Preâmbulo


Faz agora precisamente 56 annos que elle morreu.

31 de Agosto de 1867, 31 de Agosto de 1923. Morreu sem agonia nem sofrimento, ás 11 horas da manhã. Ao cemiterio foi pouca gente, mas essa gente é já hoje um cortejo immortal. Nadar, Champfleury, Monselet, Manet, Verlaine, Calmann Lévy, Lemerre, Armand Sylvestre. Ou, como dizia o nosso D. Francisco Manoel: Em loja de ourives, até as varreduras são de vinte e quatro quilates. Trata-se de Charles Baudelaire, o immortal, perturbante e singular autor das Flores do Mal. Em França esse livro foi amado e odiado. Hoje não tem detractores. Detractores são os invejosos e todos os seus invejosos dormem já na podridão do nada. A sua raiva mesquinha o vento a dispersou.

Se quizermos evocar o poeta, procuremos Maxime Du Camp que o conheceu de perto. Vestia, diz-nos este, sem. pre irreprehensivelmente. A fazenda dos seus fatos era propositadamente grosseira e o seu paletot pardacento com grandes botões bronzeados, era largo como um sacco. Meias azues sobre sapatos de caça, muito brilhantes da graxa. Os movimentos lentos pretenciosos. A cabeça de um joven diabo que se tivesse feito eremita. Cabello cortado muito curto, barba completamente rapada, olhos pequenos e vivos, inquietos, mais ruivos do que castanhos, nariz sensual, engrossando na ponta, labios delgados sorrindo pouco, mento quadrado, as orelhas um pouco despegadas, tudo isto lhe dava uma phisionomia desagradavel á primeira vista, phisionomia a qual o encanto da sua palavra rebus. cada dava uma certa atracção. Era forte muscularmente, no emtanto havia nelle qualquer coisa de arruinado, de abulico, de surmené. Isto é o seu retrato phisico. A sua arte está nos seus livros. Que a busquem lá os gosadores de sensa. ções perversas, os collecionadores de enormidades, do mais além do senso vulgar.

A sua Musa adeja n’aquellas páginas como una ave satanica, enchendo de espanto a alma do transeunte leitor. A sua carcassa, essa, está em Paris no cemiterio Montparnasse Dorme sob uma larga pedra em que ele se vê esculpido em vulto, enfaixado como as múmias pharaónicas. Ao alto, debruçando-se, olhos vagos, no vago infinito, o genio do Mal perscruta. E sob este uma ave fantastica de largas azas abertas, domina o rosto glabro do poeta. Perto, crescem flores. Tudo o que resta são os seus livros, algumas duzias de ossos e o monumento funebre de Charmoy. Apenas.

Baudelaire foi toda a sua vida um mystificador? Talvez Não nasceu mystificador, os outros é que o fizeram. A sua pobre alma sensitiva vingava-se d’elles com ironias, com enormidades. Fazia a loucura de caso pensado para se dar ares de ser original, como outras creaturas que encobrem o medo sob a fanfarronada da força que não tem. O seu fato e a sua arte é tudo disfarce. São disfarces as suas ironias, são disfarces as suas visões tenebrosas, as suas imagens que roçam o desequilibrio. Disfarces talvez não. Eram a defesa da sua alma, a barreira do seu espírito, a muralha com que elle delimitava o mundo.

No fundo, Baudelaire era um pobre diabo, um grande pobre diabo. Honesto, amoroso e dedicado. Visto atravez da sua obra é apenas perverso, diabolico, mau, arrepiante. Todavia elle foi sempre gentleman, correcto nas suas contas, serviçal, polidissimo. Admirou, e só as almas nobres sabem admirar. Elle admirou Sainte Beuve, admirou Gauthier, foi amigo de Du Camp e de Poulet-Malassis.

Foi amante de muita mulher, mas uma houve que o prendeu vinte annos. Foi Jeanne Duval a que elle tantas vezes se refere no seu livro. Ella fartou-se de o atraiçoar. Elle sabia-o. Pois um dia teve uma paralysia e é elle, amante fiel, quem á sua custa a interna no Hospice Dubois. Á sua custa, á custa da sua misérrima bolsa que não tinha um sou. Quando ella se cura, elle vae viver com ella.

Como se vê, Baudelaire, era assim, por dentro. Por fóra era um ironista, um troçador mephistophelico e temido, um homem satanico, capaz de tudo. Pintava os cabelos de verde, e uma vez tendo encontrado, na rua, Theodoro de Banville, propoz-lhe a queima roupa tomarem um banho juntos. Banville, surpreso, para se não dar ares de admiração retorquiu-lhe que tinha essa mesma ideia e que estava mesmo para lh’a propôr. Como se fosse uma coisa natural! Subiram a um balneario e, de dentro da sua tina, Baudelaire disse a Banville: Que cara faria V. se eu agora lhe lesse uma tragedia em cinco actos?

Mas Baudelaire era assim: elle o das pequenissimas sensibilidades, para que o não conhecessem, para que não soubessem que elle era timido, amoroso, terno, amigo e sincero. São assim quasi todos os artistas. A alma que cada um tem não é aquella que aparenta ter. Pobres grandes homens!

Nascer salmão entre sardinhas deve ser triste. Um grande homem está por cima de nós. Os grandes homens estão no cume das montanhas, mas por isso mesmo só podem ter as aguias por companheiras. Quando cá de baixo a gente ergue os olhos pensa: deve ser feliz estar lá em cima. Tem-se gloria, a consideração. Quando a gente passa, as mulheres dizem-nos o nome e os homens zumbaiam a sua me. sura. Deve estar alli a amizade profunda, o amor acrisolado. Á medida que se sobe o caminho da gloria, a cohorte rareia. Homens e mulheres que partiram em esturdia vão ficando pelo caminho. Uns afundam-se na morte, outros. derreados, ficam á beira da estrada. Os invejosos devoram-se os impotentes denigrem os que já vão longe, la acima. E o pobre homem de genio sobe, sobe sempre. Um dia, já no pincaro, olha em roda e vê-se 86, desoladamente só. Ha lá em baixo, a cercal-o uma multidão, é certo. Mas, ai, delle! a multidão, é um mar e não será nesse oceano que elle se ha de dar á irrisão de procurar uma amizade ou um amor. Ninguem compreende a sua solidão. Ora! Deve ter tanta mulher I dizem as mulheres. E como todas assim pensam, nenhuma se lhe chega. Amigos não lhe faltam. E como todos o são, nenhum o é.

Baudelaire foi assim, pobre dandy tristonho que só deixou as imagens, o nome e titulos de livros. Pobre dandy tristonho, tu és de alguma maneira o teu albatroz, a grande ave marinha dos teus versos que, abatida sobre o convez do barco está exposta á mofa da matalotagem, dos teus versos, que esse illustre homem de letras que é Delfim Guimarães, tão bem soube trasladar ao fonema portuguez:

«Dominador do espaço, eis perdido o seu nimbo!
Era grande e gentil, ei-lo grotesco verme...
Chega-lhe um ao bico o fogo do cachimbo,
Mutila um outro a pata ao voador inerme.

O Poeta é semelhante a essa aguia marinha
Que desdenha da seta, e afronta os vendavaes;
Exilado na terra, entre a plebe escarninha,
Não o deixam andar as asas colossaes!»

Emquanto os outros o tomavam como elle queria, sofria elle intima e cruciantemente.

A sua vida o que é senão um poema doloroso? Viajou para se isolar e não encontrou o isolamento. Traduziu Poë para se comprazer e não encontrou satisfação, tomou al. cool, opio, haschich e não encontrou a felicidade, escreveu versos maravilhosos de ineditismo, de sensação, e viu-se como era d’antes, aborrecido, tristonho, misanthropo. Não teve mesmo consolação no amor. Essa intangivel de quem elle diz:

«Quero-te como quero à abobada nocturna
O vaso de tristeza, ó grande taciturna.

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Mulher a quem estou ligado
Como uma grilheta á cadeia
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Como um beberrão ao vinho
Como o verme á podridão.»

é a Jeanne Duval de quem falámos. Quanto à sua arte que o diga o seu volume de cartas o que ella lhe deu. A sua correspondencia faz mal ler. É sempre sem fim a agonia da falta de recursos, a grilheta da vida e das suas contigen. cias materiaes. Como é honesto, tem a preocupação das dividas. Vae á Belgica e tem uma decepção. A sua vida complica-se. Joanna é um pesadelo, mas elle queria-lhe tanto que as suas contas começavam sempre: Joanna 300 francos, minha mãe 200, eu 300, total 800 francos por mez e os seus sonhos iniciavam-se: Riqueza de Joanna. Depois a má sorte encarniçava-se. Procura nos seus Paraisos artificiaes o alcool e as drogas embriagantes, a sensação nova a sensação profunda. Como com os remedios, nas sensa. ções é preciso aumentar a dose. Isto exhauria-o. Uma sensação alcançada era uma sensação vivida; a outra pois. E a outra, a outra, a outra ainda. Irritado, inquieto, fez-se mystico, de atheu que fora. Um dia, na egreja de Saint Loup de Namour, dá-lhe uma tontura e cahe. É o principio do fim. A inteligencia obumbra-se-lhe. Champfleury e os amigos arranjam-lhe no Ministerio quinhentos francos mensaes para se tratar. Está mezes doente, o leito fere. o. Um bello dia, ha 56 annos. — sem agonia nem sofrimento, a alma do poeta deixou o corpo, voou para os espaços infinitos onde moram as almas dos poetas.

Já leram as Flores do Mal? Pois vale a pena ler esse livro bizarro a que esta prosa desataviada serve de vesti. bulo.

Paris irá levar-lhe flores. Nós damos. The uma saudade piedosa. Que demonio, não será compensador, mas é bonito dar flores depois de morto aos que em vida só lhe conheceram espinhos! Baudelaire, mago e amado poeta, espirito perturbante e singular, só tu, alma avida de sensações, poderás dizer se a Morte é afinal a ultima ou se no além ellas se prolongam. Mas, ai de nós I a Morte é um paiz tão longiquo que sempre os encarregados de nos desvendarem a carta desse paiz não voltam mais...

Delfim Guimarães publica hoje a segunda edição dos versos do poeta. Traduzidos com carinhoso ardor, elles não são só a afirmação do muito que vale o seu trabalho, são tambem o ramo fresco de rosas que a alma das letras portuguezas depõe na campa do poeta, do poeta bizarro e singular que foi ephemero na vida, mas que é eterno, querido e immortal nas almas.

 

31-8-923.

Albino Forjaz de Sampaio.