Pedro Ruivo, chegado que foi ao hotel, tratou logo de saber reservadamente como se chamava o hóspede que ele vira a conversar no Passeio Público com o comendador Portela.

— João Rosa, disseram-lhe.

O embusteiro dirigiu-se então ao gerente da casa e expli­cou-lhe que a pessoa daquele nome mandava que lhe entre­gassem ali uma pequena caixa de ferro, que estava no seu quarto.

— Vá você mesmo buscá-la, respondeu o gerente. É aquele o quarto.

E mostrou uma porta ao fundo de um corredor sombrio e mal arejado.

— A chave! reclamou Pedro Ruivo.

— A chave? pois você não a traz? O hóspede desse quarto nunca a deixa no hotel...

Pedro Ruivo deu aos diabos a sua má estrela. Queixou-se de João Rosa, do gerente, de si próprio, e afinal desceu muito desapontado as escadas e colocou-se à porta do hotel, para ver se mariscava alguma coisa.

— Ora bolas! dizia ele consigo; quando um diabo dá para caipora é isto que se vê!...

E reconhecendo João Rosa em um sujeito que acabava de entrar, apartou-se, receoso de que descobrissem a sua tenta­tiva de há pouco. Todavia ninguém no hotel notou sequer a rápida entrada e a imediata saída daquele. Fora simples­mente buscar o cofre ao seu quarto. Pedro Ruivo estava assentado ao canto, quando o viu passar todo atarefado a sobraçar o precioso cofre.

— Ali vai o meu tesouro! resmungou o gatuno e, ferido por uma idéia súbita, levantou-se rapidamente, tirou o chapéu e disse ao Rosa com uma doce voz de bom homem: Ó patrãozinho! dê esse carretinho a ganhar à gente! V. S. vai aí a molestar-se...

João Rosa hesitou a princípio, mas julgando bem do peso do cofre pela má impressão que principiava a sentir no braço, perguntou ao carregador quanto queria para levá-lo até à rua Direita e, depois de ajustar, passou-o para as mãos do Ruivo.

Quem visse o modo simples pelo qual este recebeu aquele objeto; o ar modesto com que ele, de pé, esperava humilde­mente que o outro abrisse caminho, não seria capaz de suspei­tar nem de leve das suas intenções.

O Rosa seguiu adiante, Ruivo acompanhou-o a pequena distância; mal porém tinham feito uns quarenta passos, já o último se havia enfiado pela porta de um café, que ficava na esquina, e saído pela porta da outra rua, enquanto Rosa mais adiante o procurava com a vista.

Pedro Ruivo ganhou a primeira viela da Cidade Nova, meteu-se no primeiro bonde que passou, e seguiu para o Rio Comprido. Só parou defronte da antiga estalagem da Avenida Estrela. Ele aí não conhecia ninguém, mas o aspecto do lugar pareceu-lhe magnífico para um segredo. Entrou.

A Avenida Estrela é uma velha chácara situada ao sopé de umas montanhas que ficam à esquerda de quem sobe o Rio Comprido. Há na entrada um grande portão de ferro, talhado entre um extenso gradeamento, onde de espaço a espaço avultam colunas de pedra e cal, quadradas e encimadas por uma espécie de tulipa aberta para o céu. Algumas dessas colunas despiram já a camisa de estuque e mostravam a cor da pedra e a cor do barro; em outras se nota a ausência do capitel e das cimalhas.

Mas quem entra na Avenida Estrela esquece-se de tudo isso, arrebatado pela exuberante vegetação que a cerca. De todos os lados a mesma pujança e a mesma opulência da natu­reza! Os montes afogam-se em um oceano de verdura; as árvores amontoam-se desde longe, acumuladas umas sobre outras, formando matizes admiráveis e planos que se vão amortecendo, à proporção que se afastam de nossos olhos, até se confundirem com o violeta das longínquas serras, lá no extremo do horizonte, por entre os vapores do céu.

Principia a chácara por um renque de palmeiras, que parecem brotar dos maciços cercilhados da murta e das com­pactas moitas de margaridas. Esses maciços formam pequenas ruas, que se entranham pela chácara e vão dar aos tabuleiros de hortaliça e às valas de agrião. Depois é que surge a velha escadaria de pedra rajada, e afinal o casarão antigo, misterioso e triste como um medieval castelo abandonado.

Pedro Ruivo enveredou-se por uma daquelas ruas e cami­nhou à toa por entre a verdura. Quando se julgou em lugar seguro, pousou no chão o cofre e principiou a contemplá-lo, assentado ao seu lado.

— Que estaria ali dentro?... papéis sem dúvida! mas papéis que valiam pelo menos um conto de réis para o comen­dador Portela!...

E Pedro Ruivo, sem conseguir domar a fantasia, principiou a fazer soberbos castelos de fortuna, entre, os quais se sonhava nadando em muito dinheiro. Era impossível que ali só esti­vessem os tais documentos que sobressaltavam o comendador! Com certeza havia muito mais! O cofre não era tão peque­no!... O pior porém é que o Ruivo não o conseguia abrir: as quatro faces lisas daquela estranha caixa não apresentavam o menor sinal de fechadura, não davam o menor indício por onde devia ser ela aberta; eram quatro lâminas de aço, formando um perfeito paralelepípedo. Havia ali com certeza algum segredo sutil, alguma mola, com o qual o gatuno não atinava. E o Ruivo possuído inteiramente pela sua presa, olhava-a por todos os lados e experimentava-lhe todos os cantos, sem conse­guir descobrir coisa alguma.

A noite formou-se de todo. Uma bela noite luminosa, cheia de estrelas, Pedro Ruivo continuava a tatear o cofre, quando de repente sentiu fugir-lhe debaixo dos dedos a extremidade do ângulo de uma das lâminas.

— Ah! exclamou ele sem poder conter a alegria.

Estava tudo descoberto! Tudo, até o próprio Ruivo, porque o seu grito chamara a atenção do estalajadeiro, Papá Falconnet, que naquela ocasião passeava pela chácara a refazer-se com o fresco da noite.

Papá Falconnet era um alegre velho francês de setenta e tantos anos, porém ainda muito senhor de todas as suas faculdades físicas e intelectuais. Homem de pouca estatura, grosso de ombros, pulsos rijos, cabeça perfeitamente coberta de cabelos grisalhos, curtos e crespos, bigode e barba à Cavai­gnac, olhos vivos, pescoço reforçado e dentes ainda vigorosos. Tinha certa vaidade do seu vigor. "Pois olhem que não foi porque não aproveitasse eu bem a minha mocidade!" exclamava ele a quem lhe elogiava os seus belos setenta e dois anos. E afiançava sempre que, antes de engolir os trinta e tantos que tinha no Rio de Janeiro, já havia gramado vinte em Paris, dez na Bélgica e outros dez em Bordeaux; e que durante todo esse período só duas coisas conhecera que verdadeiramente o deixaram assombrado: Era Napoleão Bonaparte e a portentosa natureza do Brasil.

Falconnet, nascendo com o século, palpitara na sua moci­dade sob a impressão dos dramas napoleônicos e nunca mais pudera fugir à romântica influência desse tempo. Ainda agora, quando alguém lhe falava de Austerlitz, de Marengo, Ratisbonne ou de outra qualquer vitória do feliz capitão, os olhos enchiam-se-lhe de entusiasmo; erguia a cabeça e, com um braço no ar, principiava ele a cantar a Marselhesa.

Os hóspedes tratavam-no todos com liberdade amiga; batiam-lhe no ombro e perguntavam-lhe: "Como iam os seus amores". Falconnet ria, fingia zangar-se, ralhava, mas daí a pouco se metia de troça com os rapazes e não se lembrava mais de que tinha o triplo da idade de cada um deles.

Pois foi esse homem de setenta e tantos anos quem desco­briu Pedro Ruivo escondido por entre as árvores da alameda.

— Que faz você aí?! perguntou ele, aproximando-se.

— Estou a descansar, patrão... disse o gatuno, procurando esconder o cofre.

— Pois venha descansar cá para dentro, aconselhou o velho, aproximando-se mais, disfarçadamente.

E quando o Ruivo ia abrir carreira por entre o mato, já o francês ganhara de um salto a distância que os separava e o empolgava pelos braços. Não foi preciso sustê-lo durante muito tempo, porque apareceu logo o hortelão, que estava perto, e pouco depois os hóspedes a cujos ouvidos chegaram os gritos do hoteleiro.

Mas, na ocasião em que conduziam Pedro Ruivo para a casa, deu este um arranco das mãos que nessa ocasião o segu­ravam, e ganhou o mato, pelo lado das montanhas.

— Não o deixemos fugir! gritou um dos rapazes que o perseguiam. Anglada! Augusto! Afonso! Por aqui! Cerquem o gatuno!

E os rapazes precipitaram-se no alcanço de Pedro Ruivo.

Se o leitor, em vez de ler simplesmente o que vai escrito, ouvisse também o metal da voz que gritou, ficaria sabendo que ali estava Gregório.

Pedro Ruivo continuou a subir de carreira o monte. Mas o cofre dificultava-lhe a fuga; as pernas principiavam-lhe a tremer, o cansaço tomava-lhe a respiração, e ele, já sem forças, ia render-se, quando descobriu a gruta.

As pessoas que conhecem a Avenida Estrela sabem a que gruta nos referimos, e, se o leitor a não conhece, ficará fazendo dela idéia completa pela descrição que mais adiante lhe diremos.

Pedro Ruivo ocultou o cofre ali, em um canto sombrio. Era tempo, porque caiu logo prostrado. A idéia, porém, de que a sua presença nesse lugar podia conduzir a atenção para o objeto que ele acabava de esconder, obrigou-o a afastar-se, com dificuldade, até chegar a um ponto, onde se assentou à espera dos perseguidores.

Gregório, que ia à frente dos outros rapazes, ao ver a calma do perseguido e o ar triste de miséria e fraqueza espa­lhado por todo ele, não pôde conter uma desagradável impres­são de vergonha.

— Pois era para perseguir aquele desgraçado, que se fazia tanto alarme?!...

— Não se fie muito!... sentenciou o Anglada, a procurar as suas lunetas que lhe haviam escapado no furor da carreira.

O Augusto e o Afonso tomaram a deliberação de encarar o episódio pelo lado ridículo e abriram a rir ao mesmo tempo.

Entretanto Gregório se aproximara do gatuno e o exami­nava com muito interesse. Aquela figura triste e repugnante enchia-o de estranha compaixão. Sem saber porque, sentia-se atraído para aquele destroço de homem, que lhe parecia repre­sentar ali tudo o que há de doloroso e resignado na miséria humana.

— Com efeito! considerava ele; quanto não haverá de extraordinário na vida deste homem!... que obscuras circunstâncias não o teriam arremessado a tal extremo?... que não lhe teria sucedido para chegar a todo este aviltamento?... Será simplesmente um gatuno?... será um grande libertino ou será uma pobre vítima de mil infortúnios?!...

E Gregório, ou fosse por impulso do seu temperamento, ou fosse por qualquer outro motivo, sentiu-se sumamente inte­ressado pelo miserável a quem há pouco perseguia; tanto que, depois do seu longo exame, lhe perguntou amigavelmente o que viera fazer ali.

Pedro Ruivo sacudiu os ombros.

— Em que se ocupa o senhor? Onde mora? interrogou Gregório.

— Eu não me ocupo e não moro, respondeu o vagabundo.

— E então como vive? insistiu o rapaz.

— Não vivo, respondeu o outro, com um acento de profun­da tristeza.

— E por que não procura trabalhar?... Por que se não ocupa em qualquer serviço?...

— Porque me falta a coragem para tanto... Eu sou um desgraçado. Estou completamente perdido!

— Entretanto não me parece um homem inteiramente sem habilitações...

— Ah! isso são modos de ver... Todo homem tem habi­litações, desde que a tal se disponha. Eu podia dar um bom saltimbanco, mas o maldito reumatismo não me deixa senhor de minhas pernas...

— Por que então não se arranja aí em qualquer coisa? Hoje no Rio de Janeiro é muito fácil ganhar a vida...

— Espero tirar um prêmio na loteria...

— Não tem parentes?

— Tenho.

— Ah!

— Mas estão mortos...

— Pergunto-lhe se tem algum vivo.

— Também tenho disso. Tenho um filho...

— Ah! Tem um filho? E o que é feito dele?

— Não sei...

— E o que mais tem além desse filho?

— Uma fome devoradora. Há trinta e tantas horas que não como...

— Pois venha para cá. Vou dar-lhe o que comer.

— Obrigado, disse Pedro Ruivo, levantando-se, disposto a acompanhar Gregório.

E daí a pouco entravam os dois no hotel, seguidos dos outros rapazes, que já haviam chegado.

O tipo miserável de Pedro Ruivo causou nos hóspedes uma terrível impressão; desafinava desastradamente do aspecto sossegado e burguesmente farto da casa do Papá Falconnet.

Vieram logo todos os hóspedes para a sala em que estava Pedro Ruivo.

O velho havia já referido os pormenores do seu encontro na chácara, e, como de costume, exagerara um pouco as circunstâncias do fato. Principiou-se a cochichar sobre o recém-chegado e ninguém parecia disposto a perdoar a esqui­sitice de Gregório, recolhendo à casa um vagabundo, despre­zível por todos os motivos.

Todavia Gregório ordenou que dessem de comer a Pedro Ruivo e voltou à sala para a palestra.

Nessa ocasião acabava de chegar o padre Almeida. Era um homem forte, sangüíneo, com uma ruidosa voz de baixo profundo. Não gostava de hipocrisias, contava, no estrondo de formidáveis gargalhadas, as escapulas que fazia, e não tinha pelos maçons, pelos positivistas e pelos ateus a menor sombra de prevenção ou de ódio.

À noite, nas palestras em casa do Papá Falconnet, o demônio do padre não ficava calado um só instante, sem jamais esgotar o seu repertório de anedotas e pilhérias. Miravam estas quase sempre o jovial estalajadeiro ou a sua não menos jovial consorte, que as ouvia tranqüilamente, com um pequeno riso de mofa, saracoteando as suas vigorosas ilhargas na preocupação dos arranjos da casa.

Além de Gregório foi o padre Almeida o único hóspede que atentara mais fixamente para Pedro Ruivo. Enquanto este na cozinha devorava o que lhe deram para cear, o padre o observava a certa distância.

Terminada a refeição, o vagabundo procurou o seu benfei­tor para lhe agradecer o obséquio e pedir licença para se ir embora.

— Este homem cometeu hoje um crime, disse o padre em tom seco, com a sua voz de estrondo.

Pedro Ruivo estremeceu e olhou energicamente para ele. A fisionomia do gatuno havia mudado de expressão.

— Juro-o! sustentou o padre.

— E o que o leva a avançar semelhante coisa?! Perguntou o Ruivo, erguendo dramaticamente a cabeça e cruzando os braços.

— Sua própria cara, respondeu o interrogado, sem lhe tirar os olhos de cima.

— Foi então para isto que me conduziram aqui?! Antes mo tivessem dito, porque não aceitaria a esmola.

— Este homem roubou! acrescentou o padre. E o fruto do seu roubo está escondido na gruta!

— Ah! bradou o gatuno, saltando para a porta, enquanto os circunstantes repetiam estupefatos as últimas palavras do padre.

Não sabiam que este, logo ao entrar em casa, pedira ao Papá Falconnet informações sobre os fatos concernentes ao homem suspeito que acabava de ser introduzido no hotel, e por eles tirara a lúcida conseqüência que tanto assombrava Pedro Ruivo.

O embusteiro, ao ver-se denunciado, fugiu sem dar tempo a que o agarrassem, e precipitou-se pelos fundos da casa em direção à gruta.

— Prendam-no! gritou o padre, avançando. Mas foram baldados todos os esforços, porque Pedro Ruivo ganhara a chácara e logo desaparecera nas sombras da floresta que principiava ali mesmo a pequena distância.

Gregório recolheu-se ao quarto, envergonhado de ter protegido um intrujão daquela ordem. Ele ali no hotel sempre fora muito estimado de todos, se bem que para alguns passasse, debaixo do ponto de vista social, por um simples visionário. Gregório, como todo o rapaz inteligente, na idade que o nosso herói contava nessa ocasião, tinha as suas convicções repu­blicanas e entusiasmava-se loucamente por tudo aquilo que dissesse respeito à liberdade. Não podia pactuar com a idéia do servilismo e da escravidão; contudo sabia governar perfei­tamente o seu temperamento e passava por moço sossegado e comedido. Morava havia dois anos na Avenida e, durante esse tempo, ninguém tivera mal que dizer do seu procedimento. Nunca o viram exceder-se nas libações do jantar, nem o viram apoquentar com sorrisos intencionados e com olhares preten­siosos as raras mulheres que por lá apareciam; e até, se dermos crédito ao próprio dono da casa, Gregório levava o seu puri­tanismo ao ponto de nunca haver (por acaso, bem entendido) dado algum encontrão na criada, que aliás era uma moçoila das ilhas, corada como um pêssego maduro e rija como um pêssego verde.

E cremos que as coisas continuariam eternamente nesse pé, se o mesmo acaso, que nunca quis fazer abalroar com a rapariga cor-de-pêssego, não se lembrasse de arrastar até à sossegada Avenida Estrela, um formoso lírio cor-de-neve, doce e melancólico como um suspiro de amor.

Mas não precipitemos os acontecimentos; ainda nos falta dizer o que foi feito do nosso herói, depois que o deixamos perfeitamente aboletado no colégio do barão de Tetœpheus.

Gregório chegou aos quinze anos de idade com muito boa disposição de corpo e menos mau aproveitamento intelectual. Os cuidados imediatos de D. Florentina e os desvelos, não menos valiosos, que de longe lhe enviava a condessa, foram-lhe de grande valimento. Mas até aí nunca recebera ele de quem quer que fosse uma explicação lúcida a respeito dos seus antecedentes, nem a respeito das pessoas a quem devia a sua educação. Ia quase sempre passar os domingos em companhia de D. Florentina de Aguiar; sabia que não era seu filho, mas ignorava completamente que espécie de relações havia entre ela e ele, e quais as razões que a faziam tão solícita a seu respeito.

As coisas neste ponto, caiu gravemente enferma D. Floren­tina, e Gregório, ao visitá-la, recebeu a notícia de que ia sair do colégio e passar a praticar na Alfândega, como caixeiro de um despachante geral parente daquela senhora.

— Chegaste à idade em que tens de principiar por ti mesmo a ganhar a vida, disse D. Florentina. Eu me sinto ir acabando muito apressadamente, e só desejo ver-te emprega­do antes que me fechem os olhos; de hoje em diante, meu filho, não deves contar no mundo com mais ninguém além de ti. Já não precisas do auxílio da pessoa que até agora provia a tua subsistência; por conseguinte, meu rapaz, faze por ter juízo e por ser homem. Não queiras nunca barulhentas glórias; não te queiras fazer saliente e notável, antes procura a doce paz de uma obscura felicidade. E isto, só a boa mediocridade nos pode proporcionar de um modo verdadeira­mente seguro e constante. É possível que ainda venhas algum dia a conhecer teu pai ou tua mãe; pede-lhes que te abençoe, e tu, perdoa-lhes alguma falta que eles porventura hajam cometido a teu respeito.

Gregório pediu, embalde, ainda mais alguns esclareci­mentos da sua procedência, e desde então principiou a sentir uma vaga tristeza, produzida pela falta de alguma coisa que ele não conseguia determinar bem o que fosse. Era um desejar indeciso e duvidoso, do qual não conhecia a origem; uma espécie de saudade, sem motivo e por isso mesmo mais dolorosa. Sentia estranhas nostalgias de um mundo desconhe­cido, que seu coração sonhava e antevia por entre outras mentiras.

E foi neste melancólico pungir de mágoas indefinidas, que ele assistiu à morte de sua mãe adotiva. Sobreveio-lhe uma enorme crise nervosa, chorou extraordinariamente; chorou com a sofreguidão de quem precisa desabafar tristezas acumu­ladas no peito há muito tempo, e até chegara a gozar certo prazer voluptuoso com lhe correrem aquelas lágrimas dos olhos. Entretanto alguma coisa lhe dizia de dentro que toda essa dor e todo esse pranto não eram formados só pelo muito amor que ele tivesse a D. Florentina. Ele a estremecera muito, não havia dúvida, mas podia perfeitamente se conformar com a idéia da sua morte. O que o fazia sofrer tanto, o que o punha nervoso e triste daquele modo, era outra coisa, era a falta prematura da sua verdadeira mãe.

Foi com o espírito enfermado por estas apreensões que Gregório, uma tarde, em que estava assentado debaixo dos bambus da Avenida Estrela, viu subir vagarosamente a velha escadaria de pedra rajada que conduzia à casa do Papá Falcon­net, uma senhora ainda moça, extremamente pálida e cheia de lânguidas tristezas.

Ia pelo braço de um velho, maior de sessenta anos, que parecia preocupado exclusivamente com ela. O velho desfa­zia-se em solicitudes e carinhos; a moça sorria às vezes para ele, apenas por condescender.

Era uma mulher de trinta anos talvez; esbelta, não muito magra, fisionomia insinuante; olhos voluptuosos, úmidos, de um brilho singular, cabelos negros, brilhantes e volumosos, dentes claros, boca bem talhada, mas ligeiramente constran­gida por um desdenhoso gesto de indiferença. Ao vê-la de relance, toda envolvida no seu longo paletó de casimira alvacenta, sem jóias no pescoço e nas orelhas, com o rosto nublado na penumbra do seu largo chapéu de palha, com o seu triste caminhar de convalescente, o seu descair de cabeça, as suas mãos cor-de-neve, como que esquecidas e sem movi­mento, sentia-se a gente atrair para ela por uma plácida simpatia compassiva. A expressão resignada de seus olhos, aliás talhados para os segredos da ternura, o melancólico sorrir dos seus lábios, que entretanto pareciam feitos somente para executar a música ideal dos beijos, o seu ar abatido e fraco, a sua respiração quebrada, a sua voz suplicante e humilde; tudo que respirava dela penetrava os sentidos com a voluptuosa impressão que nos produzem os perfumes da igreja, os sons plangentes do órgão, e os místicos arroubos religiosos.

A tarde ia já descaindo no crepúsculo. O sol havia mergulhado na fímbria vulcânica do horizonte, mas toda a natureza ainda palpitava sob a sensação dos seus últimos beijos fecundos e ardentes. As aves recolhiam-se ao mistério dos seus ninhos, e do fundo sombrio dos arvoredos exalava-se o estridular monótono das cigarras, sobressaindo dentre os pri­meiros rumores da noite como um interminável gemido solto no espaço.

É essa a hora das profundas concentrações, dos êxtases voluptuosos. Tudo parece que tem uma saudade a carpir; de cada moita de roseiras, de cada grupo de bambus, partem ternos suspiros e queixumes dolorosos. A natureza como que chora a partida do seu fogoso amante, que desapareceu nas dobras luminosas do ocidente. Tudo é viuvez! tudo é saudade!

E nessa hora, transitória, e dúbia, que nos é dado surpre­ender a natureza nos segredos do seu amor; é entre o último sorriso do sol e a primeira lágrima da noite, que podemos penetrar no fundo do coração de nossa mãe comum! Ela como que abre para chorar à vontade, e sente-se então o orvalho do seu pranto, e ouvem-se os seus gemidos abafados.

Gregório deixava-se arrebatar por estes devaneios, quando contemplou o vulto melancólico, que subia lentamente a esca­daria de pedra pelo braço do velho; e desde então aquela triste figura de mulher não lhe saiu mais da memória.