XXX
Cadaver em putrefacção
Recordas, meu amor, ainda horrorizada,
O animal nojento
Que um dia de verão encontramos na estrada,
Já podre e fedorento?
De pernas para o ar, como mulher viciosa
Ardente de paixões,
Deixava a descoberto a barriga asquerosa,
Prenhe de exalações..
Queimava a luz do sol aquela massa imunda,
Fazendo-a transformar
Em novos materiaes, que a Natura fecunda
Consegue aproveitar.
Fitava o claro ceu a carcassa indecente,
Como a um vergel em maio,
E o fedor era tal que eu vi-te de repente
Em risco de um desmaio.
As moscas, a zumbir, cobriam o asqueroso
Corpo em putrefacção,
E os vermes, em tropel, num líquido viscoso,
Formavam legião.
Era um longo cortejo, uma procissão rara
De vermes corrosivos;
Dir-se-ia que o animal morto ressuscitara
Em milhões de ser’s vivos.
E d’essa multidão elevava-se um brado,
Um ruído fagueiro,
Como o som que produz o trigo joeirado
Na rede d’um peneiro.
Á luz do nosso olhar, tudo se transformava
N’um sonho de tremer...
Visão cheia de horror que na mente se grava
E não torna a esquecer.
Por detrás d’um rochedo, uma cadela, inquieta,
Com uivos estridentes,
Aguardava ocasião para na carne infecta
Ir aguçar os dentes...
— Ai! ter de me lembrar que has de ser semelhante
Á horrivel infecção,
Ó luz do meu olhar, o meu sol deslumbrante,
Minha ardente paixão!
Que assim tu has de ser, ó anjo que me encantas,
Quando o teu corpo inerme
Desfeito em podridão, sob a raiz das plantas,
Alimentar o verme!
Então, ó meu amor, dize á larva brutal
Que te beijar o rosto
Que eu guardei o contorno e a essência divinal
Do teu corpo gentil antes de decomposto!