O plano de Pedro Ruivo era atemorizar Cecília, ameaçá-la com um escândalo, obrigá-la a ceder pelo medo.
Aquele homem, que desprezara a ocasião em que a bela rapariga lhe franqueara a alma, impregnada de todos os perfumes da inocência e do amor, sentia-se agora estimulado brutalmente por um árdego desejo de possuí-la. A mesma fisionomia, os mesmos olhos, a mesma boca, o mesmo cabelo; tudo que dantes lhe parecia nela vulgar e sem interesse, agora ressurgia defronte do seu desejo por um prisma novo de sedução. A resistência de Cecília, o nenhum caso que ela mostrou pela aproximação de Pedro Ruivo, a sua desdenhosa indiferença, tão sincera e legítima quanto fora o primitivo arrebatamento, do seu amor, caíram sobre o coração do perjuro, espremendo-lhe de dentro todas as fezes da maldade.
"Se não consentires em falar comigo, escreveu ele, depois de outras tentativas, farei público o segredo de nosso filho; contarei a história do nosso amor e atrairei sobre tua cabeça a cólera de teu marido. Amo-te, já o sabes perfeitamente; não é meu filho o que me arrasta para ti, és tu própria! Se me quiseres atender, terás em mim um escravo submisso; se não quiseres, podes então contar com um inimigo implacável. Escolhe! Amanhã à noite estarei debaixo de tua janela; se me não apareceres, juro-te que farei o que disse. Não tens pretexto de recusa: teu marido está em caminho para o Brasil; previno-te de que qualquer cilada contra mim urdida, recairá sobre ti, que és a mais compromissível nesta empresa."
Essa ameaçadora carta produziu o efeito há tanto ambicionado pelo Ruivo: Cecília teve medo; teve medo e foi à entrevista, como já sabe o leitor.
— Que deseja o senhor de mim? perguntou ela com voz trêmula, ao aparecer entre as folhas da janela mal aberta.
— Desejo dizer-te o que sinto por ti; o que sofro; contar-te os meus tormentos e pedir-te que me ames, que te compadeças do meu desespero e da minha dor!
— Era só isso o que desejava?...
— Não me trate com essa frieza, Cecília; lembra-te da passada ventura; lembra-te dos nossos primitivos amores!
Cecília não respondeu.
— Não me dás então uma palavra?! insistiu Pedro Ruivo ao fim de uma pausa.
— Que lhe hei de dizer? Nada tenho absolutamente para lhe comunicar... O senhor ameaçou-me de perturbar a paz de minha casa, de envergonhar-me aos olhos da sociedade, de tornar conhecida a única falta que cometi, de incompatibilizar-me enfim com meu marido, se eu não consentisse em lhe falar. Pois bem: eu tive medo de suas ameaças e cá estou. Se com isto não se dá por satisfeito, faça então o obséquio de dizer o que ainda quer de mim; mas tenha a bondade de apressar-se porque este ar frio da noite pode causar-te mal...
— Bem! visto isso, preferes que eu publique o nosso segredo, não é verdade?! Queres que amanhã todos saibam que sou o pai de teu filho?! Pois eu te farei a vontade!
— Valha-me Deus! disse Cecília, deveras impacientada. Como posso preferir semelhante coisa, se cá estou; se consenti, bem a contragosto, em falar-lhe a estas horas e nestas circunstâncias?!
— Isso não basta! Tu bem sabes que o verdadeiro amor não se contenta com tão pouco! Minha ameaça continua de pé, se me não deixares aproximar de ti!...
— Nesse caso, respondeu Cecília, com um gesto de resignação, o remédio que tenho é abaixar a cabeça e sujeitar-me à sua vingança. O senhor dirá o que quiser, fará o que bem entender! Pela minha parte, lancei mão do que estava dignamente ao meu alcance para evitar uma calamidade; nada consegui, paciência! Não me posso queixar de ninguém!
— Não! deves queixar-te de ti mesma, porque com uma palavra tua, com um sorriso, eu cairia a teus pés, escravo e submisso.
— Se ainda tem alguma esperança a esse respeito, pode perdê-la. Eu não me desviarei dos meus deveres.
— Cecília, reflete um instante!
— É justamente porque muito refleti sobre isso, que me sinto agora tão segura na minha resolução.
— És cruel!
— Não, sou razoável; nada lucraria em esconder uma falta com outra maior. Em vez de uma teria duas! Pois o senhor que me não perdoa a única culpa que cometi em minha vida, e essa porque fui crédula e inocente, quanto mais se possuísse o segredo de uma outra, perpetrada agora, quando já conheço os homens e tenho alguma experiência das coisas!...
— Sim, disse Pedro Ruivo, dominado pelas palavras de Cecília; mas é que as duas faltas se destruiriam mutuamente, e eu passaria do papel de acusador ao de cúmplice, tendo, por conseguinte, tanto empenho quanto tens tu em esconder o nosso mistério...
— Não! prefiro a sua raiva, a sua guerra, a toda e qualquer cumplicidade entre nós dois!
— Não me amas então?
— De certo que não!
— Nesse caso entrega-me meu filho!
— Não tenho em meu poder nada que lhe pertença!
— Cecília, é perigoso zombar dessa forma com a minha cólera!
— Faça o que entender!
E Cecília retirou-se, fechando a janela.
— Escuta! disse ainda Pedro Ruivo, mas não recebeu resposta alguma. O jardim havia caído de novo no triste silêncio da noite; só se ouvia o confuso sussurrar de algumas árvores que se espreguiçavam na sombra.
Como sabe o leitor, Tubarão presenciou aquela cena, sem contudo ouvir o sentido da conversa dos supostos namorados; e perseguiu Pedro Ruivo, tendo de bater-se com os dois sujeitos que a este guardavam as costas.
No dia seguinte o marinheiro levantou-se da cama, sem ter dormido, saiu de casa antes que os mais acordassem. Sentia-se muito acabrunhado: a decepção que lhe causaram as cenas da véspera empolgava-lhe o coração com uma formidável mão de ferro.
— Não há que hesitar! pensava o pobre homem na sua brutal compreensão do dever. O remédio que tenho é despachá-la e levar o pequeno ao comandante!
Mal porém assentava nesta deliberação, logo lhe assistia um profundo desgosto de não poder justificar de qualquer modo o procedimento de Cecília e convencer-se afinal da sua inocência.
Neste estado de hesitação, entrou em uma hospedaria para almoçar, certo de que, durante o almoço, se decidiria por qualquer partido. Tubarão, como todo o homem do mar, não tinha o hábito de raciocinar andando pela rua. Só podia concentrar as suas idéias em pleno isolamento, ou assentado no fundo de alguma taverna, com os cotovelos fincados à mesa e a cabeça segura por ambas as mãos. Às vezes era-lhe até necessário fechar os olhos como se só quisesse olhar para dentro do cérebro, sem esperdiçar nenhuma partícula da sua atenção com os objetos externos.
Foi o que ele fez. Meteu-se no fundo de uma casa de pasto e pediu de comer.
— Verdade ... verdade... principiou no seu raciocínio; eu ainda não sei bem do que se trata... Quem sabe lá se a mulher do comandante já precisa ser castigada ou precisa ser simplesmente aconselhada?... Sim, porque no fim de contas, ela apenas conversou com o tal pelintra e não o recebeu em casa. Ora, se eu for logo às do cabo, posso talvez ser precipitado; o melhor então é espreitar mais algum tempo, porque se houver qualquer coisa, eu então saberei o que faça!...
Nesse ponto, Tubarão ouviu perto de si uma voz que lhe chamou logo a atenção. Era nada menos, que a voz de um dos sujeitos a quem ele esbordoara na véspera.
— Olá! disse consigo o marinheiro, procurando ocultar-se o melhor possível às vistas do que falava. Não pensei encontrá-lo tão depressa! Ouçamos o que canta este melro...
Era com efeito um dos homens de Pedro Ruivo, que acabava de entrar em companhia de um súcio, e ficara assentado de costas para o marinheiro.
Traziam a conversa principiada de fora, e versava esta justamente sobre os acontecimentos da véspera.
— Mas enfim? perguntou o que ainda não era conhecido do Tubarão. Que quer você de mim?...
— Quero que venha comigo; eu já não me fio naquele espanhol! É um chorincas! Se não fora ele, afianço que o sujeito não me saía tão fresco da brincadeira!...
— Mas então vocês não lhe fizeram nada?!...
— Pois se lhe estou a dizer que o espanhol era o único que estava armado e, em vez de sangrar logo o tratante, pôs-se a remanchar e deixou-o ir como veio!...
— Ora, isso contado não se acredita! Eu não o deixaria sair, sem provar o feitio cá da menina! disse o outro com presunção, a bater sobre a algibeira em que guardava a sua faca.
E perguntou, depois de uma pausa:
— Para quando então precisam vocês de mim?!...
— Para depois de amanhã.
— Bem. Nós nos podemos reunir aqui mesmo ou em casa de Pedro Ruivo.
— Pedro Ruivo?... disse consigo o Tubarão. Ora espere!...
E ficou a pensar. Lembrava-se perfeitamente de ter já ouvido muitas vezes o nome de Pedro Ruivo, quando alguns conhecidos da família de Cecília falavam a respeito desta, com referência ao passado.
— É o tal sujeito que esteve para casar com ela... concluiu o marinheiro, depois de muito puxar pela memória. Pretenderá persegui-la ainda? Maus raios o partam, se são essas as suas intenções, porque lhe torço o pescoço enquanto o demo esfregar um olho!
E só se retirou quando os dois da outra mesa haviam já saído.
Ao chegar à casa foi logo se encaminhando para a sala de jantar, onde Cecília costumava trabalhar àquelas horas. E com efeito ela lá estava, assentada a uma mesinha de costura, aparentemente toda preocupada com o serviço que tinha em mão. O marinheiro parou à porta, sem ser sentido pela patroa.
— Quem pode lá acreditar que aquilo seja uma pecadora!... disse ele consigo, a contemplar a casta figura da rapariga. Ela nunca lhe parecera tão senhora de si, tão tranqüila. Tinha a fisionomia fresca e louçã como quem vive sem pesos na consciência.
O filhinho brincava a seus pés, entre um montão de alegres destroços; bonecos decepados, um pedaço de urna, espada de pau, um tambor inválido e uma cornetinha já sem feitio.
— A patroa dá licença? disse da porta o criado com a sua voz rude de marujo.
— Ah! é você, Tubarão? Entre. Como está?
— Eu, graças à Virgem, não vou com mau vento! E vossemecê?
— Bem obrigada, respondeu Cecília, estalando um suspiro.
E como Tubarão ficasse calado:
— Você saiu hoje muito cedo...
— É verdade, resmungou o marujo, coçando a cabeça, sem encontrar um modo de principiar o que desejava dizer. É verdade...
— Que tem você hoje, Tubarão? Estou o estranhando...
— São cá coisas. Eu não preguei olho esta noite!...
— Hein?! perguntou Cecília com sobressalto.
— É, respondeu o outro; passei-a em claro e de pé!...
— De pé?! No seu quarto naturalmente?...
— Sim; à minha janela...
— À sua janela, mas...
— Das onze às três da madrugada...
— Ah! fez Cecília, sem levantar os olhos.
E os dois ficaram mudos, defronte um de outro. Ela principiou a coser com mais empenho, porém a agulha tremia-lhe nos dedos.
— Vou escrever ao patrão!... disse afinal o marinheiro.
— Vai escrever? exclamou a senhora, erguendo-se e deixando cair no chão a costura. Mas que tem você para dizer ao capitão?! Fale com franqueza!
— Eu vi tudo! explicou secamente o marinheiro.
— E por que então não veio ao meu socorro?! Se soubesse o serviço que me teria prestado!
— Como?! O serviço?... vossemecê então não estava por seu gosto a aturar aquele sujeito de ontem?!...
— Oh! Deus sabe por que o aturei!
— E por que foi?...
— Infelizmente não lhe posso dizer nada, mas juro-lhe que sou incapaz de faltar com meus deveres de esposa!
— E consente que um homem penetre fora de horas em sua casa, patroa?... Ah! Isso não se faz!
— Em minha casa, não!
— Mas no seu jardim!...
— Oh! não me crimine por amor de Deus! Juro-lhe que não sou culpada!
— Sim! eu acredito, mas...
— As aparências acusam-me; bem sei! repito-lhe porém que sou incapaz de enganar meu marido!
— Que quer dizer então a visita daquele homem?... Desculpe vossemecê, mas eu tenho de dar contas ao comandante! Não! lá o que me está em confiança há de ser vigiado! Se aquele sujeito é um velhaco, eu o afasto com dois murros; se ele aqui veio autorizado pela dona da casa, então é com ela que me tenho de haver!
— Que quer dizer você?
— Quero dizer que eu aqui represento a pessoa do meu patrão! Se ele é atraiçoado, tenha vossemecê paciência, mas eu o vingarei!
— Uma ameaça?! Mas...
— Não tem mais, nem menos! É pôr em pratos limpos o que há! Cartas na mesa! Ou então faço justiça a meu modo!
— Meu Deus! exclamou Cecília, segurando a cabeça. Que humilhação! que vergonha! E, vendo que o marinheiro parecia firme nas suas ameaças, procurou abrandá-lo com ternura. — Mas, Tubarão, reflita, lembre-se de que há coisas, segredos, que se não podem contar assim tão facilmente!...
— Uma mulher honesta não tem segredos para seu marido!
— E se for um segredo que venha do tempo em que eu ainda não era casada?... Acaso me poderão agora responsabilizar por ele?...
— Conforme!... respondeu Tubarão, inalterável. Em todo o caso não admito que se engane ao meu comandante! Se vossemecê não me quer dizer o que há, Pedro Ruivo há de dizê-lo à força!
— Ah! exclamou Cecília, empalidecendo. Estou perdida! Sabe tudo! murmurou ela.
— Que há entre Pedro Ruivo e vossemecê, D. Cecília?!
— Oh! se sabe tudo, não me obrigue a corar em sua presença! Poupe-me essa vergonha!
O pequenito levantara-se atraído por aquela cena e olhava espantado para Tubarão.
— Eu não sei coisa alguma! respondeu este. Fale vossemecê!
— O meu Deus! Mas que quer que lhe diga?!...
— Quero que me fale com franqueza ou comunico o que sei ao comandante. Se vossemecê for inocente, não lhe farei mal algum... pode ficar descansada...
— E jura-me, Tubarão, que, se eu lhe provar a minha inocência, poderei contar com o seu auxílio para fugir à perseguição de Pedro Ruivo?...
— Palavra de marinheiro!
— Nesse caso vou contar-lhe tudo.
E Cecília narrou francamente os fatos de sua vida, já sabidos pelo leitor. Tubarão ouviu-os com interesse e, terminada a narração, corriam-lhe as lágrimas dos olhos.
— Com mil raios! exclamou ele afinal; há muito homem ruim por este mundo!
E, tendo refletido um instante, perguntou se Gregório não era então filho do comandante.
— Não! respondeu Cecília; não é.
— Raios me partam! que não sei o que faça! A senhora devia ter declarado isso logo, no momento de casar!...
— Faltou-me a coragem, meu amigo...
— Agora, ou hei de mentir ao patrão, ou tenho de acusá-la; o que deveras me faz pena, porque no fim de contas, o culpado é aquele maroto! Ah! ele é que devia receber uma boa lição!... E há de recebê-la ou não sou eu quem sou!
Cecília, quando o Tubarão se despediu, recolheu-se ao quarto muito acabrunhada. À noite apareceram-lhe febres, e no dia seguinte não se pôde levantar da cama.
Entretanto, o marinheiro embalde procurou encontrar-se com Pedro Ruivo. Este nem só faltara à entrevista de que falaram os dois homens da taverna, como não aparecia em parte alguma; só no fim de quinze dias constou que ele já não estava no Porto.
— O velhaco parece que adivinhou! disse consigo o Tubarão, e adiou para mais tarde o que reservava para o Ruivo. Mas não pôde ficar tranqüilo; Cecília continuava doente, desde o terrível dia em que o rude marinheiro lhe arrancou a confissão da sua falta.
— Fui um bruto! considerava ele; devia ter feito a coisa de outro modo! Fui logo às do cabo!
E, para penitenciar-se, desfazia-se em desvelos com a enferma. A moléstia, porém, não cedia, e o médico de Cecília principiava a desanimar.
Assim correram dois meses e meio, até que a chegada inesperada do comandante veio transformar completamente a situação. Leão Vermelho trazia consigo uma carta anônima em que lhe patenteavam as culpas da mulher. Pedro Ruivo cumprira a sua promessa: Cecília estava denunciada. O comandante, que vivia já sobredesconfiado com a primeira carta surpreendida nas mãos da esposa, acabou por se julgar traído e ultrajado, principalmente à vista dos sobressaltos da acusada, quando ouviu falar do crime em que era suspeita, e à vista dos embaraços de Tubarão, quando o amo o interpelou sobre o que se passara com Cecília na sua ausência.
— És um canalha! bradou-lhe Leão Vermelho, quando percebeu que Tubarão não lhe contava tudo o que sabia.
— Serei, com mil raios! mas não abro a boca para dizer uma palavra!
— És então o cúmplice daquela miserável?!
— Não! sou o cão que lhe guarda a porta! Ninguém entrará ali para lhe fazer o menor mal!
Ouviu-se então uma gargalhada estranha. E o vulto de Cecília, pálido e transformado, assomou à porta do seu quarto.
Parecia vir da sepultura.
Leão Vermelho recuou assustado, e Tubarão olhou com grande espanto para a figura esquálida, que acabava de surgir no esvazamento da porta.
Cecília parecia um espectro; a magreza extrema secara-lhe as cores provocadoras do rosto; seus olhos bailavam nas cavadas órbitas, sinistros na travessa inconsciência da loucura; os cabelos caíam-lhe desgrenhadamente pelo rosto e pelas costas, dando-lhe a expressão fantástica de uma fúria de Góia; o peito, despojado pela moléstia, aparecia na sua profunda palidez por entre os rasgões da camisa, e os braços esqueléticos moviam-se vagarosamente, quase sem forças para suportar o próprio peso.
Os dois homens sentiram-se aterrados à vista daquela aparição inesperada. O pequenito, ao encarar com o medonho espectro da mãe, abriu a chorar de medo e a segurar-se nas pernas do marujo.
Cecília, entretanto, continuava a rir estranhamente e a fazer para os dois momices ininteligíveis. O marinheiro cobriu o rosto com as mãos e abafou os soluços; só se lhe via arfar o largo peito, debaixo das grossas barbas rodadas pelo pranto. O comandante passeava os olhos de um para o outro, como se lhes perguntasse a ambos o que haviam feito da sua felicidade. Depois apoiou-se à parede e caminhou tropegamente para o quarto; o pequenito quis acompanhá-lo, mas ele o desviou com a mão, sem voltar o rosto.
Cecília apontou para o filho e soltou uma nova risada. Então o marinheiro tomou ao colo a criança e começou a ameigá-la, como fazia dantes nos tempos mais felizes; Gregório só se consolou de todo com a promessa de que o marujo lhe contaria a história da sereia que furtava os meninos endiabrados. Mas o pobre homem tinha de interromper de vez em quando a sua narrativa, porque um áspero novelo lhe tolhia a voz na garganta.
— Você está chorando?... perguntou o pequeno, muito admirado.
— É que tenho pena dos meninos que a sereia carrega ...
— Coitadinhos! disse aquele interessado na história, e pediu ao marujo que lhe cantasse certa modinha de que ele gostava muito.
— Não! hoje não se canta!
Mas o pequeno insistiu, chorou; e o marinheiro afinal, para não ser ouvido pela patroa, carregou com ele para o terraço e principiou a cantar a mesma loa com que procurava antigamente distrair Cecília. A voz rude e grossa tremia-lhe na garganta. O pequenito, assentado nas pernas do marujo, olhava para este embebido naquela toada monótona, com que tantas vezes adormecera.
Quando Tubarão acabou, soluçando, a última estrofe da cantiga, deu com a louca, que ali fora atraída por uma vaga reminiscência das suas tardes de verão. Essa não chorava.
Veio o médico mais tarde e declarou que a doente precisava sair daquela casa. Tubarão não sabia o que fazer; procurou falar ao amo; este, com um formidável grito, exigiu que o deixassem em paz, depois tornou a fechar a porta do quarto e não apareceu a mais ninguém nesse dia.
Em tais apuros, saiu de casa o marinheiro para providenciar sobre o que urgia, quando, ao dobrar uma esquina, deu cara a cara com Margarida, que passeava pelo braço do marido.
— É o Tubarão! exclamou o conde, quando o marinheiro se aproximou dele.
— Creio que sim! porque eu mesmo já não sei a quantas ando!
— Você já não mora em companhia de Cecília? perguntou Margarida.
— Pois é por causa dela mesma, coitada! que ando nesta dobadoura...
E o marinheiro em poucas palavras contou o que havia.
— Conde, depressa! gritou a boa senhora; corramos a socorrer a pobre Cecília!
O conde deu-lhe o braço e seguiram todos para a casa de Leão Vermelho.
Margarida havia chegado na véspera ao Porto, e tinha de partir daí a três dias. O médico aconselhara ao marido que a fizesse viajar, e o conde, que adorava a mulher, tremia só com a idéia de que lhe voltassem a ela os antigos padecimentos. Mas desta vez era necessário um clima mais quente, e, como Margarida não se dava bem com os ares do sul da Itália, ficara resolvido seguirem para o Brasil.
O conde chamou um carro que passava na ocasião, e daí a pouco eram conduzidos pelo marujo ao lado da louca. Cecília não os reconheceu, ou pelo menos não mostrou o menor interesse em tornar a vê-los. Leão Vermelho atirou-se nos braços do amigo, e então desabafou em lágrimas o desgosto que se lhe havia acumulado no coração.
— Sou um desgraçado! disse ele, com a cabeça no peito do conde; imaginei que o casamento me traria a paz na velhice e a consolação para as injustiças que recebi de toda a parte, quando aliás só me serviu ele para carretar novos dissabores e para me amargurar de todo o resto da existência!
O conde interrogou por vários modos o comandante, mas este não lhe quis dar explicações. Ficou decidido que Cecília entraria para uma casa de alienados e passaria, quando melhorasse, para o convento de Santa Clara; quanto a Gregório, a condessa o reclamou para si e encarregou-se de educá-lo.
Daí a três dias seguiam o conde, a esposa e o pequenito para o Brasil; Leão Vermelho, acompanhado do seu fiel marinheiro, tomava passagem para as Antilhas espanholas, onde tencionava especular no comércio, e a pobre louca recolhia-se ao hospital.
Gregório demorou-se três anos em poder da condessa, e durante esse tempo recebeu a mais desvelada educação que se podia proporcionar a um filho querido. Margarida tomou-lhe verdadeiro carinho e só consentiu em separar-se dele, quando deu à luz a única filha que teve, Maria Luísa, aquela bela menina loura, que no começo desta narrativa costurava à luz do candeeiro de alabastro no palacete da Tijuca.
Gregório passou então para o colégio do barão de Totpheus, onde cursou os seus primeiros estudos. A condessa, mal convalesceu do parto, voltou com o marido a Portugal, deixando tomadas todas as providências necessárias para que no Brasil nada faltasse ao filho adotivo, e sendo ao lado deste substituída por uma sua amiga, D. Florentina de Aguiar.
E agora, que Gregório está aboletado perfeitamente no colégio, com o seu belo enxoval de roupas brancas, os seus livros novos, a sua cama de ferro, a sua mesinha de cedro e a sua pequenina estante de madeira pintada, deixemos que ele se desenvolva e se vá preparando para entrar mais tarde nas cenas que o esperam; por enquanto, vamos acompanhar o Leão Vermelho, cuja vida transcendente tem de explicar muito dos episódios ocorridos nos passados capítulos e muitos episódios ainda não conhecidos do leitor.