endereço: "Dr. João Itaparica - Bahia".
Eram cinco horas da tarde.
Que mais lhe restava fazer?
Mas, quando recapitulava o que havia feito e inquiria de si mesmo se nada mais lhe faltava senão matar-se... lembrou-lhe de repente o meio de morte. Como se esquecera de uma circunstância tão importante, mesmo capital, até quase à última hora? Matar-se parecia-lhe nada; o modo de matar-se, o instrumento de morte, é que o preocupava, afigurando-se-lhe o principal daquela fúnebre empresa. E então esta idéia lembrava de que ia morrer; ou antes: a idéia da morte não o incomodava, nenhuma sensação lhe fazia, porque o seu espírito estava inteiramente ocupado e absorvido na escolha da arma, da forma de suicídio.
Tinha a escolher entre o veneno, o revólver o punhal.
O veneno era bom. Uma dose violenta de arsênico, ou estricnina, ou algumas gotas de ácido prússico, ou de láudano... o láudano proporciona um passamento calmo, um sono fácil e doce, provocador de sonhos paradisíacos. Um banho morno e uma dose de láudano... era delicioso! A idéia do banho morno trouxe-lhe uma recordação histórica: podia, como Sêneca, cortar as veias com uma tesoura ou bisturi, e deixar-se esvair, esgotar-se, despejar a vida em jorros de sangue, que tingiriam de púrpura a água tépida e o mármore branco da banheira... Também seria bom... Mas o veneno tinha inconvenientes: não encontraria provavelmente boticário que lhe vendesse o tóxico desejado e, se encontrasse, iria sujeitar o pobre-diabo a alguma penalidade; além disso a morte não era segura: podiam administrar-lhe algum antídoto a tempo de salvá-lo...
Arredou logo o veneno...
Escolheria o revólver... oh! um bom Smith-Wessen, disparado sobre o coração, dá morte pronta, certa, infalível...
Mas o revólver lhe era antipático - uma arma brutal, deselegante, indiscreta... A detonação seria medonha, alarmaria toda a gente do hotel e a vizinhança; invadiriam o quarto, antes mesmo que ele expirasse...
E se a bala lhe não atravessasse o coração? Teria uma agonia longa e horrível... Condenou também a arma de fogo, o punhal, a navalha, ah... o bisturi! Deceparia a carótida esquerda, ou as duas, num golpe semicircular, profundo, seguro... O bisturi, sim; delicado, discreto, silencioso e, no entanto, implacável, levando a morte, branca e fria, na lâmina... Era ao seu bisturi, com o qual tantas dores adormecera com uma só, tantos padecimentos mitigara, tantas vidas salvara; era ao seu bisturi que pediria dentro em horas o resgate dos seus erros, a libertação de seu inferno, a suprema dádiva do eterno sono.
Escolhida a arma definitivamente, só lhe restava voltar ao hotel e executar-se. Mas a tarde caía: as ruas esvaziavam-se; nas portas das lojas sombrias os empregados passeavam palitando os dentes, ou fumavam, encostados aos umbrais, algumas carruagens corriam em demanda de palacetes nos arredores; um ventozinho fresco picava a pele; a temperatura arrefecia e uma cinza fina chovia sutilmente, do alto céu silencioso, de momento a momento mais fundo e mais sombrio, cobrindo as coisas de melancolia, enchendo as almas de uma saudade vaga, nostálgica, aflitiva como um adeus sem esperança.
E Paulino sentiu de repente um aperto no coração, um nó na garganta... Uma consternação entrou com ele, devastada, solitária, desesperante como um deserto desconhecido e intérmino... Teve vontade de chorar, ali, em soluços, em gritos, correndo pelas ruas, com as mãos espalmadas para o alto, clamando a sua desgraça, a sua miséria, o fim e o nada do seu eu. E essa vontade foi tão imperiosa que, para não sucumbir-lhe, voltou logo para o hotel.
Julião e Oliva haviam-no procurado e prometido voltar. Avisou ao porteiro que os não receberia, como a ninguém mais.
Encerrou-se no quarto, fechou a janela, embora ainda houvesse um resto de dia, e acendeu o gás. Aquele crepúsculo fazia-lhe um mal terrível... aquele ocaso, que era o de sua vida também, tornava-lhe penosíssima a idéia da morte.
Mas não pôde mais... Atirou-se sobre a cama de bruços e, mergulhando a cabeça nas almofadas, chorou copiosamente, com raiva, com dó, com desespero, convulsionado por um sentimento estranho, complexo, desconhecido, de incomportável crueza. De repente ouviu bater à porta...
Ergueu-se, enxugou os olhos, compôs o semblante, e abriu. Era Alfred, que vinha às ordens. Perplexo, mal reposto do abalo nervoso daquela crise, não sabia o médico que lhe dissesse. Disse-lhe, por fim, que se achava indisposto, que lhe fosse buscar uma garrafa de vinho do Porto e um cálice; e, cumprida aquela ordem, deu-lhe mais esta: que só lhe aparecesse na manhã seguinte às sete horas.
Estava novamente só. Ainda bem! Bebeu de um trago um cálice de vinho; acendeu um charuto e entrou a passear em toda a extensão do quarto, esforçando-se por assenhorear-se novamente de si próprio.
Então, que covardia era aquela? Fora a sugestão do crepúsculo... Mas passara. Que horas eram? Sete horas. Matar-se-ia à meia-noite, à hora legendária dos mistérios, dos crimes e.... dos amores. Dos amores! Como foram curtos e desgraçados os seus!
Tirou do bolso uma fotografia de Corina; mas, como viessem com ela alguns papéis, lembrou-se que devia fazer uma limpeza em toda a sua papelada. Meteu logo mãos à obra: rasgou rapidamente documentos extintos e cartas sem importâncias; apartou as de valor e destruiu em pequenos fragmentos as que lhe pareceram comprometedoras.
Só restava o retrato de Corina; pôs-lhe as mãos para rasgá-lo, mas deteve-se: queria contemplá-lo até os derradeiros instantes de sua vida. Que linda era! Como o fizera feliz aquele corpo maravilhoso de ninfa!... Mas só o corpo, que a alma era a das borboletas. Não o amara aquela mulher; não o amara. Nunca havia amado nem amaria nunca. Era uma leviana, uma frívola, uma coquete. Afinal, não era dela a culpa. Fora o seu temperamento e fora a sua educação que a fizeram assim.
Ah! Se ela o houvesse amado, tê-lo-ia acompanhado, arrostando, com ele e como ele, bravamente, a justa cólera do esposo, os ridículos e as grosserias do escândalo, as exprobrações hipócritas da sociedade e as maldições enfáticas da moral pública... Se o amasse, não pensaria no marido, na sociedade, na moral, no escândalo, no que diria fulano e sicrano: só pensaria nele, entregar-se-ia nas suas mãos, dando-lhe o seu coração e a sua vida.
E então ele não seria obrigado pelo respeito de sua própria honra a matar-se, porque poderia bradar a Fernando : "É a mim que ela ama, e por isso te deixa para acompanhar-me. E eu adoro-a! Fere-me, mata-me, se te apraz; mas fica sabendo que não conseguirás, arrancando-me a vida, arrancar a minha imagem do seu coração!" E se ele o ferisse, como lhe seria doce e gloriosa a morte! Oh! Sonho irrealizado!
De repente, como se aquela idéia o alucinasse, sacou do bolso o estojo cirúrgico, escolheu dentre os ferros um bisturi de cabo de tartaruga, abriu-lhe a lâmina espelhenta, fixou-a, puxando um pequenino botão, e examinou-a atentamente, experimentando-a na palma da mão: depois descansou-o ao lado da fotografia. Meteu o estojo novamente no bolso; depôs o relógio e a corrente sobre a mesa, despiu e pendurou o colete e o paletó, tirou o colarinho e os punhos, e destes os botões de ouro, reuniu todo o dinheiro num maço, que embrulhou em uma folha de papel, sobre a qual escreveu a quantia e, tudo isso feito, consultou o relógio: eram 11h30. A sua calma enchia-o de espanto, assustava-o.
No quarto contíguo acabava de entrar o respectivo hóspede, cantarolando alegremente a ária famosa da Carmen:
L' amour est enfant de bohème.
Il n'a jamais connu de loi;
Si tu me m'aimes pas, je t'aime,
Et si je t 'aime, prends garde à toi!
— Como é feliz este bruto! Não ama, de certo; ou ama e é amado - murmurou raivosamente Paulino - Estará tudo pronto? - pensou, em seguida.
Lembrou-se de deixar uma declaração escrita para arredar suspeitas e evitar acusações injustas. Tomou de uma folha de papel e escreveu em caracteres graúdos e firmes:
"Mato-me por tédio e nojo da vida, mas considerando-me perfeitamente íntegro do cérebro. Deixo sobre esta mesa dinheiro e jóias e neste quarto malas e objetos de meu uso. A tudo isso determino destino claro e preciso no testamento que fiz hoje aprovar pelo tabelião Silva Júnior e está ao lado deste papel. Meu último pensamento e para minha irmã, meu irmão e meu amigo Fernando Gomes".
Em seguida datou e assinou.
Il n'a jamais connu de loi...
garganteava a meia voz o vizinho, atirando os botins ao chão. Um sino bateu os três quartos de hora. "Tenho 15 minutos de vida!" exclamou Paulino, com os olhos muito abertos para o relógio. Sentou-se à mesa, fincou sobre ela os cotovelos e entrou a contemplar o retrato de Corina. "Amo-te, amo-te, amo-te! Lembraste, ingrata, de que foram estas as únicas palavras que pude pronunciar naquela noite terrível do teu triunfo de coquete e da minha desgraça de homem honrado? E era a verdade! Amava-te como um louco! E é como louco que te amo ainda; sabes? Como és linda! Que olhos os teus, Corina! Oh! Não me sorrias assim, neste momento supremo, que me fazes perder a coragem, que me tornas um miserável! Não me tentes, Corina, com esses olhos, com esses lábios, com esse seio de deusa... porque fugirei do dever para o amor e irei viver indignamente, na traição e na hipocrisia, arrastando-me a teus pés. Minha Corina! Meu amor! Meu amor! Meu amor!" e beijava a efígie adorada sofregamente, com beijos de fogo, que não cessavam.
Mas, fora, no silêncio vasto da noite, uma pancada metálica de sino ressoou sinistramente; era a primeira badalada da meia-noite. Paulino ergueu-se como impelido por uma mola elétrica. Meia-noite!
A morte! Deu um último beijo no retrato, rasgou-o em pedacinhos que atirou à rua, entreabrindo uma janela, e empunhou o bisturi.
Nesse momento o seu cérebro iluminou-se completamente e nessa imensa luz súbita, todo o passado do infeliz foi-se desdobrando e discorrendo rapidamente. Reviu-se pequenino, na província, no campo, brincando com os poldros e os novilhos, e no colégio depois, e mais tarde na academia. Duas... A voz do pai, os sorrisos da mãe, as feições dos irmãos, um aspecto material, uma árvore, uma casa, um animal, que representaram papel importante na sua meninice, os mais remotos fatos, os episódios mais insignificantes, vinham-lhe à memória, nítidos, perfeitos, flagrantes; tudo ressurgiu, reviveu, passou... Três...
Enquanto o cérebro trabalhava desse modo, devorando-se no incêndio das próprias células, o suicida procurava com os olhos o ponto do quarto em que devia matar-se; achou o espelho do toucador; foi a ele; mas a luz do gás mal o aluminava; acendeu a vela, depô-la sobre o mármore, abriu a camisa: o colo não ficava bem descoberto, depôs a arma, despiu rapidamente a camisa, que atirou para o meio do aposento. Quatro... Cinco... Empunhou de novo o bisturi, aproximou-se do espelho, fez menção de dar o golpe para verificar se a reflexão inversa da imagem não o levaria a errá-lo. E, em meio do trabalho estupendo de revivescência do cérebro, e dos atos materiais que ia praticando, o infeliz ia contando também as badaladas do sino: Seis, Sete, Oito... e ouvia o vizinho trautear ainda a canção da Carmen:
Si tu ne m'aimes pas je t' aime...
e o ruído que ele fazia vertendo água no vaso.
As artérias batiam-lhe violentamente, produzindo-lhe uma dor surda nas têmporas: o coração martelava-lhe na garganta... Nove, Dez.... Fitou os olhos arregalados sobre o vidro do espelho, achou-se horrível, desconheceu-se. Ergueu o braço direito com o bisturi pronto, com a mão esquerda apalpou e marcou a carótida para o golpe... Onze, o braço fez o movimento, a lâmina assentou no ponto que o polegar esquerdo marcava... Doze! Um jorro de sangue, em repuxo impetuoso e alto, esguichou, cobriu o espelho, salpicou tudo em volta do lavatório; os braços do suicida ergueram-se no ar, num gesto vago de quem se afoga, o bisturi tombou sobre o mármore. O corpo, um momento vacilante, descreveu um movimento rotatório para a esquerda, com a cabeça tombada sobre a espádua direita, meio desprendida do tronco; depois, caiu pesadamente no chão, abafando o ruído da queda sobre o tapete que o forrava, e ficou estendido a fio comprido.
Nesse movimento o jorro de sangue, que apenas não era já tão alto, tingia em torno o papel da parede, as roupas do cabide, os móveis, tudo, e, depois de caído o corpo, foi escorrendo pelo soalho, num fio coleante, passou para o corredor por baixo da porta, como um regato rubro, quente, fumegante.
L'amour est enfant de bohème...
trauteava ainda o hóspede alegre do quarto contíguo; mas já muito indistintamente, entre bocejos. E, meio minuto depois, a cama rangeu e estalou com o peso do seu corpo acomodando-se para dormir.