Galeria dos Brasileiros Ilustres/José Antônio Saraiva

Ao começar da última sessão do Parlamento, neste ano de 1859 uma circunstância notável prendeu para logo a atenção do público. Um cidadão que havia militado nas fileiras do partido conservador, e que acabava de ser, no governo de Pernambuco, delegado do gabinete que então geria os destinos do país, se levantava e dizia:

—- Retiro a minha confiança ao Ministério de 12 de dezembro!

Caindo em cheio numa assembléia, cujas ondas vagavam ainda sem norte, cujos movimentos revelavam antes receios do futuro do que esperança no presente, essa manifestação franca de um voto decisivo ia condensar as nuvens da oposição, fomentar o debate, provocar a luta, excitar protestos, levantar contendas. Portanto, o que desagradava a muitos, assim como, para outros, era o som da trombeta que dá o sinal de combate.

Nesse dia, a sorte do Gabinete de 12 de dezembro foi jogada. Nesse dia, a opinião que esse ministério representava, e que com ele devia triunfar, conheceu, ou devia conhecer, que as vias do futuro lhe estavam cortadas, que os aliados rasgavam, ainda que com saudades, o pacto firmado depois da vitória de 29 de setembro de 1848; viu que se conspirava, se armava a sedição e levantava-se dentro em seus próprios acampamentos; descortinou o abismo que aos poucos se fora cavando a seus

pés, e que agora, mais profundo, a cercava em derredor: e então, pressentindo a derrota, clamou que fora atraiçoada...

Atraiçoada! Não! havia sido, apenas, julgada.

Os dogmas passam: era tempo de instituir exame, de colher documentos, de proferir juízo sobre aqueles que, alardeando vestes pontifícias, e com a gravidade de serem sobrenaturais, pretendiam o governo exclusivo, em nome de um privilégio odioso. Os dogmas passam: sobre a areia movediça dos tempos não é possível construir pirâmides. Os dogmas passam: para cada época um princípio, uma opinião, uma idéia essencial, um pensamento diretor.

Como em tudo, assim é na política. Aqueles que só cuidam do dia de hoje, que assistem descuidosos ao nascer da aurora e ao cair da noite, que não se elevam ao cume dos princípios donde se contempla o universo, esses, na manhã de 29 de setembro de 1848, no dia de uma vitória, não sonhavam que a medalha teria um reverso. Acreditavam ingenuamente que a última palavra estava proferida: que bastava gravá-la nos frontais dos palácios e esculpi-la nas colinas dos templos, para a completa felicidade do país.

Ilusão pueril!

Rasgou-se o véu de ficção que tomaram pela realidade. O futuro avança, ameaça confundi-los; e eles, imprudentes! abandonam-se à indolência de Cápua, às venturas do presente.

Não o dizemos por nós somente. Quem quis escutar, ouviu-o distintamente por toda a sessão, que acaba de findar, do corpo legislativo. Sem falar desses murmúrios populares, tão cheios de bom senso, e que são de ordinário os precursores do porvir, a manhã das revoluções; sem recordar esse rumor que nos vem das províncias, ora vago como o longínquo bater das ondas nas praias, ora condensado com o arruído de um imenso tropel; sem comemorar as apreensões da imprensa, as exagerações, se são exagerações, dos jornalistas políticos; não são bastante eloqüentes os sucessos que se acabam de reproduzir no seio do Parlamento? E quem houve que se não sentisse comovido pelo decurso de toda esta última sessão?

Esses acontecimentos são dignos da História. Não deixemos, pois, obscurecerem-se as glórias do nosso tempo; não olvidemos os triunfos da causa do progresso; não condenemos à indiferença os cavalheiros do futuro. É tão criminoso o ateísmo político como é desastrosa a exageração do fanatismo. Registremos nestas ligeiras páginas, soltas aos ventos da fortuna, a vida daqueles de quem o Brasil espera muito. Soletremos ao país os nomes distintos de esforçados lidadores. Sem apóstolos não há religião possível: se vos interessais pela causa que defendeis, lede o livro de seus apóstolos, ouvi a história de seus feitos. É assim que as crenças se fortificam, que as fileiras se condensam, que se ajunta o valor à esperança; é assim que a confiança cresce, que todos se animam, que todos palpitam, que todos se põem à escuta das palavras de seus consórcios, ameaçando confundir os que faltarem à fé jurada; é assim que o coração do povo, transformando os representantes de sua opinião em ídolos de ouro, derruba por terra, sem estrépito, sem as-suadas, sem clamores, as estátuas de barro!

Comecemos a nossa tarefa por um nome que, de três anos a esta parte, tem sido o alvo de muita ansiedade, o repouso de muita esperança. Vamos retratar a vida de um cidadão que, na sagacidade do tino, no conhecimento dos homens, na prontidão no decidir, na originalidade dos projetos, na ciência de se colocar superior a todos os interesses e a todas as paixões, e só inferior ao interesse e à paixão da justiça, pode servir de modelo aos homens da administração; e, pela sinceridade das convicções, pela moderação das idéias, pela vista profunda e longa que descortina os efeitos das causas, atrai a atenção dos estadistas e a contemplação do país. Vamos, enfim, tirar a limpo o vulto simpático do sr. conselheiro Saraiva.

José Antônio Saraiva nasceu no engenho Quitangá, freguesia do Bom Jardim, do município de Santo Amaro, na província da Bahia, em o 1º de maio de 1823. É filho legítimo de José Antônio Saraiva e de D. Maria da Silva Mendes, falecidos, o primeiro no ano de 1834, e a segunda em 1833. Foram seus avós maternos o capitão Luís Manuel da Silva Mendes e D. Joaquina Inácia Perpétua Felicidade Garcez; e paternos, o negociante matriculado (na praça da Bahia) José Antônio Saraiva e D. Catarina Francisca Saraiva.

Seu pai tomou uma parte muito ativa nas lutas da independência do Império. Com o denodo de um patriota assistiu às convulsões do despotismo português, do regime colonial; entoou os hinos de "independência ou morte", que faziam, e ainda fazem, estremecer a Bahia inteira: ouviu os gemidos de angústia e os cânticos de triunfo. Com o coração ainda quente das emoções da liberdade, a reação monárquica e centralizadora de 1825 viu-o, o mesmo homem, voltar as costas, como outros tantos, ao príncipe que o 7 de Setembro fizera imperador e que se esquecia da origem popular de seu trono.

Membro do partido liberal-extremo daqueles tempos, José Antônio Saraiva deu a seu filho a educação moral e literária mais apurada, destinando-o às carreiras públicas: foi assim que, na ocasião de sua morte, o menino, havendo atingido apenas os onze anos da idade, conhecia já as línguas latina e francesa, e tinha noções gerais de geografia, estudos feitos na cidade de Santo Amaro.

Desse tempo em diante ficou o jovem Saraiva entregue aos cuidados de seu avô afim, o brigadeiro Henrique Garcez. Este, que era guarda-roupa do Sr. D. Pedro I, e professava opiniões políticas opostas, forcejou por que o menino abandonasse o pensamento, tão acariciado por seu pai, de seguir o curso das academias de direito; incitava-o a que se desse à lavoura ou comércio, obstando, com esse intuito, por alguns anos, a continuação dos estudos já adiantados.

Não pôde o velho brigadeiro, porém, vencer a obstinácia com que o moço ambicionava realizar os desígnos de seu pai: enviou-o, pois, a S. Paulo, onde, com aplausos dos colegas e dos doutores seus mestres, recebeu, em outubro de 1846, o grau de bacharel em ciências jurídicas e sociais. Ali, no meio dessa atmosfera juvenil em que se respira vida, em que o espírito se alimenta de entusiasmo, e a imaginação corre a devassar futuros; ali, no silêncio da meditação, nos bancos da academia, ao lado dos Olímpio Machado e dos João Brotero, as idéias do moço se apuraram e fortificaram, suas convicções se formaram, o seu caráter começou de tomar as formas precisas e as feições simpáticas, que tanto o distinguem.

Regressando, logo após, à província que o viu nascer, exerceu imediatamente vários cargos policiais da capital, ao passo que estreava no papel de advogado, ocupando por vezes a tribuna do júri. Pouco tempo depois, era nomeado, em junho de 1848, promotor da comarca de Jacobina; juiz municipal de Valença, em novembro do mesmo ano; e, posteriormente, removido para os termos reunidos de Jacobina e Vila Nova da Rainha, onde angariou a estima de todos os munícipes sem exceção. A retidão do juiz devia de ser o brilhante prefácio da imparcialidade do administrador.

Eleito membro da assembléia provincial (1849), abordou a tribuna sem acanhamento, sujeitou-se sem embaraço, orou sem tropeços. Tomando parte ativa nas discussões, falando uma linguagem singela, mas animada, grave, sem pretensão, moderada, sem fingimento, granjeou simpatias gerais, e firmou reputação de pensador.

Destarte, e mostrando-se familiar no conhecimento dos negócios públicos, nomeou-o o governo imperial, por carta de 23 de junho de 1850, presidente do Piauí.

A administração que fez nessa província dá-nos a medida dos talentos e o cunho do caráter do Sr. conselheiro Saraiva. Durou ela pouco mais de três anos, e durante esse espaço assistiu a eleições de membros da assembléia provincial, de deputados gerais e de um senador. Cônscio da dignidade de seu cargo, sem exagerá-lo, assim como sem deprimi-lo, soube respeitar a liberdade de voto; não oprimiu para vencer, não corrompeu para excluir; não montou máquinas eleitorais, não converteu o governo em caudilho de partidos. A repressão do crime foi pensamento seguido e ato contínuo do seu governo: se a sua autoridade pesou com força sobre alguma coisa, foi certamente sobre a cabeça dos inimigos da lei. Não passaram despercebidos os seus serviços eficazes que prestou nesse ramo da administração da justiça; no relatório de 1852, o ministro dessa repartição deles fez menção honrosa e especial. Reconhecendo má a situação da capital da província, a cidade de Oeiras, resolveu o sr. Saraiva edificar uma outra nas margens do Par-naíba; e, apesar das dificuldades que se lhe opunham, apesar dos intere-ses locais coligados que já haviam embaraçado e contrariado intenções semelhantes de alguns de seus antecessores, conseguiu a necessária autorização da assembléia provincial. Assim, com uma presteza e uma prudência sem iguais, viu-se de chofre nascer a nova capital, a cidade Teresina, cujo florescimento é a glória de seu fundador.

Mas, não existe, que saibamos, na história das últimas administrações das províncias do Império, uma circunstância tão digna de atenção como a seguinte: o presidente que governara a província do Piauí por mais de três anos; que operara a transferência da capital; que perseguia os criminosos por toda a parte, sem exceção de cores locais, de patrocínios políticos; que, finalmente, atravessara várias lutas eleitorais, e, entre essas, uma eleição de deputados e outra de senador; deixou o poder sem haver exercido uma vingança política, sem haver referendado listas de proscrições, sem haver abandonado a província à prepotência dos grupos; deixou o poder com as saudades de todos, com as afeições dedicadas de muitos, com as bênçãos do povo — desse povo que mais tarde, no ano de 1858, erigia-lhe, na cidade que fundara, uma pirâmide com esta legenda: "Em sinal de memória, os piauienses agradecidos!" Ah! se esses administradores efêmeros, se esses governos de aparato, se esses chefes de momento pudessem defender seus nomes da devastação dos tempos de hoje, envolvendo-os nas dobras de uma semelhante túnica de seda e púrpura, que só a mão generosa do povo suspende aos ombros dos governos patriotas, desinteressados e justos!

Removido, em agosto de 1853, para a presidência de Alagoas, empenhou-se nesta província, com tanto ardor quanto manifestou na do Piauí, pela repressão do crime. Tão próspero sucesso correspondeu a seus esforços que, dentro de poucos meses, o foco de malfeitores que infestava o centro de Alagoas, na comarca da Imperatriz, ficou para sempre destroçado. — Aqui, revelou, ainda uma vez, a consciência que tinha de sua autoridade, e a convicção, que sempre manteve, de que a maior necessidade dos povos é a imparcialidade no governo, a independência no administrador, — essa qualidade especial de se colocar o poder acima de todos, para fazer justiça a todos, sem recear de ninguém; qualidade que não exclui certamente o respeito à opinião, porque é sem dúvida a melhor garantia da opinião.

O mesmo, inteiramente o mesmo, se pode afirmar de seu governo em S. Paulo.

Despachado presidente dessa província em junho de 1854, o Sr. Saraiva, ao passo que impunha o programa de moderação aos dois partidos que ardentes dividiam S. Paulo, transformando em realidade o pensamento do gabinete de que era delegado, traçava os mais seguros e deslumbrantes planos de melhoramentos materiais. Com efeito, a província de S. Paulo, com avultada população e centros produtores, disseminados por um território tão extenso quanto fértil, sentia a mais palpitante necessidade de vias de comunicação; necessidade que, subindo ao auge, se converteu hoje em verdadeiro desespero. Administrações cujos cuidados se reduziam ao estreito círculo das questões políticas; influências de localidade, que pensavam na distribuição das rendas, impedindo uma boa e sistemática aplicação dos recursos da província, concorreram, com outras causas que nos não cabe discutir aqui, para o abandono das estradas, caminhos, canais e pontes, condições imperiosas da lavoura de um país. Maravilhado de que nem sequer se haviam conservado convenientemente algumas das construções antigas, como a estrada do Cubatão, o Sr. Saraiva solicitou para logo, e obteve da assembléia provincial, os fundos necessários para o engajamento de operários e engenheiros, que efetivamente se contrataram em Londres.

Resolvido a imprimir uma direção nova aos trabalhos públicos da província, o Sr. Saraiva conseguiu, por intermédio do ministro brasileiro naquela corte, o engajamento de um engenheiro profissional, incumbido principalmente de "levantar a carta das estradas de S. Paulo", carta que devia de ser, no pensar do Sr. Saraiva, o roteiro seu, e dos presidentes vindouros, para o seguimento e complemento gradual de um sistema de viabilidade que ligasse, primeiro, os grandes centros produtores aos portos no litoral, e, depois, todos aqueles entre si: sistema tão simples, tão econômico, tão razoável, tão intuitivo, e que, entretanto, ainda é hoje um problema para as ricas províncias do Brasil!

Por desventura, porém, da província de S. Paulo, um governo que tão magníficos resultados prometia foi de breve duração. Por tomar assento na câmara temporária, de que fora, em novembro de 1852, eleito membro por sua província natal, o Sr. Saraiva largou, em junho de 1855, das rédeas da administração, durante a qual seu espírito se revelara plenamente desenvolvido em toda a extensão dos seus vastos recursos.

Desse cargo, por ter votado contra a lei da reforma eleitoral, pediu, e, apesar das insistências do presidente do gabinete, obteve a sua exoneração.

Votando contra o Gabinete Paraná, o Sr. Saraiva não se determinava pelos motivos de oposição, que moveram geralmente os con servadores de ambas as câmaras divergentes do Ministério: o seu era um motivo diverso: era (se nos é lícito devassar as intenções de outrem), era, talvez, a diminuta confiança que aos caracteres refletidos inspira uma situação nova, que não dava seguranças de si mesma; eram, talvez, as apreensões do constitucional; eram, porventura, receios de um poder cuja prepotência... se não sabe dizer até onde podia chegar.

Em novembro de 1855 foi reeleito deputado pelo distrito da Jacobina. A câmara temporária, aprovando unânime (exceto um voto) o parecer que concluía pela legitimidade da eleição do Sr. Saraiva — eleição disputada, mas de que se triunfou, apesar de influências ministeriais e da de outros cavalheiros residentes na corte — a câmara temporária via-o dias depois (maio de 1857), tomar assento nos conselhos da coroa, ministro da Marinha, membro do gabinete a que ela prestava, em sua primeira sessão, uma adesão franca, um apoio entusiasta, o Gabinete de 4 de maio, o Gabinete do marquês de Olinda, do senador Sousa Franco, do general Coelho.

Não é nosso propósito, nem podíamos fazê-lo, determinar precisamente a porção de influência que coube ao Sr. Saraiva nas tendências, nos planos, nas decisões, no progresso, na vida, na morte do Gabinete de 4 de maio. A situação política que esse gabinete criou no país, sustentada, acariciada, protegida, fecundada pelo venerando cidadão que o organizara, foi resultado do concurso leal e sincero de cada um de seus colegas. Ao Sr. conselheiro Saraiva, pela reputação que se havia feito, pelas ligações, que o prendiam à Câmara dos Deputados, pela franqueza das opiniões, pela sinceridade das convicções, coube, certamente, grande parte dos sucessos do gabinete. Mas as questões da repartição a seu cargo, de natureza antes administrativa do que de política interna, atraíram a sua atenção, tanto mais fortemente, quanto dificuldades se levantavam nas relações do Império com um dos estados ribeirinhos, para cuja solução devia de intervir a nossa marinha de guerra.

Com efeito, a administração do Sr. conselheiro Saraiva foi das mais fecundas que conta a repartição da marinha. Vê-lo, a esse jovem ministro, procurar auxílios de todos, aproveitar as informações de todos e, com os dados colhidos nessas pesquisas, traçar planos e empreender trabalho de vastas proporções! Que manejo dos negócios, que firmeza nas idéias, no sistema, nos resultados! Suas vistas perscrutadoras dominaram para logo as minudências da repartição que dirigia; e, dentro em poucos meses, sua atividade fez-se sentir no centro e na circunferência da administração. Reorganização do corpo de saúde da armada, do corpo de fazenda, dos oficiais de apito, do corpo de maquinistas; reforma da academia de marinha, sob um desenho mais largo e um método mais regular do que o antigo; melhoramentos dos artífices de embarque; criação de companhias de aprendizes menores na corte, Bahia e Pernambuco; e de aprendizes marinheiros em Pernambuco, Santa Catarina e Mato Grosso; aumento da de imperiais marinheiros desta última província; contrato de marinhagem para os navios que se fabricaram; aumento da flotilha de Mato Grosso; construção, na Europa, de dez canhoneiras a vapor, adaptadas à navegação do rio da Prata e confluentes; fabrico de seis vasos próprios para subirem o Paraguai; fundação do estabelecimento naval do Itapura, com o projeto da navegação a vapor do Alto Paraná; aumento considerável do material dos arsenais; melhoramento de portos; regularização do corte de madeiras; regulamento e organização do conselho naval, além de outros muitos objetos, enfim, eis o fruto precioso de uma administração que, por desventura do país, só durou dezoito meses, estreito espaço de tempo sem dúvida, mas de sobejo aproveitado por um ministro jovem, empreendedor e animado.

Contudo, houve quem levantasse, contra a administração do Sr. conselheiro Saraiva, censuras de desperdício e esbanjamento. Fora, porém, mister provar que, na iminência de guerra com o Paraguai, e desprovido de tudo, devesse o governo dormir numa indolência criminosa, pelo escrúpulo de despender bastante com a compra de material e engajamento de marinhagem, suficientes para assegurar-se o triunfo da causa brasileira. Os dinheiros púbicos não se gastaram em vão e sem proveito para o futuro: obteve-se excelente material para os arsenais; adquiriu-se grande número de bons marinheiros; aumentaram-se e regu-larizaram-se diversos corpos; e, finalmente, construíram-se ou com-praram-se, quase todos fora do país, não menos do que dezoito vasos de guerra, adaptados à navegação dos rios: todas estas, vantagens que não são transitórias. Dem ais, proporcionalmente à de outros exercícios, a despesa realizada, por conta da administração do Sr. Saraiva nem foi tão avultada como se tem querido insinuar ao público, nem tão subida como podê- la-ia tornar um ministro menos fiscalizador e econômico.[1] Enfim (e para aqui excitamos toda a atenção do leitor), quem evitou a guerra com o Paraguai, guerra que afinal seria sempre, mesmo depois de uma vitória, mais estéril que fecunda, mais penosa que produtiva; que moderou as iras do seu governo, arrancando-lhe concessões, não foi somente a mágica palavra da diplomacia; não foram cortejos, não foram aparatos oficiais: mas foi a atitude imponente e ameaçadora em que se colocou o Império; foi a previdência do ministro que, de antemão e com a maior atividade, reuniu todos os recursos que pudessem proporcionar o triunfo da guerra iminente.

Nos conselhos da Coroa, o Sr. Saraiva, o ministro jovem, podia bem assentar-se ao lado do Sr. marquês da Olinda, o ministro ancião. Quaisquer que hajam de ser os casos futuros, guarde o Sr. conselheiro Saraiva a memória de sua administração afortunada: tão pura e tão cheia, é uma glória legítima!

Não cabe aqui estudar as causas da dissolução do Gabinete Olinda. Quaisquer que hajam sido elas, é certo, porém, que o ministério de 12 de dezembro, com a presença do Sr. Nabuco de Araújo, não se podia abrir em hostilidade com os homens da situação de 4 de maio. Foi assim que, persuadido, rogado, instado, consentiu o Sr. Saraiva em ser nomeado presidente da província de Pernambuco (dezembro de 1858). Posteriormente, porém, a retirada do Sr. conselheiro Nabuco, fiança, e representante no seio do gabinete, ao que se dizia, "da opinião de seus amigos", forçou o Sr. Saraiva a solicitar a exoneração do cargo de presidente, e a encaminhar-se para os bancos da oposição.

Nesse dia, abriu-se para a vida política do Sr. conselheiro Saraiva uma fase inteiramente nova. Seu voto já não podia ser, como em 1855, puramente simbólico. Devia levantar-se, animar-se, agitar-se, excitar os amigos ao combate, correr à tribuna, cercá-la, movê-la, dominá-la. A cena mudava-se. O protagonista também tinha outra missão. Já se não tratava de gerir os públicos negócios: tratava-se de rasgar o véu que esconde o nosso horizonte político: tratava-se de demarcar a compasso a derrota que se deve seguir, de descrever com saliências o terreno em que se vai combater, de indi -car com precisão a estrela que nos deve guiar.

Orador de oposição, na última sessão da câmara temporária, o Sr. Saraiva não faltou a esse programa obrigado de toda a oposição. Sua palavra foi clara, fluente, animada; seu tom, de convicção, sincero, persuasivo, entusiástico; suas idéias, moderadas como se foram as idéias de um ministro, generosas como as intenções de um moço. Este orador da oposição não tem a linguagem abrasada do fervoroso Antônio Carlos; não revela a oposição de sistema; propõe-se apenas, segundo o acreditamos, a expor, sem cortejo de exagerações e doestos que irritam, mas não convencem, as bases de uma opinião política que se vai formando e ganhando corpo no espírito público, a despeito das potências de fato, das influências antigas, da corrupção de muitos e do desânimo geral.

Essa opinião política é a que não julga estreito o âmbito das leis constitucionais, mas que o pensa completo e suficientemente amplo; que tem por timbre a adoração à lei e o respeito ao governo, que proclama a descentralização real, porque é uma ficção a descentralização legal, e um absurdo a centralização que reina de fato; que ama o trono por amor do povo, e quer para o povo o profundo e exclusivo amor do trono; que rejeita o fausto, condena a suntuosidade, repudia o luxo; que pede melhoramentos reais, administração verdadeira e resultados positivos; essa opinião, enfim, é a que combate os privilégios, renega as si-necuras, desconhece as acumulações e condena a oligarquia cismática!

Oxalá que, amparada pelos espíritos fortes como o do Sr. conselheiro Saraiva, possam em breve os adeptos dessa política generosa nomeá-la a seus adversários, que são os inimigos da prosperidade do país, com esta só palavra de nobre orgulho e profunda crença: "Aveugle, qui ne la voit pas!"

Rio de Janeiro, 26 de setembro de 1859.

  1. A demonstração é rigorosa: baseia-se em dados colhidos dos relatórios da marinha e fazenda no ano corrente. A soma votada para as despesas do ministério da marinha no exercício de 1857-1858 (compreendido na administração do Sr. Saraiva) perfazia o total de Rs. . 4,633:285$268 Não sendo ela suficiente para ocorrer a todas as despesas, abriu o decreto nº 2.157, do 1º de maio de 1858 (referendado pelo Sr. Saraiva), num crédito de Rs. . 2,558:672$419 O de nº 2.329, de 31 de dezembro do mesmo ano (referendado pelo Sr. visconde de Abaeté), abriu para ocorrer as despesas provenientes da administração do seu antecessor outro crédito de Rs. . 668:268$605 Deduzindo a sobra, que houve lugar, de Rs. 206:425$423, esses dois créditos produzem a importância de Rs. . 3,020:515$621 Finalmente, o decreto nº 2.340, de 17 de janeiro de 1859, para ocorrer as despesas da mesma natureza, abriu ao mesmo sr. visconde outro crédito que, deduzida a respectiva sobra, importa em Rs. .....2,760:503$466 Assim, vê-se que a soma total dos créditos extraordinários é de Rs... 5,781:019$087 E, reunida esta soma à marcada pela respectiva lei do orçamento acima indicada, temos que a despesa total, por conta do exercício de 1857-58, e proveniente da administração do Sr. conselheiro Saraiva, por ele paga ou por seu sucessor, foi de RS. . 10,414:304$355 Ora, se confrontarmos esta soma com a que foi pedida para o exercício de 1860-61, na importância de Rs. 6,660:544$756, vê-se que a diferença para mais entre a despesa por conta da administração do Sr. Saraiva — durante a qual tantas construções novas se fizeram, e aumentou-se o material e o pessoal — e a despesa por conta da administração presente — que nenhuma dessas coisas tem necessidade de realizar — é apenas de Rs 3,753:759$599