Tubarão deixou a bordo o seu antigo comandante e voltou cabisbaixo e triste para casa. As últimas palavras que lhe segredara Leão Vermelho, obrigavam-no a cair em meditações de sabor estranho e amargo.

— Não! não é possível!... resmungava ele consigo. O capitão não tem razão! são desconfianças! não pode deixar de ser!...

Podia lá acreditar que a Sra. D. Cecília, tão meiga, tão simples, fosse capaz disso?!... Não! definitivamente o capitão não tinha a cabeça no lugar quando lhe recomendou que vigiasse a mulher!...

E, desta forma, ia o Tubarão, caminho de casa, a gesti­cular consigo no seu monólogo.

Nesse tempo teria ele vinte o oito anos. Era então uma bela estampa, destro e rijo, afeito aos temporais e às duras fadigas do oceano. A vida do mar dera-lhe à fisionomia esse ar contemplativo e doce que se nota quase sempre nos maru­jos, como se lhes acumulasse no semblante o ressaibo das velhas saudades da pátria e dos amores que ficam em terra.

O marinheiro é fatalmente generoso e bom; ama os seus semelhantes, porque os não conhece; entre eles se antepõe o oceano, onde não chegam intrigas e paixões mesquinhas. E o imponente aspecto do mar fortalece e alarga o coração; a alma forma seus horizontes pelos horizontes que os olhos avistam.

Tudo mar! Tudo céu! Qual é aí o monumento que nos denuncie o prestígio enfermo de algum monarca, a quem a inconsciência entregou um cetro e ergueu um trono? Qual o mausoléu que nos diga a importância da vaidade de algum nababo submergido naqueles inóspitos desertos? Qual é o conquistador que tem lá a sua estátua? qual é a religião que tem lá o seu templo? qual o déspota que tem lá o seu cada­falso?!

Nada! O velho monstro antediluviano não admite prerrogativas; eternamente indomável e altivo não quer que no seu dorso se ergam capitólios e oblações. E é dessa austera independência que o mareante forma o seu caráter e o seu coração. Forte como o mar, brando como as águas, ele mane­ja tão bem os segredos do ódio, como regula e dirige os impul­sos da dedicação e do sacrifício.

Ninguém ama com tantos desvelos, mas também ninguém odeia com tanta impetuosidade.

Para o Tubarão semelhantes leis tinham aplicação muito justa. Ele era homem de arriscar a vida pelos seus amigos e de arrancá-la brutalmente àqueles que os traíssem. Então pelo seu ex-comandante, que não seria capaz de fazer?! Leão Vermelho representava para Tubarão um ídolo sagrado; a solidariedade nos perigos e nas canseiras do mar identificara aquelas duas almas, ásperas e compassivas ao mesmo tempo.

Depois que os dois abandonaram o navio e se foram refu­giar tranqüilamente à sombra da família, o marinheiro sentiu-se possuído de grandes nostalgias: faltavam-lhe as melancólicas sestas que ele outrora desfrutava à proa, cantando à guitarra ao lado dos companheiros, enquanto o sol, ao longe, descam­bava no poente, atufando-se nos limbos afogueados do hori­zonte.

E o marinheiro em terra, como a ave que arrancaram do seu bosque, entristeceu e principiou a depor a substância de sua dedicação aos pés da esposa do comandante. Amava-a com um respeito religioso, uma quase adoração. Vivia preo­cupado a afastar de em redor dela tudo aquilo que de leve a pudesse contrariar.

Durante o tempo em que Cecília estava para dar à luz Gregório, só o dedicado marinheiro sabia corresponder às exigências e aos caprichos da enferma. Procurava cercá-la de distrações, como se ela fosse uma criancinha doente; canta­va-lhe as modas de sua terra, naquela toada monótona dos marujos e, muitas vezes, como estivessem no verão, iam espai­recer um pouco para o terraço, e aí o marinheiro contava as lendas melancólicas do mar, onde fugiram louros príncipes encantados que vão prear sereias nas costas da Normandia. Falava-lhe das brancas miragens que, em noites de luar, flu­tuam pelas águas, e entre as quais o navegante apaixonado descobre o vulto estremecido da mulher amada.

Cecília, com os olhos presos no céu, os lábios mal cerra­dos, e toda ela ressentida da profunda ternura que a gravidez traz consigo, ficava embevecida a ouvir as histórias do marujo. Um dia perguntou-lhe se ele nunca tivera também o seu amor.

Tubarão não respondeu, coçou a cabeça, e depois limpou com as costas da mão duas lágrimas, que lhe corriam pelas faces tostadas do sol.

— Conte-me antes a sua história... pediu Cecília com a voz quebrada; teria prazer em ouvi-la. Vamos! Conte a história dos seus amores...

— Não, patroazinha! Marinheiro não tem amores... Pobre de nós se nos fica o coração cá em terra, quando temos de embarcar. Às vezes, no dia em que saltamos em um porto estranho, sem conhecer ninguém, sem encontrar um rosto amigo, lá vemos entre a multidão os olhos formosos de alguma mulher que nos cativa, levamos a saudade para bordo; são mágoas para toda a viagem!

— Mas você comoveu-se ainda há pouco, Tubarão, quando lhe falei nos seus amores...

— Lembrei-me de minha mãe! A pobrezinha chorava quando eu parti, e ninguém lhe tirava da cabeça que ela nunca mais me veria...

— E depois?

— Quando voltei à minha aldeia, já ela estava no cemité­rio. O vigário mostrou-me a sepultura: era no chão, debaixo de uma grande árvore, perto da capela...

— E o que fez você?...

— Eu ajoelhei-me e rezei as orações que ela me ensinara, quando eu era pequenino. Depois, como o serviço me espe­rava a bordo, às pressas colhi as flores que havia por ali, espalhei-as sobre a sepultura, e voltei para o trabalho. Fui muito triste; era tão boa aquela velhinha!...

À proporção que corria o tempo, ia Tubarão mais e mais se afeiçoando a Cecília. Só os homens do mar, essas almas ingênuas e criadas longe da terra e ao correr franco dos ventos, conhecem os mistérios do amor desinteressado e heróico. Para o marujo, a mulher aparece por um prisma muito melhor do que para os outros homens; pois só lhe conhece ele a influên­cia feminil e doce por intermédio da saudade: a mulher é sempre para o marujo um ente adorável, que se deve amar de joelhos. Um sorriso de seus lábios cor-de-rosa é o bastante para prostrar o leão valente, que pouco antes afrontava a fúria dos vendavais e a sanhuda cólera dos mares.

Tubarão estava nestas circunstâncias a respeito de Cecília, quando o capitão, ao partir para o Brasil, lhe segredada aquelas palavras que o fizeram estremecer.

O marinheiro chegou à casa possuído de grande pesar. Seria possível que o seu comandante tivesse qualquer razão para dizer aquilo?... Não! não era possível!...

Mas o pobre marujo, disposto a seguir os passos da patroa, como lhe ordenara o amo, tinha mais tarde de sofrer as mais dolorosas das decepções.

Quando Leão Vermelho partiu para o Brasil, seu filhinho Gregório tinha apenas dois anos. Tubarão, que, ouvia da criança os primeiros vagidos, foi por tal forma lhe tomando carinho, que acabou por fazer dela toda a sua preocupação e todo o seu enlevo.

Passava horas esquecidas com o pequenito ao colo ou a brincar com ele, a suspendê-lo no ar e a rolá-lo entre as suas grossas mãos. O bebê desfazia-se em risadas com o mari­nheiro e puxava-lhe as barbas, na sua infantil e graciosa irra­cionalidade.

Assim, quando o amo chegou a partir, já o pobre homem estava preso àquela gente por uma amizade sem limites, cuja transparência só as palavras do comandante, segredadas a bordo, vinham toldar pela primeira vez.

Todavia era forçoso obedecer. O marinheiro principiou então a seguir os passos de Cecília, sem jamais a perder de vista; os menores gestos da senhora, a mais leve alteração do seu humor, tudo o marujo observava com cuidado e reserva.

Um dia achou-a sumamente triste e concentrada. À mesa não dera Cecília uma palavra, e à noite, depois de passar longas horas fechada no quarto, apareceu com os olhos incha­dos e vermelhos. O próprio filho, nesse dia não conseguiu distraí-la; ela, ao contrário, parecia não lhe poder suportar os gritos e as travessuras.

— Vossemecê sente alguma coisa, D. Cecília?... pergun­tou-lhe o Tubarão, quando a pilhou de jeito.

— Estou nervosa! respondeu ela, afetando desprendimento.

— Hão de ser as saudades do capitão! aventou o mari­nheiro, torcendo nas mãos o seu pesado gorro de baeta azul.

Aquela observação perturbara sobremaneira a rapariga e trouxera-lhe às faces uma leve cor-de-rosa.

— Há seis meses que ele se foi... acrescentou Tubarão, com os olhos baixos e o semblante entristecido. Seis meses? Quase sete. Ora espere! (E depois de contar pelos dedos.) É isso, são seis meses e dezoito dias...

— Deve ser isso mesmo! disse Cecília, quase com impa­ciência.

E os dois calaram-se, sem encontrar mais nada para dizer.

— Vossemecê precisa de mim para alguma coisa?...

— Não. Podes recolher-te quando quiseres. Não preciso hoje de companhia.

O marinheiro afastou-se, sacudiu os ombros, e foi para o seu quarto; mas não pôde conciliar o sono: a insólita preocupa­ção da patroa e as recomendações do comandante tiravam-lhe o sossego do espírito.

— Não! dizia ele de si para si. Não, não é possível! Além disso, com quem?... Aqui só aparece o velho capitão Rego e outros tão inofensivos como este! Ela pouco sai!... Onde, por conseguinte, poderia apanhar uma relação que autorizasse aquelas palavras do comandante?... Não! definitivamente o que ela tem são saudades do marido! Nem podia ser de outro modo! Sete meses não são sete dias, coitada!

E a fazer destes raciocínios, o Tubarão virava-se de um para o outro lado da sua maca de lona, sem conseguir dormir.

Deram onze horas, doze, uma; e nada! O sono não queria chegar. Tubarão levantou-se, ia acender um cigarro, mas, antes de riscar o fósforo, sentiu rumor de passos no jardim.

— Olé! disse consigo. Há mais quem não consiga ficar na cama?... Ora, vamos ver quem é o meu companheiro de insônia...

E, com muito cuidado, espreitou pela janela de modo que não fosse percebido.

Efetivamente, um vulto negro, que parecia de homem pela estatura, acabava de saltar a grade e se dirigia para um maciço de verdura, justamente por debaixo das janelas de Cecília.

O marujo sentiu o coração agitar-se-lhe por dentro, como se quisesse saltar-lhe pela boca. Tremeram-lhe as pernas, faltou-lhe quase a respiração, e a pele crispou-se-lhe toda em um calafrio de febre.

O vulto chegara à janela de Cecília e roçara levemente a ponta da bengala pelas gelosias fechadas.

O marinheiro espiava, com uma ansiedade crescente. À semelhança dos náufragos que, sentindo escaparem-lhe os meios de salvamento, vão refugiando a esperança em tudo que lhes acode à fantasia, ele contava ainda poder, no fim de tudo aquilo, justificar a inocência de sua querida ama.

Mas, ao quarto sinal do vulto misterioso, abriu-se discre­tamente uma das folhas da janela, e a cabeça encantadora de Cecília assomou à luz melancólica das estrelas.

Conversaram os dois, mas Tubarão não conseguiu ouvir mais que um confuso sussurrar de vozes, perdido no sonolento rumorejo da noite. Ao fim de meia hora fechou-se de novo a janela e o vulto encaminhou-se cautelosamente para o portão.

O marinheiro havia já colocado à cinta a navalha que lhe dera o comandante. Abriu a porta e, colando-se à parede, ganhou, a passo de gato, o jardim, pelo lado contrário ao que seguia o vulto.

Só o conseguiu avistar já na rua, ao dobrar de uma esquina. Tubarão correu para ele, mas, antes de alcançá-lo, saíram-lhe ao encontro dois homens.

— Que deseja daquela pessoa? perguntou-lhe um destes com acento muito espanhol.

— Quero pôr-lhe a mão!

— Pois entenda-se conosco!

O marinheiro respondeu desta vez com um formidável arranco de corpo inteiro, que atirou por terra os dois sujeitos. E lançou-se de novo a perseguir o vulto do jardim.

Este, porém, havia aproveitado o conflito para fugir, e o marinheiro não conseguiu mais apanhá-lo.

Entretanto, os dois outros homens seguiam de perto Tuba­rão, a falar em voz baixa, e a bater nas pedras da rua com as suas grossas bengalas.

O marinheiro, quando se convenceu de que já não alcan­çaria o fugitivo, parou, à espera dos dois que vinham atrás.

Estes pararam por sua vez, e suspenderam a conversa. Só se puseram de novo a caminhar quando o marinheiro caminhou também.

— Ora raios! bradou Tubarão, avançando de um pulo sobre eles. Já me vão azedando os fígados! e num relance segurou-os a ambos, pelo gasnete e atirou-os de cambolhada contra a parede.

Os dois cambalearam por algum tempo, um desabou afinal sobre a calçada e o outro, sacando uma faca, investiu contra o marinheiro.

— Ah! Ele é isso? rosnou este, desviando o corpo. Pois manda de lá tua faquinha, que te quero dar a resposta!

O outro, porém, em vez de mandar a faca, limitou-se a responder:

— Hombre! siga su camiño, y no me embrome usted!

— Ainda bem! resmungou Tubarão.

E afastou-se lentamente, com ar de desprezo.

Também já era tempo, porque o céu principiava a vestir os prenúncios da aurora.

Tubarão entrou em casa apoquentado pelos próprios ra­ciocínios.

— É o demo! considerava ele. Se a patroa dá para toli­ces, eu cá faço o que me manda a consciência! se descobrir que ela engana ao meu comandante, coso-a com uma naifada e levo o pequeno ao patrão! Ora, aí está!

— Mas como diabo podia aquilo acontecer!... reconsi­derava ele depois, já estendido na sua estreita cama de lona. Aquela criatura que parecia uma santa!... Ah! peste de mulheres! Fosse lá um homem entender semelhantes de­mônios!

E quando Tubarão se ergueu no dia seguinte, sem haver dormido, tinha já a sua resolução tomada.