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A história do Rei Vesgo


MONTEIRO LOBATO
Em 1947 realizou-se no Vale do Anhangabaú um grande comício de protesto contra a cassação dos mandatos dos parlamentares comunistas. Monteiro Lobato, já doente e impossibilitado de ir pessoalmente levantar a sua voz de protesto contra o crime que se ia cometer contra a Constituição, escreveu a já famosa histórinha do Rei Vesgo para ser lida ao microfone durante a realização do comício. O povo e o proletariado de São Paulo compreenderam a finura da fábula de Lobato e de bôca em bôca corre hoje a história do rei do Oriente que tinha uma grande vontade de «dominar a paisagem».


Na frente do palácio de certo rei do Oriente havia um morro que lhe estragava o prazer. Êsse rei, apesar de ser vesgo, tinha uma grande vontade de «dominar a paisagem»; vontade tão grande que êle não pôde resistir, e lá um belo dia resolveu secretamente arrazar o morro. Tratava-se, porém, de um morro sagrado, chamado o Morro da Democracia, e defendido pelas leis básicas do reino. Nem essas leis, nem o povo jamais consentiriam em sua demolição, porque era justamente o obstáculo que limitava o poder do rei. Sem êle o rei dominaria ditatorialmente a paisagem, o que todos tinham como um grande mal.

Mas aquele rei, que além de vesgo era malandro, tanto expremeu os miolos que teve uma idéia. Piscou e chamou uns cavouqueiros, aos quais disse:

— Tirem-me um pouco de terra dêsse morro, alí onde ha umas touceiras de cragoatá espinhento. Se o povo protestar contra a minha mexida no morro, direi que é para destruir o cragoatá espinhento; e que se tirei um pouco de terra foi para que não ficasse no chão nem uma raiz ou semente.

Os cavouqueiros arrancaram os pés de cragoatá e removeram vários carroças de terra. O povo não protestou; não achou que fôsse caso disso. Só alguns ranzinzas murmuraram, ao que os apaziguadores responderam: «Foi muito pequena a quantidade de terra tirada; não fará falta nenhuma».

Vendo que não houve protesto, o rei, logo depois, deu nova ordem aos cavouqueiros para que arrancassem outro pé de qualquer coisa, mas com terra — êle fazia muita questão de que a planta condenada saísse sempre com um bocadinho de terra… Continuando o povo a não protestar, prosseguiu o rei por muito tempo naquela política de «extirpação das plantas daninhas do morro», e as foi arrancando, sempre «com terra», até que um dia…

— Que é do morro?

Já não havia morro nenhum no reino. Desaparecera o Morro da Democracia, e o rei pôde, afinal, extender o seu olho vesgo por todo o país e governá-lo despoticamente — não pelo breve espaço de apenas quinze anos, mas pelo de trinta e tantos, segundo rezam as crônicas históricas.

Isso foi no Oriente. Mas nada impede que aquí aconteça o mesmo, porque também temos o nosso morrinho da Democracia, cheio dessas plantas más que costumam nascer em tais morros. E’ preciso, pois, que o povo se mantenha sempre vigilante, para que os nossos reis vesgos não as arranquem «com terra». Do contrário o morro se acaba — é… como é? Ditadura outra vez? Tribunalzinho de Segurança outra vez? Paisinho dos pobres outra vez?

Êste comício tem essa significação. E’ um protesto do povo contra as primeiras carroçadas de terra que o nosso rei, sob o pretexto de arrancar o cragoatá espinhento do comunismo, tirou do nosso Morro da Democracia. Cesteiro que faz um cesto faz cem. Quem tira uma carroçada de terra tira mil. Se não reagirmos energicamente, um dia estaremos privados do nosso morro e com um terrivel sóba dominando toda a planicie.

E se tal acontecer e êsse sóba instituir o Relho como instrumento de convicção, será muitíssimo bem feito, porque outra coisa não merece um povo que deixa seus governantes despojarem-no pouco a pouco das suas mais belas conquistas liberais.

O preço da liberdade é uma vigilancia barulhenta como a dos gansos do Capitólio.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.