Juizo crítico


O que mais me surprehende n’este livro – além do seu valor nimiamente litterario; a que, mais adeante, algumas palavras consagrarei — é a data do seu apparecimento.

Porque, para que, em 1909, uma interpretação em versos portuguezes das poesias das Flores do Mal?

Carlos Baudelaire não está de nós tão affastado que possamos collocar o seu nome n’uma anthologia que convenha memorar como lição ou modelo a seguir, nem tão proximo que os seus versos representem uma novidade para os gulosos das boas-lettras, alheios ao que se passa e á lingua que se fala da banda de la dos Pyrineos. Bem pelo contrário quanto a este ultimo ponto! Haja vista o espectaculo a que o paiz assistiu e Lisboa representou n’estes ultimos tempos. O poeta Jean Richepin falou a um auditorio numeroso e foi grandemente applaudido, em duas conferencias, por um publico a que, com justiça ou não, se conferem os titulos de elegante e intellectual, no preciso momento em que o deputado belga Léon Fournemont, no salão d’uma collectividade democratica, recebia não menos calo. rosas marcas de sympathia e comprehensão, que lhe offereciam uma legião de trabalhadores. a quem, ao que parece, não fizeram falta, na conjunctura, os mysterios grammaticaes em que os srs, Noel et Chapsal iniciavam a geração estudiosa de que fiz parte. Um jornal, contando-nos a interessante conferencia, diz-nos, com uma seriedade cheia 2e beatifico enthusiasmo descriptivo:

«Com a palavra quente e persuasiva do deputado belga, tão cheia de colorido e vivacidade que parecia traduzir-se no caminho dos labios do orador para os ouvidos attentos de milhares de pessoas, reinava na amplidão da sala uma rajada indomavel de civilisação que em todos os peitos produziu fremitos de admiração e sympathia. O gesto, a expressão do orador, a insinuante pronuncia das palavras desconhecidas para muitos dos assistentes suppriram, em muitos casos, esse desconhecimento do idioma francez, «explodindo da parte dos operarios as mais vibrantes e in tensas acclamações.»

Como vêem é extraordinário e pittoresco; mas é assim. Até parece que a noticia foi forjada por qualquer inimigo descaroavel do Livre Pensamento e artes correlativas, porque ella nos dá a chave do enygma de muita miseria que para ahi se estadeia á luz do sol, mascarada de civismo, arreiada com a clamyde inconsutil das aspirações populares. .. A ignorancia foi, em todos os tempos, muito atrevida, mas desde que tentam debellal-a por meio de «gestos e da insinuante pronuncia das palavras desconhecidas», ninguem sabe até onde ella poderá ir.

As «Flores do Mal» não fôram inicialmente escriptas para o grande publico; as interpretacões do sr. Delfim Guimarães menos o são, porque o mercado é incommensuravelmente menor e porque o numero d’aqueiles que, em Portugal, se occupam de assumptos artisticos é em extremo reduzido.

N’estas condições, a vinda á luz 9’um trabalho similhante obedece a um dilletantismo intellectual d’uma determinada extravagancia — ou, se quizerem, de accentuada extemporaneidade — em escriptor d’uma cultura e sobretudo d’uma pujança de concepção e faculdades de trabalho tão fortes e tão notaveis.

Delfim Guimarães é um homem novo e a sua obra é, já hoje, vasta; além d’isso, tem em preparação dois estudos de tomo; um sobre Diogo Bernardes, outro sobre Camões e vae publicar uma peça de costumes minhotos «Domingo de Pascoa». O mister de traductor ou de interprete, em volume completo, de poetas extrangeiros, entre nós, se não obedece á dura necessidade de produzir trabalho remunerado, representa uma diminuição da potencial creadora como se pode observar em Filinto Elysio e em Castilho, com o reverso glorioso de serem os mais nobres e esmerados cultores da lingua.

Não é esse o caso de Delfim Guimarães: nem diminuição da veia inspiradora, nem intuitos de purismo na linguagem, embora a sua ortographia nos apresente formas novas, d’um personalismo bastante insubmisso e que mais vem baralhar as confusas ideias que tenho ou, melhor, já não tenho sobre o modo de escrever... mas, sob este ponto de vista, relego-o, com delicias, ás justiças seculares dos meus bons amigos Dr. Candido de Figueiredo, Gonçalves Vianna, Dr. José Leite de Vasconcellos – tres juizes capazes de o fritarem, se, antes d’isso, a si proprios e mutuamente se não frigirem.

São, portanto uma eclosão de dilletante litterario a feitu. ra e apparecimento d’esta versão portugueza de muitos dos versos do poeta da Charogne — versos que tiveram um echo retumbante e exerceram uma influencia maxima na mocidade que os viu apparecer e ainda nas gerações que se lhes seguiram. Desde o estudo de Gauthier, que acompanha o volume das Fleurs du Mal até aos Ensaios de psychologia contemporanea de Bourget (actualisados pela edição definitiva de 1901), não esquecendo a critica de Edmond Scherer, muitos foram os homens de lettras que se occuparam d’essa inconfundivel individualidade tão original, tão complexa, tão variada, a um tempo tão extremamente delicada e tão cortejadora de todas as brutalidades, pagã e mystica que foi Carlos Baudelaire.

E é justamente porque se trata d’uma figura primacial, por certo, tão conhecida, e tambem por me parecer que conheço a indole litteraria e philosophica do seu traductor de hoje, que me surprehende o apparecimento d’este livro, n’uma interpretação portuguêsa, que, embora aureolada pelos fulgores d’um genio, teve a sua actualidade malsaine, deleteria e que, como todas as actualidades, passou...

Todos aquelles que, acaso, passem a vista por estas linhas se estarão agora lembrando d’aquelle extraordinario e fulgurante primeiro capitulo de A Correspondencia de Fradique Mendes e das palavras que incidentalmente Eça dedica ás Flores do Mal.

Ah! como é profundamente exacto, porque eu o senti, porque o sentiram todos os da minha geração de ha quasi 30 annos, que o que os jovens de 1867 procuravam em Baudelaire era a emoção e, como em 1867, em 1882, ao clamarmos tremulos e pallidos de paixão as estrophes da Charogne, «certamente Baudelaire não valia este tremor e esta pallidez». Este «não valia, percebemol-o mais tarde, passados os enthusiasmos que uma tão capitosa novidade artistica não podia deixar de levantar mais em cerebros do que em corações de 18 annos.

Então, essa, já agora, lendaria figura que vestia uma especie de blusa ou dolman, fechada por um collar molle, essa mascara inolvidavel de cenobita escanhoado, de fronte amplissima, com a sua historia d’impeccavel asseio, surgia-nos com oum semi-deus nimbado de gloria, senhor d’um poderio immarcessivel.

Só mais tarde percebemos que a sua obra era uma expressão de decadencia d’um pessimismo, d’um nihilismo, que se distinguia do dos seus predecessores, pela evidente differença de rhetorica e de processo. Era, n’uma palavra, e a um tempo, o esplendido e doloroso producto d’uma alma superior, onde coexistiam a mais aguda e apurada lucidez espiritual e a peior das desordens sensuaes ou sentimentaes.

Seria d’uma relativa facilidade folhear ao acaso as Fleurs du Mal para provar a verdade d’este dito, mas visto que a Charogne é, por assim dizer, a fortaleza em que se entricheiram todos aquelles que, em Portugal, se propõem dar ao manifesto erudição baudelereana, da mesma forma que em França os grandes espiritos quando pretendem alardear conhecimentos da lusa historia, lançam logo mão dos nos808 Gama, Albuquerque e Camoens (e d’aqui é raro passar...) visto que a Charognet é de todos conhecida, lembremos a ultima quadra:

Alors, oh ma beauté, dites à la vermine
Qui vous mangera de baisers,
Que j’ai gardé la forme et l’essence divine
Des mes amours décomposés.

Agora, vejamos a interpretação de Delfim Guimarães:

Então, ó meu amor, dize á larva brutal
Que te beijar o rosto
Que eu guardei o contorno e a essencia divinal
Do teu corpo gentil antes de decomposto!

Vê-se que os tres primeiros versos não só foram inter pretados, mas traduzidos á lettra; o que, fique dito d’uma vez, succede em quasi todas as peças, com uma probidade, um conhecimento das duas linguas e uma tão nitida com. prehensão do poema original, que não encontro palavras bastante elogiosas — estando a adjectivação tão apelintrada á força de uso para celebrar-lhe o verdadeiro mere. cimento.

O ultimo verso, porém, não só não está traduzido, como não foi interpretado e, bem pelo contrario, encerra uma feliz modificação ao original. Ao sr. Delfim Guimarães repugnou, por decerto, a extravagancia da cessencia divina dos amores decompostos, esquecido momentaneamente, sem duvida, de que a phosphorescence de la pourriture attrahia Baudelaire, segundo a sua propria confissão, como um magnetismo invencivel.

Se o escopo de Delfim Guimarães ao publicar este livro foi o de nos mostrar a ductilidade das suas aptidões litterarias, conseguiu o exhuberantemente; penso, porém, que a maioria dos seus amigos e a quasi totalidade dos nossos homens de lettras hảo de lamentar que o tempo e a intelligencia despendidos o não fossem em obra sua original, ou, pelo menos, em obra que, ao contrario d’esta, nos não conduza ao anniquilamento moral, ao horror do Ser, ao gosto, ao appetite desenfreado do Nada.

No momento actual que a sociedade portugueza atravessa, um livro similhante atirado ao seio d’uma geração tão propicia a sugar-lhe o subtil veneno na estonteante dança das imagens metalicas e dos aromas embriagadores, na negação de toda a disciplina moral, na elegancia convencional dos conceitos que se synthetisam no conceito lapidar do taedium vitae, sob a forma moderna e bocejante do spleen, um livro d’estes seria um jacto de petroleo atirado para um incendio.

Do que nós, pelo contrario, precisamos é de obras sās, que encerrem ideias altas e d’ellas não sejam a negação propositada e sábia. Nós todos bem sabemos que a litteratura retrata, digamos, instinctivamente, uma epocha; as Flores do Mal e toda a obra litteraria franceza que se lhe tem seguido, salvo honrosas excepções, veem impregnadas d’aquella decadencia que vincou o 2.º imperio e em que se julgou substituir, pelo exhibicionismo da forma, a essencia, a doutrina, a inspiração.

É por isso que Victor Hugo permanece immortal!

O livro que acabo de lêr, com aquelle interesse que fa. cilmente concedemos a tudo quanto nos recorda os 18 annos, como obra benedictina de arranjos morphologicos, é perfeito. Delfim Guimarães conseguiu trasladar para ver. naculo as estrophes mais apreciadas d’esse supremo artista da forma e da extravagancia sensorial e sentimental que foi Carlos Baudelaire. Causa.nos, porém, uma funda tristeza o seu apparecimento, pois revela um estado d’alma reflexo e consocio de eguaes estados em quasi toda a intellectualidade portugueza, porque é preciso não esquecer aquellas palavras de Taine: A litteratura é uma psychologia viva.

 

24-jan.ro-910.

Hemeterio Arantes.