Galeria dos Brasileiros Ilustres/José Martiniano de Alencar

I

Em 1822 uma mocidade ardente e entusiasta pela liberdade e independência de sua pátria representava o reino do Brasil no soberano congresso que se reunira em Lisboa.

Trinta e seis anos são passados; e daquela plêiade brilhante, daquela falange ilustre dos primeiros representantes do país, apenas se encontra hoje no Senado, entre as novas glórias que o voto popular e a confiança da Coroa chamou a ocupar essas cadeiras, uma trindade respeitável por muitos títulos.

O marquês de Olinda, Vergueiro e Alencar, são os três nomes que lembram ainda aos brasileiros as calorosas discussões do congresso português, em que os filhos da jovem pátria que ia surgir proclamavam em face da metrópole o direito que tinha o Brasil de declarar-se independente, lançando assim através do oceano o grito dessa revolução que devia consumar-se em 7 de setembro de 1822.

O marquês de Olinda, quando a sua carreira parecia terminada, assumiu de novo o poder; Vergueiro depois de ter ilustrado a tribuna e dirigido a opinião pública, trabalha ainda pelo país dedicando se à colonização e à agricultura; Alencar, uma das popularidades de 1830, um dos homens mais notáveis da oposição de 1839, um dos autores da revolução parlamentar que produziu a maioridade em 1840, só aspira a servir a seu país com o seu voto de legislador, e a conservar puras e inalteráveis as crenças políticas que o dirigiram durante a sua vida.

Poucas existências há no Brasil tão cheias de vicissitudes como a sua; poucos homens passaram por tão duras provanças, e acompanharam a revolução da independência de seu país desde o primeiro balbuciar deste povo, ainda menino e já respirando a liberdade, até o momento em que o arrefecimento da luta e a calma dos espíritos extinguiu os antigos partidos.

O que há de notável porém na sua vida, é que, tendo muitas vezes exercido, pelo seu prestígio, pela sua habilidade na direção da política, uma influência decidida sobre os negócios do país, não ocupou nunca as primeiras posições oficiais; além do cargo de senador a que fora chamado na primeira vaga por uma eleição espontânea e quase unânime, apenas foi duas vezes presidente de sua província.

Mas o seu caráter explica este fato: a sua modéstia reprimia as aspirações; e o seu interesse pelo país passava adiante dos cálculos da ambição pessoal; depois de ter servido nobremente o seu partido, depois mesmo de se haver sacrificado por ele, ofuscava-se e desprezava as glórias de chefe, para gozar da íntima satisfação que sente o simples e obscuro cidadão, quando tem a consciência de haver cumprido o seu dever.

Assim em todas as épocas em que suas idéias triunfaram, ou em que o seu partido dirigiu o país, ele conservou-se na sua modesta posição; em 1831, sendo presidente da Câmara dos Deputados, continuou o seu posto depois da revolução; em 1834 quando Feijó, seu amigo íntimo e dedicado, governava o Brasil, contentou-se com a presidência do Ceará, onde o levara o seu amor pela província natal; em 1840, quando a revolução da maioridade saiu de sua casa[1] para rebentar no Senado e ecoar na Câmara dos Deputados, apenas aceitou aquela mesma presidência com o fim de ir reparar os males que as administrações passadas aí haviam feito.

O reverso desse quadro é ainda mais significativo.

Se durante a sua carreira política Alencar, pela sua modéstia e pela sua reserva, não quis ou não soube procurar para si as primeiras posições oficiais no momento em que os seus amigos dominavam; sempre que o seu partido foi vencido, sempre que uma reação se operou contra os liberais, o seu nome figurou como mártir entre os mais distintos e os mais célebres; algumas vezes mesmo na primeira plana.

Em 1817, sofreu quatro anos de prisão rigorosa na Bahia onde teve por companheiro Antônio Carlos, que depois foi um dos seus mais dedicados amigos, e verdadeiro apreciador do seu caráter; em 1824 esteve de novo preso um ano; em 1842 acusado de ser o chefe de uma imaginária associação dos Invisíveis foi processado com Feijó, Vergueiro e José Bento; em 1848 atribuiu-se-lhe o movimento político de Pernambuco e o acusaram na Câmara dos Deputados.

Tanta celebridade e tanto prestígio no revés; tanta obscuridade e tanto afastamento no triunfo; — é um contraste que faz honra ao caráter do homem político, e que lhe deu essa reputação de integridade que seus próprios inimigos nunca lhe negaram.

Mas naqueles tempos de verdadeiro entusiasmo e fé robusta o povo sabia desempenhar a sua missão: e a urna popular era como o altar da pátria onde se sagravam puros votos de reconhecimento e gratidão aos bons filhos e aos bons cidadãos.

Ao passo que Alencar era esquecido, ou fazia-se esquecido das distinções oficiais, não lhe faltavam as honras populares.

Em 1821 as portas do cárceres se abriram para deixá-lo sair, ao mesmo tempo que as do soberano Congresso se abriram para recebê-lo. De volta da Europa encontrou no Rio de Janeiro o diploma de deputado à Constituinte. Minas Gerais e o Ceará o elegeram simultaneamente à segunda legislatura.

Em trinta e seis anos, apenas quatro esteve fora do parlamento; e isto porque achando-se ainda, em 1825, comprometido na revolução do ano anterior não pôde ser eleito à primeira legislatura.


II

J.M. de Alencar começou a sua carreira política muito cedo.

Em 1817, achava-se estudando em Olinda, quando sobreveio essa revolução mal planejada, aspiração precoce de um povo pela liberdade que ainda não se tinha impregnado nas primeiras camadas da sociedade; e que era apenas compreendida por alguns homens instruídos, a quem os ecos da revolução francesa, e da independência dos Estados Unidos, chegavam apesar de amortecidos pelo tempo e pela distância.

Moço, entusiasta, amando a sua pátria com o mesmo ardor que depois sempre mostrou, arrastado pelo exemplo de seus mestres. Alencar deixou-se levar pelo movimento; e partiu para o Ceará, munido das cartas e instruções necessárias para fazer aparecer a revolução naquela província. Desempenhou a sua comissão; porém pouco tardou que a imperícia dos chefes fizesse abortar todo o plano.

Efetuou-se a restauração; e ele foi preso e conduzido a Pernambuco: depois passou à Bahia, onde esteve quatro anos encarcerado com o rigor que o governo absoluto usava para os crimes políticos; aí assistia ele a essas expansões da imensa erudição de Antônio Carlos, que consolava a uns da desgraça, e a outros instruía, como um livro vivo e eloqüente.

Solto em 1821, voltou ao Ceará, e eleito deputado às Cortes de Lisboa, tomou assento em 10 de maio de 1822. Foi companheiro de Antônio Carlos, Vergueiro, Barata, Muniz Tavares, Lino Coutinho e outros; apesar de muito moço e inteiramente alheio aos estilos parlamentares, apesar do aspecto imponente dessa respeitável assembléia onde tinham assento Borges Carneiro, Fernandes Tomás, Guerreiro, Ferreira Borges, Girão e mais homens notáveis de Portugal; o jovem deputado achou nas suas convicções a coragem necessária para acompanhar os seus colegas nessa luta parlamentar que preludiou a separação do Brasil.

Chegando a Portugal a notícia da independência, Alencar abandonou as Cortes com alguns outros deputados; e sem passaporte, não obstante a proibição do Congresso, passou à Inglaterra, e correu ao reclamo de sua pátria; achou porém a revolução consumada, e recebeu o diploma de deputado à Constituinte.

Nessa assembléia, seguindo sempre os princípios de liberdade, sustentou os de ordem nas sessões agitadas que então apareceram; pelo que mereceu a simpatia geral, e a estima de D. Pedro I, que sempre o distinguiu. Dissolvida a Constituinte, voltou à sua província, da qual estava ausente havia dois anos; aí achou os seus amigos e sua família comprometidos na revolução de 1824; preferiu comprometer-se com eles a abandoná-los.

Preso e conduzido por Minas Gerais até o Rio de Janeiro, foi ser julgado na capital do Ceará pela comissão militar presidida pelo coronel Conrado, a qual proferiu sentença reconhecendo-o inocente e absolvendo-o. Passou esse pouco tempo estranho à vida política, até que em 1828 as províncias de Minas Gerais e do Ceará o elegeram deputado à segunda legislatura.

Este fato bastante notável, era a reabilitação do seu passado político se ele precisasse de outra além do reconhecimento da sua inocência pela comissão militar; o voto de uma província ilustrada como a de Minas Gerais, que o tinha visto na desgraça, era a maior prova de consideração que podia merecer um cidadão.

Alencar optou pela sua província, como é de lei; e na vaga que ele deixou tomou assento Evaristo Ferreira da Veiga, eleito primeiro suplente. Foi nesta sessão de 1830 que ele mais se distinguiu pela sua moderação, defendendo como membro da comissão de poderes contra os liberais exaltados, o direito que tinha José Clemente Pereira, Salvador José Maciel e Oliveira Álvares de tomarem assento como deputados, devendo notar-se que nesta defesa, movida apenas por sentimento de justiça, ele corria risco de perder a sua popularidade à vista da excitação dos ânimos contra aquelas eleições.

Em 2 de maio de 1832 entrou no Senado, sendo o primeiro senador eleito pela regência; e foi aceito por aquela corporação, então quase toda composta dos membros da primitiva fundação, como uma garantia contra as idéias da abolição da vitaliciedade, que começavam já a adquirir muita voga; recebendo no seu seio um dos membros mais proeminentes do Partido Liberal, o Senado julgava adquirir um defensor valioso.

Mas ele não contava com o caráter de Alencar; e não sabia que, deputado ou senador, ele votaria com a mesma facilidade pela idéia, desde que a considerasse útil para o país; e assim o demonstrou pouco depois, e em todos os atos de sua carreira parlamentar.

Nomeado presidente do Ceará em 1834, dedicou-se, durante os três anos que exerceu esse lugar, a promover os melhoramentos morais e materiais que reclamava o estado de atraso de sua província.

Purgou-a dos assassinos que a infestavam; fez punir todos os criminosos grandes e potentados; introduziu colonos naquela época em que nem se falava de colonização; mandou vir operários da Europa; criou um banco pequeno, mas em relação aos recursos do lugar; reprimiu o tráfico, apreendendo o único contrabando que apareceu no tempo de sua administração, de modo que um só africano não escapou; e desenvolveu as obras públicas, construindo estradas e pontes.

Não tendo a província rendas para suas despesas, tanto que recebia uma quota de Pernambuco para suprir o déficit, elevou a receita a ponto que não só cobriu aquelas despesas acrescidas com a criação da assembléia provincial, e os gastos feitos com a prisão de criminosos e com as obras públicas, mas deu para se enviar uma remessa à Inglaterra a fim de amortizar a dívida pública, fato de que não havia exemplo na província; e deixou ainda um grande saldo.

O maior elogio que se pode fazer da sua administração é que o ministro do Império em 1837, Vasconcelos um dos nossos mais distintos estadistas, acérrimo adversário político de Alencar, quando este pela desistência de Feijó e mudança de política foi demitido, recomendou ao seu sucessor, o conselheiro Manuel Felizardo de Sousa e Melo, que não desfizesse os atos da presidência anterior, nem hostilizasse o partido que a havia apoiado; instrução que o novo presidente executou tanto quanto era possível naquele tempo de luta e opiniões extremas.

Voltando da presidência do Ceará, Alencar veio tomar em 1839 o seu posto de oposição no Senado, e aí foi um dos sete senadores que impediram durante um ano a passagem da interpretação do ato adicional, apesar de todo o esforço do governo e da maioria.

No ano seguinte planejava ele com Antônio Carlos, José Bento, Paula e Sousa, Limpo de Abreu, Martim Francisco, Holanda Cavalcanti e outros a revolução da maioridade, que se realizou em 23 de julho, e que inaugurou o presente Império; ainda desta vez aceitou a presidência do Ceará para comprazer com os seus amigos, e evitar uma dificuldade ao Ministério.

Foi o segundo e último período de sua vida administrativa; período durante o qual mostrou ainda uma vez a sua energia e coragem cívica em reprimir os movimentos sediciosos que alguns dos adversários da maioridade fizeram aparecer na província, e dos quais não se devem revolver as cinzas.

Voltando à oposição em 1842, em que teve de sofrer o processo de que falamos, nela se conservou até 1845, em que exerceu uma influência notável como um dos chefes da maioria que apoiava o Ministério Macaé.

Desde então, ou porque julgou com razão que depois de tão longa luta tinha direito ao repouso, ou porque entendeu que os seus serviços não eram mais precisos, retirou-se da cena política; porém até hoje ainda nem um seu aliado dirigiu-se a ele que não encontrasse o mesmo liberal de 1830.

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