Julguei conveniente, a bem da retidão do julgamento desta obra, precedê-la de algumas sinceras e curtas explicações.
Há 20 anos que escrevo para o público e mesmo, a rigor; há mais tempo ainda, pois na idade de 15 anos já eu publicava em jornais de província linhas de prosa e de verso, que só a meninice do autor tornava suportáveis à paciência benévola dos leitores. Nesses quatro lustros de atividade mental tenho feito um pouco de tudo - versos, folhetins, contos, panfletos, critica, biografia, artigos de todo gênero, teatro, que sei eu? E tenho construído com parte desses materiais para mais de uma dúzia de livros.
A critica tem-me reconhecido, com munificência que me há penhorado, um espírito vivaz, variável, curioso; uma atividade indefesa; um certo amor à língua vernácula, e daí pronunciado carinho no escrevê-la e um estilo correto e agradável; porém não tem ocultado o seu pesar por me não ver abalançar-me a isso que chamam os críticos "obra de fôlego" ou "trabalho sério" - um poema, um romance, um livro de crítica profunda. Ora, eu devo confessar que essa censura me calou sempre no espírito por havê-la formulado muitas vezes a mim próprio. Mas a necessidades inadiáveis da vida material, tão pesadas para um pai de família pobre nesta terra em que das letras ainda se não pode viver exclusivamente, impediram-me sempre de levar por diante esse projeto, cem vezes formulado e não poucas começado a executar. O tempo que me deixavam livre as ocupações de que provinha o pão cotidiano e o meu estado de saúde, precário, sempre, chegava apenas para escrever o conto, a notícia critica, a crônica faceta, o artiguinho diário a que me comprometera em um ou vários jornais; não havia possibilidade de realizar o meu sonho, satisfazendo a exigência dos críticos - escrever uma obra de fôlego.
Entretanto, desde as primeiras manifestações da minha vocação para as letras senti-me atraído para o romance, e entre os meus primeiros ensaios, abandonados e perdidos, figuravam alguns capítulos de um romance O Equilibrista, apenas encetado. Mais de uma vez comuniquei aos meus amigos esboços, planos de romance, e de alguns passaram notícias às folhas.
Ora, aconteceu que nos últimos dias do ano de 1895, conversando com um editor, propus-lhe escrever para ele o meu primeiro romance. Aceitou a idéia e ofereceu-me direitos autorais que me pareceram satisfatórios, razoáveis. Como deles tinha alguma urgência, atirei-me ao trabalho: no dia 19 de janeiro do corrente ano escrevi o primeiro capítulo; no dia 2 o segundo, no dia 5 o terceiro, no dia 6 o quarto; enfim, em dois meses, tinha escrito mais de metade do livro, apesar das muitas interrupções que outros misteres impunham. Mas o editor deu parte de fraco; pediu-me que o dispensasse do compromisso, provando-me que o não poderia cumprir. Esfriou-se-me o ardor; parei. Meses depois, tendo feito contrato com os meus editores habituais, os srs. Laemmert & C. (On revient toujours...) reatei o trabalho interrompido, dando imediatamente à composição tipográfica os capítulos escritos. Os originais não foram recopiados por mim, quer dizer, não fiz rascunho ou borrão. Escrevi sempre de uma assentada, capítulo a capítulo, e, acabado, relia-o, corrigia-o, mandava copiá-lo por um secretário, conferia a cópia e remetia-a aos tipógrafos.
Se conto estes pormenores é para explicar as muitas imperfeições de forma que sou o primeiro a reconhecer, tais como a vulgaridade de algumas frases, a fraqueza de certas expressões, o banal de vários títulos de capítulos (e dei-lhes títulos por uma conveniência pessoal; para orientar-me em cada capítulo do estado, do ponto em que ficara o enredo, a composição), um ou outro galicismo, como "golpe de vista", e outros defeitos mais.
O capítulo que primeiro escrevi, com a intenção de fazê-lo o primeiro do livro, foi o quinto da segunda parte - um dos últimos: eu havia principiado pelo fim.
A circunstância de escrever de um jato, sem o polido e o repolido que Boileau tanto aconselhava aos ferreiros da idéia, só é prejudicial às obras mal concebidas e mal nascidas, que não trazem dentro alguma coisa de humano, de luminoso; bem sei, Manon, Le Neveu, Candide, Adolphe, são obras-primas e, no entanto, foram escritas sem rasuras, lembra P. Bourget em um de seus livros.
O fato, pois, da correntia espontaneidade, não retificada no cadinho apurador da revisão paciente, com que compus este romance, não é justificativa das imperfeições que o deslustram mas é um fato, e como tal, o denuncio à critica para que o registre, se lhe aprouver.
Resta-me dizer algumas palavras, e justamente as mais importantes, acerca da escola e da moralidade de Flor de Sangue. Não me preocupei com aquela nem com esta, entendida esta no sentido que se lhe dá vulgarmente.
Não resolvi fazer um romance naturalista, nem de aventuras, nem de psicologia, nem simbolista, nem idealista; resolvi simplesmente fazer um romance. E ele foi-me saindo dos bicos da pena com um certo feitio, uma certa fisionomia, um certo caráter, que não tentarei definir e ainda menos explicar.
Se todavia me interpelasse alguém sobre tal ponto, diria que para o seu autor é o meu romance filiado à escola da verdade, a única, que como os Goncourt, acredito real e fecunda em arte. Todos os tipos que nele fiz mover-se, e não sei se viver, encontrei-os na vida social, não só fluminense, não só brasileira, mas de todos os países.
Não cogitei tampouco de discutir, provar e impor uma tese. Faço Paulino suicidar-se, não para pregar o suicídio como solução única e necessária em situações morais idênticas; porém pela simples razão de haver dado a Paulino um caráter reto, inteiriço, não contaminado da gangrena moral da época. Isso não importa negar ao meu livro moralidade, porque lhe reconheço pelo menos uma, e não somenos, que é a seguinte - quando um homem de caráter é dotado de um temperamento que o contradiz e estorva, pode a vitória caber ao temperamento, na colisão deste com o caráter; mas o caráter reage com igual vigor e não aceita a situação moral criada pelo resultado do combate.
O Paulino que eu esbocei no segundo capítulo e fui tracejando nos subseqüentes poderia tirar a sua amada ao marido para viver com ela, confessando a sua culpa e arrostando-lhe todas as conseqüências, com uma bela impudência, bela por valerosa, se se sentisse amado, porque a felicidade é cruel e injusta na hipertrofia do seu egoísmo; mas não poderia nunca aceitar a posição aviltante de terceiro no lar do seu amigo, protetor, quase pai, partilhando-lhe da mesa às claras e da cama às escondidas. Não vendo nenhum meio de conciliar a sua honra com o seu amor e não podendo vencê-lo, alvitra por sacrificar o amor à honra e mata-se.
Esta moral, toda circunstancial e relativa, bem sei, não é a moral que os mercadores dela em livros e discursos expõem ao consumo público; mas é a única que a razão admite e que a ciência explica. E cabe aqui perfeitamente repetir o que escreveu o fino psicólogo da "Fisiologia do amor moderno" no prefácio deste livro. Diz ele:
"Ser moralista (linhas acima dissera ele que a primeira e última lei para um escritor digno de empunhar uma pena é ser um moralista), ser moralista não é pregar - o hipócrita pode fazê-lo; nem indignar-se - Molière esqueceu esse traço no seu Alceste. Em dez misantropos profissionais contam-se nove farsistas, que fazem honorabilidade da sua indignação a frio. Não é concluir - o sofista conclui. Não é evitar os termos crus e as pinturas livres - nos piores livros libertinos, os do século 18, não se encontra uma frase brutal ou pinturesca. Não é tampouco evitar as situações escabrosas - não há uma nos primeiros romances de Mme Sand, e para mim eles são entre os livros belos os que mais justamente se chamariam imorais - conquanto, neste caso, a beleza da forma seja até certo ponto uma moralidade. Não, o moralista é o escritor que mostra a vida tal como ela é, com as lições profundas de expiação secreta que nela se encontram por toda parte impressas. Tornar visíveis, como palpáveis, as dores da falta, a infinita amargura do mal, o rancor do vicio é fazer obra de moralista, e é por isso que a melancolia das Flores do Mal e a do Adolfo, a crueza do desenlace de Liaisons e a sinistra atmosfera de Cousine Bette fazem destes livros obras de alta moralidade".
É impossível dizer melhor.
Marcel Prévost, num artigo do Journal, intitulado Littérature et Morale, observa com grande verdade "que a literatura de uma época é sempre mais moral que seus costumes e que nenhum livro é tão libertino como as conversações correntes, na baixa como na alta sociedade".
Sou avesso a prefácios e entendo que o livro que se não explica a si próprio e por si próprio é um livro inexplicável. Mas conheço o meio em que vivo e prefiro ir ao encontro das principais objeções que ao meu romance prevejo serão feitas, e sobretudo a relativa à moralidade. Hão de acusar-me de haver feito um livro que não pode ser lido por donzelas e meninos. Não me defendo; ao contrário, confesso que não daria este romance a ler à minha filha, como o não dou à minha irmã nem a meus filhos; mas romances sinceros e verdadeiros, isto é: honestos e morais não se escrevem para serem lidos por donzelas e donzêis. E aqui me socorro ainda do excelente prefácio de Bourget, de que acima fiz alguns extratos:
"Imaginemos para a nossa obra um leitor de 25 anos e sincero: que pensará ele do nosso livro ao terminar a leitura? Se ele, depois de lida a derradeira página, é levado a refletir nas questões da vida moral com seriedade maior, o livro é moral. Aos pais, às mães e aos maridos compete proibir a sua leitura aos rapazes e às raparigas, para quem um livro de medicina também podia ser perigoso. Tal perigo não nos respeita. Só o que nos incumbe é pensar o mais justo que pudermos e dizer o que pensamos".
E justamente o que dizia há mais de 20 anos Guerra Junqueiro no prefácio da Morte de D. João, e num estilo mais colorido e imprevisto. Lembram-se?
"Não aconselho a ninguém que dê a ler a uma rapariga de nove anos nem a Morte de D. João, nem romances, nem dramas, nem comédias, nem o novo e, sobretudo, nem o Velho Testamento.
E linhas mais longe:
"Não se dá um poema a uma criança pelo mesmo motivo por que se lhe não dá uma garrafa de vinho ao jantar".
Mas a razão mais poderosa para que o romancista desdenhe preocupações de moralista banal, de convenção, é a que dá Edmundo de Goncourt nas seguintes linhas:
"Hoje que o romance se alarga e cresce, que vai sendo a grande forma séria, apaixonada, viva, do estudo literário e do inquérito social, que se vai tornando, pela análise e pela pesquisa psicológica, a história moral contemporânea, hoje que o romance se impôs aos estudos e aos deveres da ciência, ele pode também reivindicar suas liberdades e privilégios".
Estou bem apadrinhado, como vêem.
Por último, uma confissão.
Tive tanto gosto em escrever o meu primeiro romance, o gênero agradou-me tanto, deu-me tão belas horas de gozo intelectual, que o meu desejo era e é não escrever de ora avante outra coisa.
O romancista vive com as suas criaturas - ri, chora, goza, sofre com elas. É uma segunda vida, uma outra sociedade que trazemos palpitante dentro de nós - na rua, em casa, por toda parte. Como eu compreendo o velho grande Dumas dizendo ao filho, que o fora encontrar chorando e lhe perguntara qual a causa daquelas lágrimas:
"Um grande desgosto! Portos morreu! Acabo de matá-lo! E não posso deixar de chorar-lhe a morte! Pobre Portos!"
O poema e o romance são as duas formas literárias diferenciais, extremas, positivas. Tudo o mais - contos, odes, sonetos, peças teatrais são matizes, variações, gradações; motivos musicais, apenas, porque as óperas são eles. Ora, o poema não pode respirar e medrar neste nosso meio de hoje, excessivamente despoetizado pela indústria, pela ciência e pelo epicurismo. Resta o romance. O romance é o grande instrumento de reconstrução social. A princípio foi camartelo: destruiu; no século vindouro será escopro e trolha: construirá. O romance era fábula: hoje é história e critica; será filosofia amanhã.