Galeria dos Brasileiros Ilustres/D. Manuel de Assis Mascarenhas
<bi>N</bi>a vida das sociedades há quadras infelizes em que os princípios os mais sagrados são desconhecidos, ou desprezados, em que os homens, alucinados por más paixões, sufocam a voz da consciência, deleitam-se na prática dos vícios, e chegam a um estado de verdadeira prostituição moral. São quadras em que as sociedades dominadas por um materialismo grosseiro tornam-se incapazes de elevar-se a idéias nobres, de dar expansão às tendências superiores da natureza humana.
O historiador filósofo encara esses períodos da vida dos povos com verdadeira tristeza, porque enxerga neles o predomínio dos sentimentos mais baixos do coração humano.
Felizmente, para glória da humanidade, a invasão do mau princípio nunca é completa. Alguns homens, em cujo coração a mão de Deus gravou profundamente o sentimento do justo e do honesto, formam um contraste consolador com o resto da sociedade, e vingam a moralidade ultrajada.
O Brasil não está certamente em um desses períodos sinistros a que têm chegado os impérios que entram em decadência, ou preparam-se para a dissolução. Nação nova, passada há pouco pelo crisol de uma revolução, que com a independência deu-lhe a liberdade, tem muita seiva, muita força de vitalidade. Não pode, pois, ser comparada às sociedades decrépitas, corroídas pelos vícios, e pela indiferença por todos os bons princípios que constituem a força e a nobreza da humanidade.
O corpo social, sem dúvida, não se acha invadido pela corrupção. Convenientemente dirigida, a nossa sociedade pode compreender belamente os grandes princípios que a civilização do nosso século tem conquistado para a humanidade, e à sombra deles realizar os brilhantes destinos que a Providência parece ter reservado a este país.
A sociedade em geral é boa, mas cumpre não desconhecer uma triste verdade: os homens que a dirigem estão bem longe de realizar o ideal que se deve formar dos primeiros cidadãos de um país novo, rico e livre. Sem fazer-lhes injustiça, pode-se afirmar que em sua quase totalidade acham-se dominados pela matéria a tal ponto que se tornaram indiferentes aos grandes princípios e aos nobres sentimentos que inspiram as ações que mais honram a raça humana.
Dever, desinteresse, abnegação, patriotismo são palavras que foram riscadas do nosso vocabulário político. O interesse, e só o interesse, é o motivo que determina as ações dos nossos homens públicos.
Em tão deplorável situação, sente-se verdadeiro prazer ao contemplar alguns desses varões que podem resistir à torrente da corrupção, e que formam verdadeira exceção da quase totalidade dos que se acham nas mais eminentes posições do estado.
No minguado grupo dos nossos políticos honestos, ocupa lugar mui distinto o Sr. D. Manuel de Assis Mascarenhas, objeto das breves observações que traçamos.
Não existe entre os políticos brasileiros um nome mais conhecido no país do que o do Sr. D. Manuel. Nenhum dos nossos homens é objeto de mais simpatia, de mais amor, de mais respeito.
O Sr. D. Manuel desde que apareceu no parlamento brasileiro chamou sobre si a atenção pública, por seu esclarecido patriotismo, por sua nobre e corajosa franqueza.
O parlamento brasileiro é talvez entre todos os que existem o que mais se distingue na aplicação do que se chama conveniências parlamentares. Nos outros países não se liga a estas palavras a mesma ideia que no Brasil. As conveniências parlamentares não permitem que se use na tribuna de uma linguagem menos decente; que se comprometam os interesses do país em relação ao estrangeiro, por meio de revelações indiscretas; mas o respeito às conveniências não domina o orador aponto de obrigá-lo a não revelar os escândalos da administração, a corrupção dos funcionários e todos os abusos que se introduzem no governo da sociedade.
O predomínio dos interesses materiais, o egoísmo oficialmente reconhecido como único móvel dos homens públicos, deu uma extensão imensa às conveniências parlamentares. Censurar um abuso para o qual havia concorrido um ministro, um senador ou um deputado era ofender as conveniências; declamar contra a corrupção era uma grave ofensa às conveniências parlamentares, pois a corrupção era favorecida e largamente praticada pela maioria dos membros do parlamento; procurar coibir o governo nos seus excessos, no seu sistema corruptor, nas suas criminosas invasões, era ir de encontro a toda as conveniências da tribuna, porque o governo é quem faz o deputado, ou o senador, quem distribui o orçamento, quem nomeia para as boas emissões, que paga as dedicações. Enfim querer a prática leal e sincera do sistema representativo era a maior das inconveniências.
O Sr. D. Manuel nunca pôde compreender esse funesto sistema de encobrir a verdade, de iludir o país. Desde que apareceu no parlamento tor-nou-se notável por seu caráter independente e pela sua franqueza.
Na câmara temporária, onde teve assento, em princípio como representante do Rio Grande do Norte, depois de Goiás e afinal do Rio de Janeiro, seu caráter manifestou-se em toda a sua verdade. O país inteiro via no corajoso deputado um dos caráteres mais nobres e mais patrióticos do nosso tempo.
Em 12 de junho de 1859 foi o Sr. D. Manuel escolhido senador pelo Rio Grande do Norte, província que por duas vezes havia administrado. Desde então sua vida, por assim dizer, tem-se passado na tribuna. Nenhuma questão de alguma importância tem sido levada ao senador sobre a qual o ilustrado senador não se tenha pronunciado.
O Sr. D. Manuel não é desses que entendem que o Senado é um lugar de repouso, de ócio, verdadeira aposentadoria concedida aos servidores do país. Compreendeu pelo contrário que é um cargo que, por isso mesmo que coloca aquele que ocupa em posição eminente, importa compromissos muito sérios, que devem ser cumpridos ainda com sacrifício dos interesses particulares.
Formando uma verdadeira ideia do que deve ser o representante da nação, o Sr. D. Manuel dedicou-se todo à realização do tipo que concebera. Estuda as questões políticas e administrativas com todo o cuidado e pronuncia-se a favor da opinião que lhe parece mais justa, que se acha mais em harmonia com os grandes interesses do Estado, embora tenha de incorrer no desagrado de alguns indivíduos, embora tenha de irritar os interesses privados.
Em uma época em que o interesse público é quase sempre abafado por cálculos de egoísmo, em que os políticos, antes do bem do país, consultam as suas particulares conveniências, e tratam da sua elevação pessoal, o procedimento cheio de abnegação e de civismo do Sr. D. Manuel tem-se tornado verdadeiramente notável. Sem querer remontar a épocas anteriores, lembraremos que o ilustre senador fez oposição enérgica e franca ao Ministério presidido pelo finado marquês de Paraná, homem forte cuja vontade bem poucos ousaram contrariar. Os relevantes serviços prestados ao país pelo Sr. D. Manuel na oposição que fez aos Ministérios de 12 de dezembro de 1858 e de 10 de agosto de 1859 são ainda muito recentes. O papel que S. Exª representa atualmente em relação ao Ministério de 2 de março de 1861 honra sobremaneira o seu caráter, e é mais um documento da pureza do seu patriotismo.
Na vida parlamentar do Sr. D. Manuel há um fato que por si só faria a glória de um parlamentar, de um cidadão honesto, e que por isso merece ser especialmente memorado.
Em 1859 o tesouro público achava-se nas peníveis circunstâncias que ainda hoje subsistem. A elevação do preço de todas as coisas necessárias à vida colocou as classes menos favorecidas nas maiores dificuldades para prover às necessidades imperiosas. Uma das mais importantes das nossas províncias estava a braços com uma fome horrível, produzida por uma seca prolongada.
Com esse estado desolador contrastava o progresso e florescência do teatro lírico italiano do Rio de Janeiro, grande escola de luxo, origem da ruína das famílias, verdadeiro foco de corrupção. Precisamente na quadra em que mais se fazia sentir a penúria do estado e a miséria de muitos particulares é que esse estabelecimento ousou pedir ao Poder Legislativo que elevasse ao dobro a subvenção que por meio de loterias lhe prestava
Tão arrojada pretensão era sem dúvida um insulto feito aos supremos poderes do estado, um escárnio lançado em face à população sofredora. Entretanto o teatro lírico era poderoso. Ninguém ousava arrostar de frente sua influência; ninguém abertamente contrariava suas arrojadas pretensões. A Câmara dos Deputados aprovou o projeto por grande maioria de votos.
No fim da sessão de 1859 foi ele dado para a ordem do dia do Senado. Todos contavam que, apesar da indignação que essa medida produzira em todas as classes sensatas da sociedade, o Senado a aprovaria, por não ser possível resistir ao grande poder que protegia o teatro lírico. O Sr. D. Manuel determinou embaraçar por todos os meios a aprovação do projeto.
Todos lembram-se com admiração e reconhecimento do papel que fez o Sr. D. Manuel por essa ocasião. Combateu o projeto com todos os argumentos que sua ilustração e seu patriotismo lhe inspiraram. Falou longamente sobre as inconveniências da medida nas difíceis circunstâncias em que se achava o país; censurou o teatro lírico como a principal origem, a maior animação ao luxo que tendia a arruinar completamente a nossa sociedade. Infelizmente o Sr. D. Manuel não encontrava quem o contestasse. A questão do teatro lírico era uma dessas que ninguém apoia com a palavra, mas que muitos sustentam com o voto. No momento, pois, em que o Sr. D. Manuel, entendendo ter esgotado todas as suas razões contra o projeto, recolhesse-se ao silêncio, a medida seria votada.
O Sr. D. Manuel compreendeu belamente a tática dos amigos do projeto e não desanimou. Ocupou a tribuna constantemente, sempre que o projeto era posto em discussão. Falou durante sessões inteiras, e conseguiu afinal que a medida não passasse em 1859.
Na sessão de 1860 renovou-se a luta. O Sr. D. Manuel continuou no seu sistema. Afinal ficaram tão patentes os inconvenientes da medida, tornou-se tão escandalosa a questão do teatro, que o Senado rejeitou o projeto.
Para que o público colhesse os benefícios que inquestionavelmente resultam da supressão do teatro, muitos sacrifícios, muitos desgostos teve que sofrer o Sr. D. Manuel. Sobre ele recaiu todo o despeito, todos os furores dos interesses que foram feridos com o ato do Senado. Deve, porém, restar ao ilustre senador a consolação e a glória de ter prestado um serviço importante ao país, e de ter secado uma das fontes de desmoralização da nossa sociedade.
O Sr. D. Manuel nasceu na capital da província de Goiás aos 28 de agosto de 1806. É filho do finado D. Francisco de Assis Mascarenhas, marquês de Palma. Estudou direito na Universidade de Coimbra, onde tomou o grau de doutor.
Pouco depois de sua formatura foi nomeado adido de f classe na legação de Berlim, e em seguida secretário da legação em Viena, onde exerceu interinamente o cargo de encarregado de negócios.
A diplomacia não o prendeu por muito tempo. Abandonou-a pela magistratura na qual exerceu vários cargos. Há alguns anos exerce o lugar de desembargador da Relação da corte, e é um dos juízes que por sua ilustração e incorruptibilidade mais honra fazem à magistratura brasileira.
É comendador da Ordem de Cristo, oficial da Rosa, e gentil-homem da Câmara de Sua Majestade o Imperador.
O Sr. D. Manuel nunca foi ministro. Não lhe pese porém isso. No ministério, a experiência o tem demonstrado, os homens mais bem intencionados nada conseguem. Como senador S. Exªpresta ao seu país serviços importantíssimos, e tem já adquirido inquestionavelmente direito de fazer parte do pequeno grupo dos nossos parlamentares com que se ocupará o futuro.
Concluindo estas rápidas observações temos de pedir desculpa pela imperfeição e pelas lacunas de que este trabalho se ressente. Nossa justificação está toda na obstinada recusa do Sr. D. Manuel de prestar-nos qualquer auxílio. S. Ex^ levou tão longe seu escrúpulo que nem mesmo nos quis fornecer algumas datas que lhe pedimos.