Galeria dos Brasileiros Ilustres/José Bento Leite Ferreira de Melo
<bi>A</bi> morte entre nós goza de um singular privilégio: nivela perfeitamente todas as condições sociais. O talento, as virtudes, o saber, o génio, o patriotismo, os serviços, apenas feridos por ela, são completamente esquecidos. Prestadas as derradeiras homenagens ao homem eminente que baixa ao túmulo, a nossa sociedade parece que julga importuna sua memória. Preocupada em demasia com os interesses de momento, confunde na mais completa indiferença o estadista consumado e o patriota sincero com o usurário egoísta, que não soube abrigar em seu coração um sentimento generoso.
Não é porém assim que uma sociedade pode elevar-se a brilhantes destinos. Os povos que mais se têm distinguido na cena do mundo tornaram-se notáveis pelo culto que rendem à memória dos seus grandes homens. Honrando-os, conservando religiosamente a lembrança de seus feitos, inspiram às gerações novas o nobre desejo de imitá-los, e de excedê-los. É desta sorte que se fundam e se robustecem as grandes nacionalidades. Sem o laço da tradição que prende a geração atual às gerações passadas, sem o culto dos avós não há propriamente nacionalidade; a sociedade não passa de uma união determinada simplesmente por interesses atuais e efémeros, e por isso não pode resistir ao choque de elementos hostis.
Os homens que mais se empenharam na fundação da nossa nacionalidade, os varões eminentes que sacrificaram seu repouso, seus interesses, na sua vida para conquistarem as liberdades de que ainda hoje gozamos, são recompensados com o esquecimento nacional...
E é assim que o Brasil pretende os faros de nação culta? que respeito terão os estranhos pelas nossas glórias se somos os primeiros a esquecê-las e a desprezá-las? que incitamento para o bem se oferece à mocidade se o cidadão eminente e o homem obscuro são confundidos no mais profundo esquecimento?
Poucos hoje se lembrarão do senador José Bento Leite Ferreira de Melo. A exceção dos que partilharam suas glórias e seus trabalhos, e de alguns amigos fiéis para quem a morte não é um título de esquecimento, raros serão os contemporâneos que se recordarão desse homem cujo nome há pouco todos conheciam. E entretanto não pas-saram-se ainda 20 anos depois de sua morte! E entretanto o senador José Bento tem direito de figurar entre os homens mais distintos do nosso país!...
Comemoremos, ainda que brevemente, as circunstâncias mais notáveis de sua vida.
José Bento Leite Ferreira de Melo nasceu na província de Minas Gerais, na vila, hoje cidade da Campanha, aos 6 de janeiro de 1785. Foram seus pais o sargento-mor José Joaquim Leite Ferreira de Melo e D. Escolástica Bernardina de Melo. Descendia de uma família ilustre da vila de Guimarães em Portugal, e da família Prado da cidade de S. Paulo.
Destinado por seus pais ao estado eclesiástico, aprendeu a língua latina na vila da Campanha e seguiu logo para a cidade de S. Paulo a fim de instruir-se nas ciências morais e teológicas.
Em S. Paulo residiu com o virtuoso bispo D. Mateus até a conclusão da sua carreira.
Em 1810 foi criada a freguesia de Pouso Alegre na capela do Senhor Bom Jesus do Mandu. O padre José Bento compareceu ao concurso feito para provimento dessa igreja, e conseguiu ser apresentando e colado. Logo depois foi nomeado vigário da vara da comarca eclesiástica, ministério que exerceu até o seu falecimento.
O governo imperial nomeou-o cónego honorário da Sé de S. Paulo, e posteriormente cavaleiro e comendador da Ordem de Cristo.
A povoação do Mandu, sede da nova freguesia, constava então de meia dúzia de casas de aparência miserável. O padre José Bento apenas tomou posse da freguesia, meditou fundar uma povoação importante nas belas margens do Sapucaí. Atraiu para aí muitos amigos e parentes e lançou os fundamentos da cidade de Pouso Alegre, uma das mais importantes povoações do sul da província de Minas.
O alinhamento das ruas, a disposição das habitações, tudo que interessava à beleza e aformoseamento da nova povoação foi planejado e dirigido imediatamente pelo vigário.
Aos esforços do padre José Bento, à sua influência que crescia com seus serviços, deve-se a transformação da mesquinha povoação do Mandu em uma vila bela, rica e populosa.
As idéias liberais, que por fim abriram espaço em Portugal em 1821, encontraram um sectário sincero e ardente no vigário de Pouso Alegre.
Desde então alistou-se ele nas fileiras do partido liberal de que foi sem contestação um dos mais brilhantes ornamentos.
Nesse mesmo ano procedendo-se às eleições para deputados às Cortes portuguesas, foi o padre José Bento nomeado eleitor da paróquia de Pouso Alegre, depois eleitor da comarca do Rio das Mortes em S. João d'El-Rei e finalmente membro da junta eleitoral da província.
Achando-se na capital como eleitor, distinguiu-se tanto que foi nomeado membro do governo provisório que então foi instalado.
Fez parte do primeiro conselho geral da província de Minas, e nesse cargo revelou-se homem de inteligência superior, de uma firmeza de caráter pouco comum.
Essas qualidades preciosas tornaram-no um dos cidadãos mais populares da província de Minas. Na primeira eleição a que se procedeu para deputados gerais, os mineiros deram-lhe um lugar na deputação da província. De 1826 em diante interferiu constantemente nos negócios do país como representante da nação. Em 1834 sendo apresentado pela província em lista tríplice de que faziam parte os finados senadores Vasconcelos e Manuel Inácio de Melo e Sousa, foi escolhido senador pelo governo regencial.
Por ocasião na sedição militar promovida pelo partido retrógrado em Ouro Preto, no ano de 1833, achava-se o padre José Bento na capital como membro do conselho do governo. Coube-lhe a glória de ser uma das vítimas escolhidas pelos absolutistas. Deposto na noite de 22 de março o presidente Manuel Inácio de Melo e Sousa, depois barão de Pontal, os sediciosos prenderam o vice-presidente da província, Bernardo Pereira de Vasconcelos, então um dos mais proeminentes chefes do partido liberal, e o padre José Bento.
Acompanhados por uma escolta, que tinha ordem de levá-los até fora da província, foram libertados pelo povo da vila de Queluz, seguindo Vasconcelos para S. João d'El-Rei onde foi instalar o governo legal.
O padre José Bento não se contentava com a influência que exercia sobre a opinião por meio da tribuna. Compreendendo que a imprensa é o mais poderoso meio de propagação de idéias levou para Pouso Alegre uma tipografia, na qual publicou por algum tempo o Pregoeiro Constitucional e depois o Recompilador Mineiro.
A primeira publicação impressa da Constituição brasileira foi feita nessa tipografia. Nunca pudemos obter exemplar alguma dessa edição da Constituição; asseveram-nos entretanto que existe.
José Bento foi um dos mais denodados campeões dessa oposição memorável que o partido liberal fez aos desmandos do primeiro reinado. O governo do Senhor D. Pedro I foi por ele combatido energicamente na tribuna e na imprensa. A província de Minas que em cada uma das suas povoações mais importantes tinha um jornal que combatia o poder e advogava as idéias livres, contava igualmente numerosas sociedades patrióticas, que trabalhavam para o mesmo fim.
Em Pouso Alegre, foi fundada em 1831 pelo padre José Bento a sociedade patriótica — Defensora da Liberdade e Independência Nacional.
A direção que o governo regencial nos últimos anos de sua existência dava aos negócios públicos era deplorável. Em vez de procurar consolidar as nossas instituições livres por meio da prática sincera do sistema representativo, o governo da regência, os conservadores que então dominavam só tinham um pensamento: aniquilar todas as gloriosas conquistas do partido liberal, ou antes todo o fruto das nossas revoluções.
O Ato Adicional, o mais seguro penhor da união brasileira, sofrera golpes terríveis com a lei de interpretação de 12 de maio de 1840.
O Código do Processo, que dava perfeitas garantias à liberdade individual, por meio das sábias disposições do processo e por meio de magistraturas populares, era igualmente ameaçado de uma anulação.
Discutia-se então o famoso projeto que foi convertido em lei a 3 de dezembro de 1841 e que tanto sangue custou ao Brasil.
Tratava-se também de restabelecer o conselho de estado anulado em 1834 pelo partido liberal.
A reação era completa. O edifício levantado à custa de tantos anos de sacrifícios esboroava-se assim aos golpes repetidos dos conservadores, que dominavam o governo regencial.
O partido liberal na maior pureza de intenções teve o belo sonho de conservar a liberdade por meio da monarquia. O infante, para quem esse partido generoso havia conservado um trono que pudera ter suprimido, achava-se na adolescência. Nascido em terra de liberdade, educado no meio das festas populares que celebravam o triunfo de 7 de abril, quem melhor do que ele poderia realizar essa ideia feliz?
Tal foi o pensamento do partido liberal quando concebeu a ideia de operar a revolução da maioridade. É verdade que um artigo constitucional seria sacrificado, mas o partido liberal só tomava essa responsabilidade com o fim de fazer parar o carro da reação que ameaçava esmagar todas as instituições livres.
José Bento, democrata da escola de Feijó, abraçou a ideia da maioridade com verdadeiro entusiasmo, e foi um dos seus mais estrénuos propuganadores. Seu nome figura entre os seis signatários do projeto apresentado ao Senado a 13 e rejeitado a 20 de maio de 1840.
Não tendo vingado o outro projeto que o finado senador António Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva apresentara a 20 de maio na Câmara dos Deputados, por ter sido dissolvida a Câmara no dia 22 pelo ministro do Império Bernardo Pereira de Vasconcelos, os deputados dirigiram-se para o Senado e com os senadores e o povo proclamaram revolucionariamente a maioridade.
Nessa memorável sessão o senador José Bento elevou-se a toda a altura do seu talento e do seu patriotismo. Tribuno do povo, advogava com calor a medida revolucionária a fim de salvar as instituições; verdadeiro patriota, moderava as paixões populares para que o triunfo da ideia liberal não fosse manchado por excessos.
Sua figura foi a mais proeminente desse dia popular. Transcrevamos aqui as palavras eloquentes de um escritor liberal, testemunha ocular dos acontecimentos:
"Está vivamente em minha lembrança a cena desse pronunciamento metade parlamentar e imperial, metade popular, que precedeu a investidura antecipada e revolucionária do monarca no exercício de suas altas funções. José Bento Leite Ferreira de Melo, a primeira figura desta joumée des dztpes, ocupava uma das janelas do Senado, e aí abraçado com o busto do imperador exortava o povo impaciente pela demora da comissão, que se dirigira ao paço de S. Cristóvão. Parece-me estar vendo ainda aquela fisionomia móbil e ardente, em que se reverberavam como em um espelho as nobres paixões de sua alma entusiasta e patriótica! A comissão volta; a decisão do príncipe que quer governar desde já é anunciada; e José Bento, delirante de júbilo, congratula-se com todos como por uma faustosa vitória alcançada para a causa do país. Ah! desventurada vítima! se naquele instante iluminando-se repentinamente as trevas, que ocultam aos olhos do homem as páginas do porvir, tu visses em seguida dessa vitória burlada pela ingratidão o Brasil estrebuchando sob as garras de uma facção, as liberdades públicas agrilhoadas, teus amigos lançados nas masmorras e no desterro, tua bela província entregue ao saque e à devastação; e mais longe, teu próprio cadáver ensanguentado, e prostrado em uma estrada pública pelo bacamarte da reação... o que diríeis, o que faríeis?..."
As mesmas causas que levaram o Partido Liberal a operar a revolução da maioridade forçaram-no a recorrer ao extremo dos combates em 1842. Os mais eminentes liberais tiveram uma participação maior ou menor no movimento revolucionário de Minas Gerais e São Paulo. Feijó, Marinho, Otôni e outros confessaram-no com toda a franqueza.
O senador José Bento não foi estranho à revolução. Em sua casa reunia-se o clube de deputados e senadores de S. Paulo e Minas, que concertava os planos do movimento.
Em um discurso que pronunciou no Senado em 1843 o ilustre democrata deixou ver bem claramente a participação que havia tido na revolução.
A sessão de 1843 foi a última a que assistiu o infeliz senador José Bento. No dia 8 de fevereiro de 1844, retirando-se às 4 horas da tarde da cidade de Pouso Alegre para sua fazenda, sita a um quarto de légua de distância, foi assassinado barbaramente por quatro indivíduos seus protegidos, sendo um deles seu afilhado.
O sacrifício dessa ilustre vítima consternou a gente honesta da cidade de Pouso Alegre, e o Partido Liberal de todo o império que acabava de perder um dos seus mais distintos membros.
O senador José Bento era um homem verdadeiramente superior. Com a instrução deficiente que em 1810 exigia-se em um padre conseguiu, à força de talento, tornar-se um dos vultos mais eminentes de um partido em que figuravam muitos homens notáveis. Não era um simples soldado; era um chefe precioso, dotado de inteligência superior que sabia combinar o ataque e a defesa, e de uma vontade firme que não conhecia obstáculos. Estas qualidades davam-lhe grande ascendência entre os liberais. Muitas ilustrações do partido entregavam-se com docilidade à sua inteligente direção.
Enfim, o senador José Bento era tão felizmente organizado, distinguia-se tanto por sua inteligência e pelo seu caráter forte, que, pode-se avançar, se tivesse tido uma educação literária e científica completa, teria sido o primeiro vulto político de seu tempo.