— Seu nome, minha senhora? perguntou o chefe de polícia à viúva.

— Júlia Guterres, respondeu esta, sem titubear.

— Seu estado?

— Viúva.

— Profissão?

— Vivo dos meus rendimentos.

— Quais são eles?

— Tenho ações, prédios e escravos.

— Conhece Gregório de Souto Maior?

— Muito.

— Desde quando?

— Há dois anos.

— E essa pessoa em que lhe diz respeito?

— Em tudo.

— Como assim? Tenha a bondade de explicar-se.

— Eu o amo!

— Perdão, observou o Dr. Ludgero, limpando no lenço as lunetas, que acabava de desarmar do nariz; pergunto se essa pessoa se acha porventura implicada de qualquer forma em seus interesses...

— De que espécie de interesses fala o senhor?

— Dos interesses pecuniários.

— Absolutamente, respondeu Júlia com um gesto de impaciência.

— E quais são os seus interesses em que ela se acha implicada? Sim! Visto ter a senhora, quando lhe falei dos interesses pecuniários, lembrando outros, é porque...

— Referia-me aos interesses de meu coração, de minha felicidade!

— Ah!

— Posso dizê-lo abertamente, porque sou livre e senhora de minhas ações; peço-lhe todavia que não insista nesse terreno... Há certas coisas na existência de uma mulher, que lhe não poderiam ser arrancadas do coração sem um grande abalo do pudor, ou talvez de dignidade!...

— Compreendo perfeitamente, respondeu o chefe de polícia, colocando de novo as lunetas; mas a senhora deve saber que eu, no lugar em que estou, cumpro um dever sagrado! A justiça, minha senhora, tem por obrigação do cargo violar friamente todos os recintos e todos os segredos. Quanto não me custa ouvir às vezes os pormenores de uma desgraça vergonhosa ou de alguma negra miséria de família? Mas assim é preciso; eu aqui não sou um homem, sou simplesmente um instrumento da Lei. Tenha pois a bondade de abrir o coração e dizer-me tudo o que sabe a respeito de Gregório, que me poupará dessa forma o sacrifício de torturá-la com o meu interrogatório.

— Mas o que quer o Sr. que lhe diga?... Do que serve a minha pobre opinião a respeito de uma pessoa, a quem acabo de confessar que adoro?... Gregório, por pior que fosse para os outros, seria sempre para mim o ideal dos homens! O senhor, que naturalmente conhece o coração da mulher, deve compreender o que há de sincero e verdadeiro nas minhas palavras. Nós quando amamos, desejamos por tal modo descobrir boas qualidades e brilhantes dotes no objeto do nosso amor, que, seja ele a mais ruim das criaturas, nos aparece, à luz maravilhosa de nossa dedicação, radiante e belo como o sol!

— Conclui-se do que a senhora acaba de dizer, que, apesar de supor Gregório o melhor dos homens, não sustentará que ele seja incapaz de cometer um crime...

— Não tive semelhante idéia! Considero Gregório com os defeitos da sua idade e do seu temperamento. Ele seria capaz de cometer qualquer leviandade, qualquer tolice, mas nunca uma infâmia!...

— Sabe do que o suspeitam?

— Ouvi vagamente dizer, aqui mesmo, que se trata de um roubo e de um assassínio.

— E o que mais sabe a esse respeito?

— É justamente por não saber mais nada, que lhe vou pedir o obséquio de dizer o que há. Constou-me agora à noite que ele fora preso, mas tudo isso é tão vago e tão incerto que...

— Conhece este anel?

E o chefe passou a Júlia um anel de homem com pedra de cornalina.

— Sim, disse ela a examiná-lo; parece-me que o reconheço. É o mesmo ou é muito parecido com um que dei a Gregório no dia de seus anos.

— Este anel foi encontrado no lugar do crime e corrobora as suspeitas sobre Gregório.

— Valha-me Deus! exclamou Júlia; mas pode não ser o mesmo!...

— Temos ainda um outro corpo de delito. Examine bem este farrapo de casimira e queira ver se lembra de ter visto algum dia Gregório vestido com um paletó da cor desta fazenda.

A viúva tomou nas mãos o farrapo que lhe passou o chefe, e ficou a examiná-lo atentamente.

— Então?.. disse a autoridade, vendo que ela não respondia. Lembra-se?

— Não sei. Sr. doutor; é isto uma circunstância tão pequena, que foge inteiramente da memória...

— É destas pequeninas circunstâncias que se tiram as conclusões lúcidas sobre qualquer crime, minha senhora; não podemos desprezar nada. Tenha a bondade de declarar se recorda de ter visto Gregório algum dia vestido desta fazenda.

— Ele usava freqüentemente roupas escuras, mas algumas vezes, muito poucas, a passeio no campo ou de volta de um jantar de amigos, creio que o vi vestido de cor alvadia...

— Mas desta cor, precisamente desta, não o viu nunca, minha senhora?

— Não me recordo absolutamente, Sr. chefe.

— Ele era pródigo, extravagante?

— Para ser pródigo é preciso ter fortuna, e Gregório vivia do que ganhava com o trabalho...

— Não sabe se ele gostava de prazeres ruidosos?...

— Não; ao que suponho, não.

— Nunca o viu ébrio?...

— Nunca!

— Recebeu dele muitos obséquios?

— De que espécie?...

— Obséquios de valor, em presentes, em dádivas de preço...

— Os objetos que conservo dele, só têm valor para mim, porque vieram de suas mãos...

— Ele então não despendia muito com a senhora?...

— Não havia necessidade disso...

— Em que qualidade freqüentava a sua casa?

— Na qualidade de meu amigo, a quem me aprouve franquear toda a minha existência e todo o meu coração.

— Desejava vê-lo ainda?...

— Com muito gosto!

— Sabe onde ele está?

— Disseram-me hoje que estava preso.

— Sabe que de tinha um casamento marcado para hoje à tarde?

— Sei, respondeu a viúva, deixando transparecer o desgosto que lhe causava tal pergunta.

— E sabe o resultado desse casamento?

— A noiva esperou inutilmente; Gregório não apareceu.

— E por que ele não apareceu?

— Naturalmente porque o haviam prendido...

— Entretanto, ele não foi preso. Escondeu-se ou fugiu, justamente pouco depois do crime.

— Não se sabe então onde ele está?!

— Não, minha senhora, respondeu friamente o Dr. Ludgero, levantando-se, e acrescentou: — Bem, por ora nada mais temos a perguntar. Pode retirar-se e esperar que a citem para um novo interrogatório.

Júlia saiu e a segunda testemunha foi introduzida no gabinete do chefe.

Era o velho Jacó, criado de Gregório.

— Espere um instante, disse a autoridade, indo até à porta, por onde vira passar um polícia secreta.

— Então?... perguntou a este em voz baixa; descobriu alguém que possa esclarecer o negócio?...

— Sim, Sr. chefe.

— Quem é?

— A menina do Bandolim, uma mocinha italiana, que, em companhia do irmão, toca bandolim no café de Java.

— Ah! fez o Dr. Ludgero.

Antes de prosseguirmos, é necessário, porém, dar dois dedos de explicação a respeito do que há de comum entre a menina do Bandolim e o suspeito Gregório.

Uma noite, sete horas em ponto, o nosso herói, vestido com esmero e correção de quem deseja agradar a olhos exigentes, meteu-se no bonde em caminho da cidade, e só apeou para tomar o da Tijuca. Escusado dizer que não era o rico panorama do arrabalde o que atraía o moço àquelas horas. E não menos escusado é declarar que espécie de ímã o puxava para ali com tanta força.

Em certa altura Gregório saltou em terra defronte de um chalé, pintadinho de novo e meio apadrinhado do sol, pela folhagem de algumas árvores; apadrinhado durante o dia, bem entendido, porque durante a noite o padrinho era um formidável cão negro, que bradava armas a todo o vulto, suspeito ou não, que passasse pela esquina.

E tanto assim que, mal Gregório se aproximou do portão, já o tal padrinho ladrava a bom ladrar.

— Está quieto, Netuno! exclamou o moço, fazendo vibrar a campainha.

Veio logo a criada e Gregório perguntou:

— Ela está em casa?

Este modo de saber se a pessoa que vamos a visitar está em casa, prova alguma coisa, prova, pelo menos, que Gregório era já tão familiar da criada quanto o era de Netuno, e por conseguinte que aquela visita poderia ter todos os méritos, menos o da novidade.

— Saiu, respondeu a criada, abaixando o rosto.

O moço não retorquiu, mas também não se foi; ficou a sacudir a perna, apoiado na bengala, assobiando.

A criada, com o rosto metido entre dois varais da grade, em que se sustinha com ambas as mãos, esperava que ele resolvesse qualquer coisa.

— Então saiu, hein?... insistia Gregório, interrompendo o assobio e bamboleando a perna com mais força.

— É, disse a criada, bocejando.

E os dois ficaram calados por algum tempo; afinal Gregório mostrou tomar uma resolução e acrescentou:

— Ora vá dizer-lhe que eu bem sei que ela está em casa...

— Minha ama saiu! sustentou a criada, a rir-se.

— Homem, faça o que lhe digo!

— Gentes! Ela não está!...

— Você então não quer ir?! Bem...

E Gregório fez o movimento de quem se afasta, levando uma intenção de vingança.

— Eu vou ver! exclamou a criada, largando os varais do portão.

Gregório voltou logo, como se fosse puxado por todo o corpo.

A criada desapareceu nas sombras duvidosas do jardim e, pouco depois, ouviu-se o som de uma voz de mulher que parecia ralhar dentro do chalé.

Gregório sorriu sozinho e retomou o fio da música que assobiava.

Quando havia gasto já uns dois minutos de assobio, abriu-se uma das janelas do chalé e desenhou-se contra luz da sala a figura simpática da viúva.

— Já voltou?! disse Gregório, transpondo o portão e indo postar-se debaixo da janela.

— Você não disse que não voltava mais aqui?! perguntou a outra por sua vez.

E como Gregório não respondesse:

— Também olhe que ninguém o iria buscar!...

— Disso sei eu!... observou o rapaz, armando um gesto de quem medita. E acrescentou depois:

— Bem tolo seria se acreditasse em amores... de viúvas.

— Nesse caso, por que voltou?...

— Voltei... nem sei porque... Antes com efeito não tivesse vindo!...

— Pois ainda está em tempo de voltar por onde veio!...

— Tem razão! respondeu Gregório. Boa noite!

— Não vê que era capaz...

— Você duvida?

— Duvidava! respondeu Júlia.

Gregório deu uma volta sobre os calcanhares e encaminhou-se para o portão, sem dizer palavra.

— Nhonhô! gritou a viúva, quando o rapaz já transpunha a saída.

— Que é? perguntou ele, voltando-se com afetada indiferença.

— Vem cá...

— Que deseja de mim?

— Entre...

— Para quê?

A viúva fez um movimento de ombros e foi abrir a porta da sala.

Gregório subiu e ela o recebeu com um beijo.

— Não! disse ele; olhe que a senhora às vezes tem coisas bem esquisitas!

— Presumido!...

— Ainda não me esqueci do que se passou aqui no outro dia... — Aí vem a tolice!...

— Tolice não! A senhora riu-se para ele!

— Bem caso faço eu agora daquele tipo! Um esganiçado!

— Sim! mas a senhora não lhe tirava os olhos de cima!...

— Foi para isso que veio cá?...

— Eu não queria entrar...

— Então para que entrou?!...

— Queria ver se me encontrava com o tal barão!...

— Com que fim? se faz favor...

— Para pedir-lhe que a tratasse com toda a delicadeza!...

— Não era preciso; o barão é a cortesia personificada!

— Pois case-se com ele!

— Quem sabe, hein?!

E os dois continuaram a altercar meio dessentidos, meio alegres, até que Gregório tomou o chapéu, despediu-se e saiu, sem fazer pazes completas.

Entre o largo de S. Francisco e o ponto dos bondes de Botafogo, onde tinha ele de tomar o das Laranjeiras, ao passar pelo café de Java, descobriu alguém que o fez parar. Encostou-se à parede da Notre-Dame e ficou a olhar muito para um sujeito de idade duvidosa, cabelos e barba exageradamente pretos e lustrosos, olhar vivo, gestos cerimoniosos e chapéu alto.

Era o barão.

A um dos cantos do café a Menina do Bandolim dedilhava as cordas do seu instrumento ao lado do irmão, e parecia inteiramente preocupada com a música.

O barão devorava-a com os olhos, enquanto em outra mesa mais afastada, um rapaz louro, bastante magro, de monóculo, gestos braçais muito angulosos, falava a um grupo de quatro ou cinco amigos que o escutavam com interesse; tratava-se de política revolucionária.

No fim de meia hora, o barão saiu do café, e, depois de alguns passos pelo largo de S. Francisco, falou em particular a um homem que parecia esperar por ele, e seguiu tranqüilamente na direção da rua do Teatro.

Gregório viu tudo isto e principiou a seguir com a vista o novo personagem.

Todavia, a Menina do Bandolim, que acabava de recolher o instrumento a um saco de baeta escura, retirava-se por sua vez com o irmão.

Gregório acompanhou-os a certa distância.