Galeria dos Brasileiros Ilustres/Marquês de Baependi
Povo esquecedor somos nós, e se daí nos provém a vantagem das fáceis reabilitações, de modo que o passado, ainda o de ontem, não é obstáculo para ninguém, também daí nos provém a desgraçadíssima perda das lições da nossa história, que tão úteis poder-nos-iam ser; e, o que ainda é pior, perdemos a recordação dos grandes serviços, dos grandes merecimentos..., e isso nos dá certa feição de ingratos, que cumpre repelir.
Seja isso devido à rapidez com que entre nós se alteram as gerações, como deve acontecer em um povo que constantemente recebe da imigração novos elementos, ou seja devido à rapidez com que os fatos nos impelem para diante, impedindo-nos de olhar para trás, a fim de prestar ao passado o culto e o reconhecimento que lhe são devidos, o certo é que o ontem da sociedade brasileira está tão longe do hoje dela, que já, dos que ainda se lembram dos grandes cidadãos que presidiram ao nosso nascimento político, aos primeiros esforços de nossa organização, desses mesmos que ainda disso se lembram, poucos os apreciam devidamente, poucos se colocam nas circunstâncias em que se eles acharam, poucos refletem nas dificuldades com que lutaram; poucos dizem: "Se temos pátria, se no dia da nossa independência não caímos nesses abismos de miséria em que tantos povos foram arrojados, a esses nossos compatriotas o devemos: honra e glória a eles."
E quando a morte leva para melhor mundo algum desses veteranos da pátria, a pena de algum jornalista, dando tréguas às questões do dia, escreve uma pálida necrologia, às vezes dela se encarrega algum amigo..., e quando essa necrologia tem ocupado um cantinho de algum periódico pensa-se que está pago o tributo devido ao ilustre morto! Pensa-se que essa voz que lhe manda uma fria saudade saldou todas as contas, e que nada mais lhe deve a posteridade!
Ao distinto marquês de Baependi outro tanto por certo não aconteceria se a pena que da sua biografia se encarrega fosse mais digna dela, e o estilo da obra igualasse o sentimento de profunda veneração que lhe consagra quem, colocando-se no meio da inexperiência de então, devidamente aprecia a sua superioridade.
Na cidade de São João del-Rei, em 8 de setembro de 1765, nasceu Manuel Jacinto Nogueira da Gama (marquês de Baependi). Oriundo de antiga e distinta família de servidores do Estado, teve de seu avô e de seu pai exemplos de dedicação à pátria que nunca esqueceu nem marcou.
Seu pai, Nicolau Antônio Nogueira, que se esposara na cidade de São João d’el-Rei com D. Ana Joaquina de Almeida e Gama, de distinta família, sendo alferes de ordenanças da mesma cidade, mal tem notícia de se acharem ameaçadas as fronteiras, reúne o corpo em que a força moral e o amor dos cidadãos lhe dão o comando, e marcha nos anos de 1776 e 1777 para S. Paulo, na distância de 160 léguas, recusando, com o nobre paterno exemplo, indenizações e galardões.
Com tais exemplos alimentado, logo nos seus primeiros anos, o jovem Manuel Jacinto mostrou que em inteligência, em força de ânimo, em todas as virtudes do homem e do cidadãos, continuaria e aumentaria o tesouro da família.
A esse tempo, bem que, como colônia, atrasadíssimo se achasse o Brasil em tudo quanto era cultivo intelectual, a província de Minas Gerais estava em grau de desenvolvimento de que fácil explicação nos dão a riqueza do seu ouro e dos seus diamantes, e o cuidado especial que da metrópole por isso recebia: as letras pois aí eram, não só cultivadas, senão honradas, e a existência de tantos poetas, e entre eles o imortal José Basílio da Gama (primo de Manuel Jacinto), dão documento desse asserto. O menino freqüentou com assiduidade e proveito esses estudos, e tanto que aos 19 anos incompletos, tendo ido para Portugal a fim de continuar em Coimbra a carreira das letras, e achando-se desprovido de recursos pecuniários pelas dificuldades das comunicações e das remessas de fundos, conseguiu em Lisboa sustentar-se com o produto do seu trabalho inteligente e paciente por espaço de dois anos.
Como Rousseau, teve de copiar música para viver. Por fim chegaram-lhes os paternos auxílios, e o jovem laborioso, que lutara com a miséria e a vencera, pôde ir à Atenas Portuguesa fortificar a sua inteligência.
Matriculado nas faculdades de Filosofia e de Matemática da Universidade de Coimbra, começou os seus estudos com tanto brilho, que, tendo-o o infortúnio de novo perseguido, achando-se destituído de auxílios paternos por haver a fortuna de seu pai sido comprometida na fiança de um arrematante de dízimos que se deixara alcançar, achou o jovem Manuel Jacinto fruto imediato da sua aplicação. Lições particulares que dava a seus colegas, mais felizes, porém, menos estudiosos, o habilitaram não só para viver sobre si e continuar seus estudos, senão até para mandar ao Brasil à sua família alguns tênues auxílios que ao menos lhe serviam para provar-lhe que seu filho não sofria as privações da miséria, e assim lhe minoravam as mágoas da saudade. Insaciável de trabalho, não lhe bastavam as doutrinas do curso de filosofia e do de matemática; aprovado, premiado em todos os anos ainda quis mais, e matriculou-se na Faculdade de Medicina, de que freqüentou o primeiro e o segundo ano com geral aplauso.
Foi então a sua carreira escolar interrompida: inesperadamente, e sem que o requeresse, recebeu, por decreto de 16 de novembro de 1791, a sua nomeação de lente substituto de matemática da Academia Real da Marinha em Lisboa, e aí teve de exercer o professorado até 1801.
Nesse período, honras e distinções o vieram procurar, e a par delas a amizade e estima de pessoas da maior consideração. Em 16 de dezembro de 1793 foi promovido a 1º tenente da Marinha, em 20 de outubro de 1796 a capitão-tenente, e em 23 de julho de 1798 a capitão-de-fragata; cavaleiro de São Bento de Aviz, professou em 20 de novembro de 1795.
Entre as pessoas cuja amizade então o acolheu, cumpre mencionar o ilustrado ministro D. Rodrigo de Sousa Coutinho (depois conde de Linhares), que em tão alta consideração tinha a inteireza e as luzes do lente de matemática, que até ao último instante o apregoou como seu melhor amigo. Dessa amizade utilizou-se Manuel Jacinto, menos em benefício próprio do que para dar expansão ao seu espírito generoso e benfazejo, especialmente para com aqueles seus patrícios que, longe da pátria, mais necessitavam de proteção. Na escola da desgraça tinha Manuel Jacinto aprendido a condoer-se dos desgraçados. Dentre os que aproveitaram os benefícios do seu distinto compatriota, só apontaremos o conselheiro José de Resende Costa, que, envolto com seu pai no famoso processo de inconfidência e desterrado para Cabo Verde, foi agraciado e empregado no erário de Lisboa, donde ao depois passou para o do Rio de Janeiro.
Ainda no meio dessas prosperidades, a desgraça o não deixou tranqüilo: seu irmão mais velho, Antônio Joaquim Nogueira da Gama, que com ele fora do Brasil doutorar-se em Coimbra, mal acabava de tomar o capelo na Faculdade de Medicina, quando faleceu, deixando em suma pobreza sua viúva e seis filhos menores. Não obstante seus poucos recursos pecuniários, teve Manuel Jacinto de acudir às necessidades de sua cunhada e de seus sobrinhos, a quem enviou para Minas ao seio de sua família, continuando a dar à viúva uma mesada, em Coimbra, enquanto existiu.
Despachado no 1º de junho de 1801 inspetor-geral das nitrei-ras e fábricas de pólvora de Minas Gerais, e ao mesmo tempo deputado da Junta de Mineração e Moedagem e secretário do governo, teve de deixar a sua cadeira de lente de matemática. Foi logo depois, no 1º de outubro, nomeado deputado da junta da Real Fazenda na mesma província, então capitania, declarando-se vitalício em sua pessoa o lugar de secretário do governo.
No entretanto, querendo o governo da metrópole ainda aproveitar-se em Portugal dos talentos do nosso distinto compatriota, nomeou-o, em 12 de novembro do mesmo ano, ajudante do intendente-geral das minas e metais do reino, no curso docimástico da Casa da Moeda; e aí estabeleceu ele o laboratório clínico, e igualmente encarre-gou-se da construção das nitreiras artificiais em o Braço de Prata, e delas foi nomeado Inspetor.
Promovido em 9 de fevereiro de 1802 a tenente-coronel do corpo de engenheiros, pediu e obteve, em 2 de julho de 1803, a sua demissão de secretário do governo de Minas Gerais, lugar que não chegou a exercer, e em 24 de setembro do mesmo ano foi nomeado deputado e escrivão da junta da Fazenda da dita província. Em março seguinte pôde voltar para sua pátria, a cujo progresso de então por diante teve de consagrar um espírito cultivado por diuturnas lucubrações, fortificado pelo sofrimento, e cheio da mais acrisolada dedicação.
Prosseguindo na sua carreira administrativa, sempre estimado e coadjuvado na razão do seu zelo pelo serviço público, apesar da relutância que à sua posse opôs, sob o mais frívolo pretexto, o capitão-geral Pedro Maria Xavier de Ataíde, e que o obrigou a voltar a Lisboa, donde regressou em julho de 1806, foi sustentado no emprego pelo príncipe regente e pelo seu ministro, o sempre memorado Luís de Vasconcelos e Sousa.
Nesse emprego, que começou a exercer em 27 de setembro do mesmo ano, mostrou quanto pode um espírito esclarecido junto a um caráter íntegro e a um coração generoso. Pelo estado em que ainda hoje entre nós se acham a fiscalização, a arrecadação das dívidas do estado e a cobrança dos impostos, pode-se fazer idéia do que seriam elas em 1806, em uma província central da colônia. A esse estado procurou-a arrancar Manuel Jacinto, e sem queixumes nem relutâncias o conseguiu grande parte.
Tanto aí se distinguiu, que em 1808, criado no Rio de Janeiro o real erário, foi chamado para nele desempenhar as funções de escrivão. Então começou essa série de imensos e inapreciáveis serviços, que só poderão ser compreendidos por quem atender às circunstâncias do tempo, à falta de homens, e aos interesses filhos do abuso e da prevaricação, que de tropel iam achar-se ofendidos pelo gênio fiscalizador e sistemático do nosso distinto patrício.
Estreou ele não só com os seus conselhos quanto à administração, senão apresentando um douto e bem deduzido parecer acerca dos melhoramentos exigidos para a cobrança das rendas e fiscalização da despesa. Levado ao conhecimento do príncipe regente em 1812 esse plano, foi por ele muito aprovado. Mas se recebeu Manuel Jacinto essa honra, teve em compensação os ódios e rivalidades de quantos sugavam a substância do estado, que queria ele salvar para ser aplicada ao serviço público. Sobranceiro porém a esses ódios, a essas inimizades, nem por amor delas sentiu Manuel Jacinto arrefacer o seu zelo, nem por vingança perseguiu os que o hostilizavam; antes, generoso, salvos os públicos interesses por eles ofendidos, procurou adoçar-lhes o rigor das suas destituições.
Enquanto na carreira administrativa assim prosseguia, era chamado a prestar outros serviços, e indefesso sempre acudia ao reclamo. Instalada em 1811 a Real Academia Militar (que depois de tantas transformações e mudanças de nome ainda subsiste sem grande alteração no essencial), foi ele nomeado deputado da junta que a devia dirigir, e inspetor das suas aulas, lugar que serviu sem estipêndio até o ano de 1821.
A par dos serviços, não lhe foram escassos os galardões honoríficos. Promovido a coronel do corpo de engenheiros a 4 de julho de 1808, foi em 6 de fevereiro de 1818 nomeado brigadeiro graduado: em 8 de junho de 1819 obteve a efetividade desse posto, reformando-se em 11 de dezembro de 1822 no de marechal-de-campo. Comendador de Aviz em 31 de maio de 1809, obteve em 10 de março de 1814 o título do conselho, e em 18 de janeiro de 1815 o foro de fidalgo cavaleiro.
Nessa posição se achava Manuel Jacinto Nogueira da Gama, quando o movimento político que agitou em 1820 a Europa, e que ao mesmo tempo envolveu a Itália, a França, a Espanha e Portugal, propagou-se ao Brasil, único de todos esses países que teve de dever-lhe benefícios reais e progresso, pois deveu-lhe a constituição e a independência.
A agitação das idéias, a efervescência dos espíritos então dominantes não podiam deixar de tirar um cidadão da importência e do merecimento de Manuel Jacinto da esfera administrativa em que até então se havia circunscrito o seu zelo ativo e patriótico, e de aproveitá-lo para coisas ainda maior e mais úteis. A vida política se lhe abriu.
Em 23 de fevereiro de 1821, foi nomeado secretário e deputado da junta o que com os procuradores das câmaras do Brasil devia tratar das leis das cortes de Portugal e dos melhoramentos úteis ao Brasil. Em 4 de abril passou a ter exercício no conselho da Fazenda, para o que pediu e obteve a sua exoneração das funções que exercia no real erário, em que ao depois só interveio em 21 de fevereiro de 1822 como membro da comissão encarregada de seu exame, e posteriormente e por diversas vezes como ministro da Fazenda e presidente do Tesouro público. Em 21 de abril de 1821, eleitor da freguesia de S. José, assistiu a essa trágica reunião dos eleitores na praça do comércio.
Não é da nossa tenção escrever aqui a história política de nossa pátria; abstemo-nos portanto de apreciar os acontecimentos, de explicá-los nas suas causas; somente os indicamos em tudo quando neles se achou envolto o nosso distinto compatriota, contentando-nos com dizer que sua voz ilustrada e eloqüente, intérprete de uma opinião conscienciosa e despida de ambições, nunca serviu uma só idéia de desorganização, nunca favoreceu a demagogia; nunca porém também sacrificou a causa do progresso humanitário para a liberdade.
Deputado pela província do Rio de Janeiro à Assembléia Constituinte, que, como se sabe, foi o centro de reunião de todos os homens conspícuos de que então se gloriava a nossa pátria, e a quem, ainda virgem de cabalas e trapaças eleitorais, o povo congregava para que lhe dessem, o que a sua inexperiência desejava, uma sábia constituição política. Manuel Jacinto, precedido pelo seu nome, pelos seus serviços, não podia deixar de para logo ocupar eminente posição, especialmente como financeiro. Tanto se distinguiu, que daí a três meses, em 17 de julho de 1823, foi chamado ao Ministério da Fazenda e à presidência do Tesouro público.
Em época tão calamitosa, o poder poucas condições de estabilidade oferecia, o país poucos elementos de grandeza apresentava: achar meios de acudir ao serviço público, de satisfazer todas as exigências que apareciam, era o mais que ao ministro da Fazenda era dado; nem então lhe era possível conceber e menos realizar grandes planos. Manuel Jacinto o compreendeu, e, ministro, continuou a obra de organização a que, anos atrás, havia posto peito.
Infelizmente a agitação demagógica impelia o país para a sua ruína; a Assembléia Constituinte não sabia segregar-se dela; em luta direta com o poder, atacando-o no seu princípio, colocava-o na necessidade de sal-var-se por um golpe de estado. O ministro da Fazenda e quatro dos seus colegas não quiseram aceitar a responsabilidade moral desse ato, e renunciaram as pastas dois dias antes da dissolução da Constituinte.
Dissolvendo porém essa assembléia, que, como todas as constituintes, era, apesar da ilustração dos seus membros, incapaz de cumprir a sua missão e de subtrair-se ao domínio das facções, o chefe do estado havia prometido aos povos uma constituição: cumpria mostrar-lhes que a dissolução não havia sido uma agressão à liberdade nem uma falta à fé jurada, mas simplesmente um recurso extremo contra abusos legalmente irreprimíveis e inevitavelmente funestos: foi pois em 13 de novembro nomeado conselheiro de estado e ex-ministro Manuel Jacinto, e coube-lhe a glória de ser um dos autores e signatários desse pacto fundamental a que deve a nação brasileira a diuturnidade da sua duração e a garantia das suas liberdades. Por esse serviço condecorou-o a Coroa com a dignatária da Ordem Imperial do Cruzeiro.
Por carta imperial de 15 de outubro de 1825 foi-lhe conferido o título de visconde Baependi com as honras de grandeza, e foi pouco depois, em 21 de janeiro de 1826, chamado de novo ao Ministério para a repartição da sua especialidade, a da Fazenda. Em 12 de outubro do mesmo ano obteve o título de marquês.
Infelizmente só conservou o poder um ano: no meio das intrigas e manejos da época, persuadindo-se que não gozava de suficiente confiança da Coroa, por não haver ela querido aceder do desejo, por ele mostrado, de reformar a alfândega, contra a qual tanta e tão fundadas acusações eram geralmente dirigidas, pediu em 19 de outubro a sua demissão; não lhe foi porém ela concedida, e teve o dedicado e leal servidor de continuar ainda três meses contra a vontade nessa posição, em que, vítima de tantos enredos, não lhe era dado servir, como entendia conveniente, o monarca e a pátria. Enfim, em 15 de janeiro de 1827, conseguiu retirar-se do Ministério com os seus colegas, marqueses de Caravelas, de Paranaguá e de Inhambupe.
Retirando-se porém do poder, não arrefeceu o seu zelo pelo serviço do país e devoção ao Imperador: no conselho de estado, os seus votos, os seus pareceres escritos e luminosamente deduzidos, de acordo com os ditames da sã política, se nem sempre infelizmente foram seguidos, aí estão todavia para mostrarem que, se o erro dominou, não foi por não haver quem apontasse a verdade. Entre esses pareceres faremos sobressair aquele em que aconselhou a reprovação desses empréstimos de Londres que com tão funesto encargo oneraram as finanças do país, e tantos pretextos deram aos clamores contra o governo de então. Não menos importante é o que deu sobre as questões suscitadas pela morte d’El-Rei o Sr. D. João VI e pelo chamamento do Imperador do Brasil como D. Pedro IV ao trono português. E por fim, em anos posteriores, quando o espírito revolucionário, já senhor das massas populares, impelia a câmara temporária, onde dominava, contra o Senado e o princípio conservador, quando a crise precursora do Sete de Abril se apresentou, o seu voto aconselhando ao poder que se circunscrevesse na restrita esfera de sua ação legal, mas nela cumprisse enérgico a sua missão constitucional e firmasse a independência e ponderação dos dois ramos do poder legislativo, o seu voto, dizemos, se houvesse sido adotado, talvez nos tivesse poupado os desastres de uma revolução.
Apresentado em 1826 em lista tríplice para senador pelas províncias de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, foi escolhido por aquela, e tomou assento logo na instalação do Senado, nesses bancos a que tanto realce soube dar.
Entretanto iam correndo os tempos, e os esforços revolucionários, mal contrariados pela ação inexperiente e frouxa do governo, tinham chegado ao seu ponto: a revolução estava madura; só lhe faltava um oportuno ensejo, e os seus planejadores o procuravam com todo o afã. Verificaram-se as fatais ocorrências de março de 1831; o monarca que em frente delas julgou possível acomodar a oposição organizando um ministério de sua confiança, sentiu que nem assim a satisfaria, e organizou outro gabinete em vista de reprimir as tendências revolucionárias que ameaçavam a sociedade. Desse gabinete, organizado na noite de 5 de abril, fez parte, como ministro da Fazenda, o marquês de Baependi.
Mas a revolução estava em campo: seus autores, receando perder os elementos que haviam congregado, acolheram a notícia da organização do novo Ministério com o rompimento de há muito preparado.
A parte que nos últimos acontecimentos do reinado do magnânimo fundador do Império coube ao nobre marquês de Baependi, o que houve contra o seu conselho, ou conforme com ele, nessas ocorrências que precipitadas se aglomeraram no dia e na noite de 6 de abril de 1831, poder-nos-ia mais de espaço ocupar; fácil nos seria recompor essas cenas íntimas em que a timidez lutava com a dedicação, e os mais nobres pensamentos eram contrastados por frio desânimo; deixemos porém à História o que à História pertence, e, biógrafos, digamos somente que em todos os momentos, que equivaliam a séculos, desse dia fatídico, o nobre marquês não desmentiu um só instante a sua re-fletida lealdade, a sua inteligente dedicação à pátria e ao Imperador.
No dia da abdicação, na presença dessa grande prova de ingratidão dos povos, o nobre marquês como que deu por finda a sua missão política. Vítima dos furores revolucionários, como ex-ministro, apontado às calúnias mais torpemente inventadas, insultado o seu domicílio, o prestante brasileiro apenas reuniu os seus esforços a alguns amigos da ordem que procuravam neutralizar, com a propagação das sãs doutrinas, o espírito da irrefletida destruição de que se achavam possuídos os revolucionários.
Para justificar a revolução, os dominadores da época trataram de formular acusações contra os ex-ministros do Imperador: o marquês de Baependi foi um dos escolhidos, e para honra sua aí está essa acusação em que o espírito sagaz do ódio político, pesquisando uma longa vida ministerial, em uma pasta de tão complicados quão graves negócios, apenas achou para base do crime de prevaricação um fato meramente administrativo e da maior insignificância. Firme na sua consciência, o nobre marquês respondeu vitoriosamente a tão injusto pro-jeto de acusação. E de fato tão injusto era ele, que a própria comissão encarregada de examinar a acusação a desprezou pelo seu nenhum fundamento, o que foi aprovado pela Câmara dos Deputados em setembro de 1831.
Não podendo lutar contra a torrente, o nobre marquês reti-rou-se da vida política: se comparecia no Senado, se com o seu voto ainda disputava alguns dos grandes princípios de ordem à conquista revolucionária, se defendeu a Constituição do Império contra os ataques dos seus reformadores, nunca mais ocupou a tribuna; sua voz eloqüente emudeceu.
A causa porém da monarquia constitucional brasileira tinha de ser salva. O ano de 1836 viu ressurgir poderoso, ilustrado e unido o partido que reagiu contra os erros revolucionários; logo no ano seguinte foi o nobre marquês eleito vice-presidente do Senado, e como tal teve de reger em toda essa sessão os trabalhos de tão importante câmara; no ano de 1838 foi eleito seu presidente.
De posse da plenitude do Poder Executivo e Moderador, o Senhor D. Pedro II, por ocasião da sua coroação em 18 de julho de 1841, galardoou o velho e constante servidor da monarquia brasileira, o ministro fiel e amigo de seu augusto pai, com a grã-cruz da Ordem da Rosa.
A vida política, a vida ativa e a de trabalho do nobre marquês estava acabada; seus dias continuaram ainda alguns anos a deslizarem-se no seio do sossego e da ventura doméstica de que era tão digno, e se ainda, não obstante a sua idade aparecia entre os anciãos da pátria, se ainda pôde com o seu voto sustentar algumas vezes a causa de toda a sua vida, já não era senão o venerando representante do brasileiro distinto que tão alto havia elevado o seu nome. No meio dessas vicissitudes dos tempos, e dessas modificações de caracteres, de opiniões e de princípios, que tão infeliz conseqüência são da fraqueza humana na vida política, ao nobre marquês cabe uma glória: seu caráter, suas opiniões foram sempre os mesmos, os seus votos nunca se desmentiram; nunca em sua longa existência política houve um passo que lhe deixasse a amargura do arrependimento.
No meio dessa existência tão ativa, tão cheia, o nobre marquês, ainda conservando essa previdente generosidade que nas lutas da sua mocidade com a pobreza se havia acrisolado, teve a lembrança da fundação de um montepio, espécie de associação mútua em que os pais de família menos abastados, e a quem era tolhido economizar um pa-trimônio para seus filhos, pudessem com alguns fracos sacrifícios comprar para suas famílias parca, porém segura subsistência. Em junho de 1825 ofereceu ele ao Senhor D. Pedro I um projeto para a fundação de um montepio geral para as famílias brasileiras; já anteriormente havia oferecido uma para as famílias dos militares. Aquele interessante trabalho foi apresentado no Senado em 26 de agosto de 1834, e dele posteriormente resultou o instituto que aí temos com o nome de Montepio Geral dos Servidores do Estado, cuja idéia é atribuída a outrem, reali-zando-se assim ainda uma vez o famoso dístico de Virgílio ... sic vos non vobis...
Na vida do nobre marquês pode-se considerar o homem privado e o homem público; e neste podemos ver — o homem de estudo e de magistério, — o homem de administração, — e o homem político, e em todos esses aspectos pode o Brasil ufanar-se de tão distinto filho, e apresentá-lo como modelo.
Homem político, em uma época de luta com a desorganização revolucionária, quando os mais funestos absurdos eram reconhecidos como princípios e até proclamados como axiomas, teve ele na sua inteligência fria e calma, no seu coração cheio de lealdade e de devoção, meios de premunir-se contra todos os erros, e, convencido que só sob a égide da autoridade pode vigorar a liberdade, nem um só momento sacrificou uma à outra. Até 1831 foi um dos oradores mais distintos e que melhor direção deram aos debates do nosso parlamento, elucidando-os com a maior clareza de expressão, a mais lógica argumentação. Ministro e conselheiro de Estado, sempre falou ao monarca, ainda em risco de desagradar-lhe, a linguagem da verdade. Disso tem o arquivo do Conselho de Estado provas escritas que o futuro historiador das cousas da nossa terra poderá compulsar.
Homem de administração, todos os seus trabalhos na província de Minas Gerais e na organização do Erário do Rio de Janeiro dão testemunho de que tinha ele todas as qualidades necessárias ao administrador, compreensão rápida e clara, perspicácia, perseverança, e essa qualidade sem a qual nocivas são todas as outras, acrisolada inteireza.
Homem de estudo e de magistério, basta lembrar que, ainda estudante, no ensino achou os recursos da existência, que chamado ao professorado público em um estabelecimento importante, conquistou a mais subida estima e consideração, para se ter idéia do que foi; e se como literato administrador escreveu diversos trabalhos sobre as finanças do Brasil, se como agrônomo e amigo do progresso publicou interessantes memórias sobre o cultivo da canela do Ceilão e sobre a granza ou ruiva dos tintureiros, como professor traduziu, para uso da mocidade, a metafísica do cálculo de Carnot, a obra de Fabre sobre torrentes e rios, e a mecânica de Lagrange. Foi membro de muitas sociedades literárias e científicas, quer nossas, quer estrangeiras: a Academia Imperial de Medicina do Rio de Janeiro, o Instituto Histórico Geográfico do Brasil, as sociedades Literárias e amante da instrução, a Promotora da instrução de Vassouras, a de Agricultura, Comércio e Indústria da Bahia contaram-no entre os seus sócios; bem como a Sociedade Universal de Estatística em França, a Academia Francesa de Indústria Agrícola, Manufatureira e Comercial, a Academia Real das Ciências de Lisboa, a Sociedade Literária Tibuciana, etc.
Como homem particular, sempre prestimoso e obsequiador, não poucos benefícios soube espalhar. Afável, jovial e dócil, conciliava com o respeito a afeição de quantos tinham a ventura de o tratar.
Casando-se em 5 de agosto de 1809 com a Senhora D. Francisca Mônica Carneiro da Costa (Marquesa de Baependi), filha legítima do coronel Brás Carneiro Leão, um dos mais abastados e consideráveis negociantes da praça do Rio de Janeiro, cuja viúva foi posteriormente nomeada baronesa de São Salvador de Campos, teve desse feliz consórcio três filhos, um o visconde de Baependi (Brás Carneiro Nogueira da Costa e Gama), a quem deixou em maioridade, e dois outros, Manuel Jacinto Carneiro Nogueira da Gama e Francisco Nicolau Carneiro Nogueira da Gama, ainda menores. Modelo de todas as virtudes domésticas, amou extremosamente a sua família, e, zeloso pela sua sorte, nada deixando ao acaso, conhecendo a fragilidade das cousas humanas e os vaivéns do mundo, com os bens da fortuna que lhes deixou, ainda melhor herança lhes preparou, quer no exemplo das suas virtudes, quer no assíduo cuidado da sua educação.
Do Estado nada deixou a seus filhos senão o seu nome e a recordação dos seus serviços, que mais devem considerar-se como empenhos que os obrigam que como vantagens de que tenham de friur.
Cidadão tão virtuoso, homem de tanto merecimento, devia merecer da Providência uma remuneração; ele a teve na sua longa existência, nos serenos anos da sua velhice, no amor da sua família.
Em 15 de fevereiro de 1847, pela meia hora da madrugada, depois de curta enfermidade, entregou a alma ao Criador. Sua morte foi a do filósofo cristão, como fora a sua vida. Seu corpo foi sepultado nos jazigos da Ordem Terceira de São Francisco de Paula desta cidade com as honras devidas aos altos cargos que durante tantos anos exerceu. Tinha de idade 81 anos, 5 meses e 7 dias.
Sua morte foi geralmente sentida não só pelos seus amigos, como por aqueles que só de nome o conheceram; e se inimigos teve, nasceram-lhe eles das lutas políticas e do exato cumprimento dos deveres dos cargos que ocupara, porque a ninguém odiou, e nunca a ninguém perseguiu.
Nenhum cidadão mais do que ele consagrou ao serviço da pátria diuturna dedicação. Nas épocas difíceis do nascimento político da nação brasileira, quando tudo estava por criar, finanças, administração, recursos materiais e morais, e quando entretanto, alimentado pela infância nacional, o espírito revolucionário tudo perturbava, até como que adrede tudo comprometia, o marquês de Baependi, esse glorioso brasileiro, aí se achou em constante esforço, em constante luta, vítima, como todos os que se consagram ao serviço público, da inveja de uns, da calúnia de outros, nunca porém menos enérgico, menos dedicado.