Júlia, ao sair da secretaria de polícia, levava o coração encharcado de sobressaltos; as dúvidas, os terrores, as saudades do amante, enchiam-na toda de uma grande tristeza histérica.

Entrou em casa sem dar uma palavra à criada, que a seguia com os olhos espantados. Depois, arremessou o chapéu, a capa, e afinal a roupa, e deitou-se de bruços na cama, a soluçar desesperadamente.

Às sete horas da manhã, quando a criada penetrou no seu quarto, para lhe entregar um papel que vinha da polícia, achou-a já de pé e vestida em trajos de sair.

— Que mais teremos?! perguntou ela consigo, sem disfarçar o aborrecimento.

Era uma nova intimação policial.

— Ainda está aí o portador disto? perguntou à criada, depois de correr os olhos pelo papel que tinha nas mãos.

— Não, senhora; retirou-se.

— Bem. Eu saio depois do almoço. Olha, se na minha ausência vier procurar-me quem quer que seja, dize-lhe que tenha a bondade de esperar um pouco. Não me demorarei.

Mal tinha acabado de pronunciar estas palavras, quando vibrou fora a campainha. A criada correu ao portão, e voltou logo, dizendo que um homem de meia-idade e bem vestido procurava pela senhora.

— Faze-o entrar para a sala.

E a criada fez entrar o Dr. Roberto.

— Desculpe-me, se tomo a liberdade de incomodá-la, minha senhora, sem ter a honra de conhecê-la, mas desde ontem que ando doido por saber qualquer notícia a respeito de Gregório; e, já porque me consta que ele não lhe é igualmente indiferente, como porque sei que V. Exa. conversou com a noiva e conversou também com a polícia, não resisti ao desejo de vir pessoalmente pedir-lhe que me diga com franqueza o que é feito desse pobre moço, a quem estimo como se fosse meu filho. Ia ser seu padrinho de casamento e fui por bem dizer o padrinho do seu amor...

— Ah!

— Ele conheceu Clorinda em minha casa, e eu, convencido de que só a família traz consigo certa estabilidade e certo amor pelo trabalho, procurei o melhor que pude aproximá-los um de outro.

— Ah!

— Gregório, continuou o Dr. Roberto, tem bom caráter, muito coração, algum talento, mas muito pouco juízo. É dos meus! A vida de solteiro acabaria por inutilizá-lo completamente; sonhei aquele malogrado casamento como se fosse eu próprio o noivo! Calcule, por conseguinte, minha senhora, como não estarei desapontado, tonto, com o que se passou, e como não estarei louco por saber que fim levou o nosso pobre Gregório!

— Ele amava muito a noiva?

— Extraordinariamente.

— Sabe disso com toda certeza?...

— Que interesse o poderia levar a casar senão o amor?...

— E ela correspondia a esse afeto?

— Creio que com o mesmo entusiasmo. Por que me pergunta isso, minha senhora?

— Naturalmente porque isso me interessa. O senhor foi o único encaminhador do casamento de Gregório?

— Pelo menos o mais empenhado para que ele se realizasse.

— E tem ainda esperanças nessa realização?

— Terei depois que V. Exa. mas der, declarando o que sabe a respeito de Gregório...

— Eu sei tanto como o senhor.

— Não sabe nada a esse respeito?!

— Nada?! Pois o senhor não está a par das pesquisas policiais sobre Gregório? não sabe que ele é acusado de um crime de morte e de roubo?!

— É impossível! exclamou o doutor, fazendo um gesto de indignação.

— É a verdade! sustentou Júlia com tristeza. Infelizmente, é a pura verdade!

— Mas o que os leva a supor semelhante coisa?

— Sei cá! O fato de haver ele desaparecido por ocasião do crime, o fato de ter ele sabido que a vítima recebera nesse dia vinte contos em dinheiro, e enfim o fato de ser encontrado no lugar do delito um anel que pertencia ao acusado.

— É inacreditável!...

— O que mais me admira é não estar o senhor a par de tudo isto!

— Como poderia estar, se ainda não voltei à casa da noiva; tenho gasto o meu tempo a procurar Gregório por toda a parte. Quando soube que ele desaparecera, corri às Laranjeiras; o Jacó, porém, não me adiantou a menor idéia...

E os dois conversaram ainda largamente sobre o mesmo assunto, sem que nenhum deles conseguisse achar o fio do enigma.

O Dr. Roberto retirou-se afinal para casa, torturado de incertezas e receoso de uma grande calamidade.

Júlia compareceu ao novo inquérito.

— Conhece a Menina do Bandolim? perguntou-lhe o chefe de polícia ao cabo de seu interrogatório.

— Pode ser, mas se a conheço, não ligo o nome à pessoa.

— Tenha a bondade de ver este desenho; ele dá uma idéia perfeita de quem falamos.

E o chefe passou à viúva um quarto de papel branco, onde havia um esboço a pena.

Júlia mal olhou para o papel, exclamou:

— Ah! Já sei! Agora sei quem é.

E, apesar da situação, não pôde deixar de rir.

Era uma excelente caricatura da Menina do Bandolim, desenhada a traços largos pelo Raul Pompéia. Esse desenho mais tarde foi reproduzido pelo próprio autor e oferecido à galeria da saudosa Gazetinha, donde o subtraiu naturalmente algum polícia secreta.

— Donde a conhece? perguntou em seguida o chefe.

— De uma noite, em que por acaso a vi conversando com Gregório à mesa do café de Java.

— Sabe quais eram as relações entre ela e o acusado?

— Absolutamente; calculo, porém, que não passariam de um ligeiro namoro sem conseqüências. Essa menina é honesta...

— Conhece a letra do acusado?

— Perfeitamente.

— Tenha a bondade de ver esta carta.

E passando-lhe uma carta que tirou de um maço de papéis:

— Parece-lhe escrita por ele?

— Sim, esta letra é de Gregório ou muito se assemelha à dele.

— Faça o favor de ler, disse o chefe.

— "Querida Teresa".

Mas como fizesse logo um ar de dúvida, o chefe esclareceu:

— Teresa é o nome da Menina do Bandolim.

— Ah! disse a viúva, e continuou a leitura: "Ontem não me foi possível ver-te um só instante: o trabalho prendeu-me até tarde; hoje, porém, creio que terei a ventura de contemplar-te por muito tempo. Se até lá não me houverem já devorado as saudades, aproveitarei a ocasião para te comunicar que chegou o momento de transformarmos a nossa sorte. Vai realizar-se aquilo, e com isso se realizará também o nosso casamento. Ah! quanto sou feliz só com pensar em semelhante coisa... Adeus, até logo, pensa um pouquinho em mim e tem confiança na minha coragem. — Teu G."

Seguia-se a data.

— Essa carta foi escrita justamente na véspera do crime, afirmou o chefe.

— Mas eu então nada entendo de tudo isto, porque a véspera do crime era igualmente a véspera do casamento de Gregório.

— A senhora possui a letra do acusado?

— Sim, senhor, e creio que a tenho aqui mesmo, respondeu a viúva, remexendo na sua bolsa. Ah! cá está um bilhete seu, acrescentou ela, passando uma tira de papel ao chefe de polícia.

O bilhete constava apenas disto:

"Nhanhã. — Não posso ir, como prometi, fazer-te companhia domingo ao jantar. Chegou da Europa um velho amigo meu, o Dr. Roberto, e tenho de estar com ele esse dia. Desculpa e recebe saudades. — Do teu."

Não havia assinatura. O chefe perguntou quem era aquele Roberto e, depois de sair a viúva, ordenou que o intimassem para comparecer à sua presença.

Continuava pois o processo, mas a polícia principiava a desesperar do nenhum êxito dos seus trabalhos de investigação. Os depoimentos seguiam-se quase sem intermitência; nada porém de aparecer o autor do crime! Os corpos de delito destruíam-se uns aos outros. Fez o interrogatório do velho Jacó, da noiva, dos padrinhos, dos convidados para o casamento e nada!

Gregório não aparecia, nem tampouco aparecia algum indício que servisse de orientação.

Entretanto Clorinda foi pouco a pouco se habituando à idéia da ausência do seu noivo e voltando aos hábitos primitivos de menina. A viuvez sem luto não é viuvez. Regressavam-lhe em breve os sorrisos ao rosto, como voltam as flores na primavera.

Passaram o primeiro e o segundo mês, ao terceiro já as coisas pareciam novamente metidas nos seus eixos. A casa de D. Januária retomava o ar que possuía antes do malogrado casamento; veio de novo o comendador Portela, sempre muito preocupado com a sua pessoa, veio D. Josefina com o seu mau gênio, veio o Dr. Roberto, acompanhado pela sua inalterável esposa, e veio o João Rosa, aquele sujeitinho magro e ativo, que no primeiro capítulo parecia muito empenhado no bom êxito do consórcio.

Aos domingos, à noite, reuniam-se eles invariavelmente em casa de D. Januária, ou em casa do Dr. Roberto.

É em uma dessas noitadas de palestras, que os vamos encontrar agora todos juntos em casa da boa velha.

São oito horas. O comendador acabara de entrar, de fitinha ao peito, e corre um por um os circunstantes a cumprimentá-los com enormes frases.

— Oh! A nossa querida Sra. D. Januária, como tem passado, depois da última vez em que tive o prazer de vê-la? perguntava ele à mãe adotiva de Clorinda, apertando-lhe a mão, todo vergado para frente, a bambolear o corpo.

— Assim, assim... respondeu aquela, dando um suspiro.

— Ah! os tempos não andam bons! não andam! Ainda ontem, conversando em uma soirée do Ministro da Fazenda, com a viscondessa da Boa Estrela, disse-me ela que ultimamente tem uma pequena febre todas as noites...

E voltando-se para os outros:

— É verdade! Sabem quem está também incomodado? o barão de Mesquita! Terça-feira, quando jantávamos juntos... jantar simples, íntimo, sem-cerimônias! Ah! Ele é muito meu camarada! tanto como o visconde do Bom Retiro! Mas bem! jantávamos juntos e o barão de repente leva a mão ao estômago e empalidece. Coitado! Não lhes digo nada! Só ontem conseguiu deixar a cama!

— Sim? perguntou por condescendência o João Rosa, a quem mais diretamente parecia dirigir-se o comendador.

— Pois não! confirmou o gabarola. Mas o que quer o senhor?!... nós todos estamos sobre um grande pântano! Sim! o Rio de Janeiro é um grande pântano! Não acha, doutor?

— Está visto! respondeu Roberto.

— Pois bem, quais são as medidas empregadas para sanar o mal? Nenhuma! Projetos não faltam, mas quanto à realização... Encarregasse-me eu de providenciar sobre isso, e viriam os resultados! Havia de arriscar bom dinheiro, havia! Mas juro-lhe que o trabalho apareceria! Oh! nós aqui não temos iniciativa de espécie alguma!... Uma vez, em Paris, quando visitei o Thiers, disse-me ele que o Brasil estava fadado a representar um papel importantíssimo nos séculos futuros; eu lhe respondi, batendo-lhe no ombro: "Meu bom Sr. Thiers, não julgue o Brasil pelos relatórios oficiais e pelas descrições européias. O Brasil..."

Mas foi nisto interrompido por dois rapazes, que acabavam de entrar na sala.

— Ah! disse D. Januária, reconhecendo um deles; sempre veio? E acrescentou para os outros: É o Sr. Duque Estrada, filho de uma das famílias que me honram com a sua estima.

— É parente do senador?...

— Não, senhor, respondeu o rapaz; não temos parentesco algum.

E chegando-se mais perto da dona da casa, disse-lhe, indicando o companheiro:

— Tenho a honra de apresentar-lhe o meu distinto amigo Adelino Fontoura, um belo talento!

— Oh! disse o Fontoura, vergando-se reverentemente, dentro do seu croisé preto.

E, depois de uma troca geral de cumprimentos, os dois recém-chegados foram colocar-se no vão de uma janela.

— Muito se parece este rapaz com o filho de um lorde que conheci nos salões da princesa Rattazi, disse o comendador, mostrando o Duque Estrada.

Era este um moço magro, espigado, barba loura partida no queixo; vestia-se à moda, mas com simplicidade, e tinha na fisionomia o ar condescendente e atencioso dos homens educados no seio da família.

O outro era de menor estatura, feições mais varonis, mais reforçado de membros, um pouco áspero de rosto, cabeça grande, achatada no crânio e cabelos pretos muito curtos e lustrosos.

— Aquela é que é a tal menina do célebre casamento?... perguntou Fontoura discretamente ao companheiro, indicando Clorinda, que em um dos ângulos da sala conversava animadamente com o João Rosa.

— É, respondeu o outro.

— Encantadora! acrescentou o Adelino. E aquele esquisito do Urbano Duarte havia dito, no seu folhetim de domingo, que ela era feia!...

— Ora!.. desdenhou o Estrada, que havia chegado o ouvido perto da boca do amigo; tu bem sabes quem é Urbano para julgar mulheres! O Augusto Off, por exemplo, juro-te que é de minha opinião.

— Mas então está ela já de namoro com aquele sujeito?...

— Não sei.

— Pelo menos conversam muito animadamente! O que são as mulheres... disse o Adelino, sacudindo filosoficamente a cabeça! Ainda não há quatro meses que ia casar com o tal Gregório, e já parece hoje resolvida a aceitar outro. Quem é aquele sujeito, conheces?

— Aquele que conversa com ela?

— Sim.

— Ah! de vista. É um tipo aí do comércio; creio que empregado em uma casa de café. Parece estimado.

— Acho-o com cara de tolo!

— Dizem que não, que é um sujeito muito fino para negócios.

Clorinda levantou-se e foi para o piano.

— Já me tardava! resmungou Adelino, quando ouviu as primeiras notas de música.

Na ocasião em que os dois companheiros se retiraram, um deles fez notar ao outro a insistência com que João Rosa olhava para Clorinda.

— Fiem-se em mulheres!... resmungou Adelino.

Clorinda com efeito recebia agora com menos severidade a corte de João Rosa. Resistira a princípio, chegou a repeli-lo uma vez com energia, ele porém voltara pacientemente, humilde, a repetir os seus protestos de amor. Ela hesitou; não disse abertamente que não, mas também não disse que sim. Ficaram no talvez.

D. Januária é que pouco se mostrou preocupada com o novo pretendente da pupila; outra idéia a atormentava: é que há dois meses não recebia a mesada, que até aí lhe chegava às mãos, e esta circunstância a vinha colocar presentemente em sérios embaraços.

Mais um mês sem mesada e a miséria abriria as fauces medonhas e patentearia as unhas desapiedosas.

Foi o que veio a suceder. A suspensão da mesada colocou D. Januária em formidáveis apuros. A pobre senhora teve logo de encurtar a mão sobre umas tantas despesas e tomar encomendas de engomagem e costura.

Mas isso não bastava; o trabalho da mulher, por mais valioso que seja, é sempre estreito e mal recompensado. Embalde, mãe e pupila, puxaram heroicamente pela agulha e pelo ferro de engomar; embalde velavam grandes serões à luz de um bico de gás; nada chegava. Os recursos iam minguando de dia para dia, e a casa ia perdendo o ar próspero que até aí gozara.

Conchegavam-se os horizontes, e as duas mulheres estremeciam, sentindo já de perto o tossir impertinente da miséria e o terrível estalar das suas sórdidas moletas. Para onde fugiriam elas do espectro sinistro que se avizinhava a passos fúnebres? No deserto da sua pobreza não avistavam refúgio, nem uma só palmeira amiga, que de longe lhes acenasse, chamando-as à sombra hospitaleira.

E, assim, mais e mais se foram ambas retraindo. Fecharam-se às visitas que lhes pudessem acarretar a qualquer despesa; privaram-se de tudo que não fosse restritamente indispensável. Em breve seria necessário, depois de vendidas as jóias, arrancar do fundo da gaveta alguns desses objetos de valor, que às vezes certas velhas conservam como a última lembrança de um passado feliz.

Ah! é como se os arrancássemos do fundo do coração! Qual é a mãe, qual é a avozinha que não guarda, embrulhados em papel de seda, os brincos com que casou ou a medalha em que guardava o retrato do marido ou do filho? Quem não possui um desses legados da felicidade, que, por mais insignificante não represente toda uma existência extinta?...

Depois de vendido o piano, a mobília da sala de visitas e o mais que podia dar alguma coisa, D. Januária, na contingência de obter dinheiro, resignou-se à separação de poucos objetos de luxo que conservara do tempo do marido. Abriu a velha gaveta de sua cômoda, mas, ao tocar em uma caixinha de madeira polida, embalsamada pela antigüidade, as mãos principiaram-lhe a tremer e as lágrimas saltaram-lhe dos olhos.

Estava aí um colar de pérolas, que o marido lhe atara ao colo na noite do casamento. Nesse tempo ela era formosa, moça cheia de esperanças. Como assentavam bem aquelas pérolas na sua pele morena e fresca! mas como desmereciam de brilho e brancura, quando ela sorria e mostrava as outras pérolas da boca! Estas entretanto amareleceram e caíram, como as folhas no outono, e aquelas conservavam o mesmo brilho primitivo e a mesma sedutora alvura.

Ao ver esses objetos, testemunhas da sua extinta mocidade e cúmplice discretos da sua longínqua ventura, a pobre senhora transportou-se ao passado e ficou a meditar longamente. Que lhe restava de tudo isso?... Que ficou de tanto amor, de tanta beleza, de tanta juventude?...

— Nada! Só ela! Ela que, por bem dizer, já não existia!...

E, tomando nas mãos trêmulas os objetos que tirara da caixinha, beijou-os repetidas vezes, a abafar os soluços, para que Clorinda não os ouvisse da sala próxima.

— Mas é sempre certo que te tens de separar deles? perguntava-lhe o coração, a gemer. Não reparas, velha desalmada! que esses objetos são a única coisa que te fala do passado? não reparas que em torno de ti já morreram todos aqueles que viveram no teu tempo, aqueles que te amaram e te viram bela?! Despede-os, vende-os, mas vai-te também embora para a tua cova, que nada mais tens de fazer cá no mundo!

Clorinda, que se aproximara da mãe, sem ser sentida, encontrou-a a gesticular neste mudo diálogo, a mexer com os braços e a sacudir a cabeça, desvairadamente, em grande transbordamento de lágrimas.

— Que é isto, mãezinha?! Que tem a senhora?!

A velha olhou-a com sobressalto, e guardou contra o seio despojado o cofre das suas estremecidas relíquias.

— Mãezinha! Valha-me Deus! Diga o que tem!

A velha não respondeu e continuou a encará-la com desconfiança.

Havia desaparecido de seu rosto a doce expressão de bondade e ternura, e os olhos dela cintilaram com fúria.

Clorinda recuou, tomada de um grande terror. O vulto esquelético da mãe fazia-lhe medo naquele momento. A velha afastou-se, a olhar sempre desconfiadamente para os lados, e foi meter-se no canto mais sombrio da casa, abraçada à caixinha que levava consigo.

Clorinda não se animou a segui-la; a idéia de que a velha enlouquecera e fosse capaz de estrangulá-la no mesmo instante, atravessou-lhe o espírito e agitou-lhe o corpo inteiro num estremecimento de medo. Quis chamar por alguém, quis pedir socorro, mas nada lhe ocorria nesse momento; afinal, ouvindo no interior da casa os passos trôpegos de Januária, ganhou o corredor e atirou-se para a rua.

Já não era a mesma rapariga. Principiava a emagrecer e descorar. O trabalho exagerado e as noites de fadiga queimaram-lhe os olhos, ainda pouco antes tão transparentes; as faces secaram com o mau trato; a boca resfriou com a ausência do riso, que era a sua alma; e o rosto despiu-se daquela frescura virginal, como a flor sem sol perde o perfume e deixa pender tristemente seu cálice emurchecido.

Ela parou no meio da rua, atônita.

Era a primeira vez que se achava assim, em trajos de casa, às vistas brutais dos vizinhos e dos transeuntes.

Mas o que lhe competia fazer?! Para onde devia ir?! Ah!

Teve uma idéia. Procurar o Dr. Roberto, contar-lhe o que se passara e pedir-lhe socorro.

Mas o Dr. Roberto morava no Rio Comprido, não sabia ela em que altura, eram mais de seis da tarde, faltava-lhe dinheiro para tomar um carro, e D. Januária precisava de cuidados imediatos.

E, nesta conjuntura, aguilhoada pelo pudor e pelo medo, encostou-se à parede da casa, e escondeu o rosto para que não vissem as suas lágrimas.

Neste estado sentiu que alguém lhe tocara no ombro, voltou-se rapidamente, e deu, face a face, com Júlia Guterres.

— Ah! disse a pobre menina.

— A senhora não é a noiva de Gregório? perguntou a outra.

— Sim, sou eu! Não me estranhe ver aqui! Mãezinha creio que enlouqueceu! Tenho medo. Veja como tremo!

— Como está mudada!... Mas o que tenciona fazer a senhora?

— Não sei! Não conheço as ruas, não conheço ninguém! Tenho medo de voltar. Se visse como ela está!...

— Sua mãe?

— Sim; está furiosa! Não sei o que faça!

— Quer ir comigo?

— Não tenho ânimo de abandonar mãezinha!

— Vamos buscar um médico?

— Pois sim.

E a viúva chamou o primeiro carro que atravessou a rua e meteu-se dentro dele com Clorinda.

Mas logo depois de dobrar a esquina, Júlia fez parar o carro e gritou para aquele rapaz louro que vimos conversar em uma roda no café em que tocava a Menina do Bandolim:

— Dr. Trovão! Dr. Trovão! tenha a bondade!...

E depois de falar-lhe em voz baixa, seguiram os três para a casa de D. Januária.

Anoitecia.