O comendador Manuel Furtado Ribeiro, só por muito amor à filha, e só por muito respeito às recomendações do Dr. Roberto, é que podia consentir naquela mudança para a Avenida Estrela. O bom velho, que havia feito excelente pecúlio no alto comércio donde se achava agora retirado, tinha as suas bazófias e gostava de aparecer e luzir; folgava em ver cintilar ao gás das suas salas as comendas de alguns ministros e as calvas de alguns senadores; lisonjeava-se muito com a amizade do Bom Retiro, com a intimidade de Otaviano Rosa e de outros graúdos do tempo que sempre o distinguiram. Era conservador às direitas; tinha muito respeito e muita veneração pelo seu Imperador, e nos dias de grande gala mandava iluminar o frontispício da casa. Não poderia por conseguinte consentir de cara alegre naquele novo capricho da filha.

— Meter-se na Avenida Estrela!... dizia ele consigo, furioso por não poder destruir semelhante idéia. Onde se viram caprichos de tal ordem?!...

Já por ocasião do casamento de Olímpia, o comendador sofrera um grande choque no seu amor-próprio: sonhara para a filha um partido muito mais brilhante e muito mais honroso do que o caixa do Paulo Cordeiro; tanto assim que, na primeira desavença do casal, disse francamente, que o genro afinal não passava de um "Caixa-de-rapé".

O marido de Olímpia nunca perdoou ao sogro semelhante qualificação e, se até aí não morria de amores por ele, de então em diante quase que o não podia suportar. Verdade é que esse casamento nunca se teria realizado, se não fosse já nesse tempo andar o velho perseguido pela necessidade de casar a filha.

O fato porém é que o comendador Ferreira se mudou com Olímpia para a Avenida Estrela.

O pobre homem, quando entrou na antiga chácara, bem mostrava pelo rosto o sacrifício que ia a fazer; só aquela caprichosa seria capaz de constrangê-lo a tanto! Foi com o coração oprimido e com o semblante fechado que ele transpôs a saia do hotel. As velhas paredes, os móveis decrépitos, o trêmulo assoalho, a melancólica aparência de tudo aquilo, lhe enchiam o coração de uma tristeza dura, de um mal-estar grosseiro e doloroso. Tudo aquilo lhe falava em desconforto, em falta de recursos, em digestões mal feitas e em noites mal dormidas.

O comendador, como todo o homem que logrou posição à custa dos próprios esforços, ligava extraordinária importân­cia às suas comodidades. Queria a sua boa cama, o seu bom prato, o seu banho fácil e pronto e a sua liberdade plena em certas ocasiões. Não compreendia a existência sem robe-de­-chambre, sem chinelas, sem a bela preguiçosa depois da refei­ção, o palito ao canto da boca e os olhos amortecidos pela digestão tranqüila do jantar. Além disso (para que negar?), gostava que lhe admirassem a casa; que lhe falassem das plantas, dos gansos que ele tinha no tanque do jardim; que lhe elogiassem a mobília das salas; que lhe perguntassem qual era o posto de seu pai, cujo retrato lá estava no salão, fardado, dentro da custosa moldura cor-de-ouro. Todas estas nonadas lhe davam muito gozo e lhe faziam amar a vida.

Mas o médico lhe recomendara que não contrariasse a enferma!... que diabo havia ele de fazer?... E que não seria capaz de sacrificar por aquela filha?... Ele a estreme­cia tanto!... De todas as suas afeições, Olímpia era tudo o que lhe restava. À proporção que elas se foram extinguindo, a rapariga ia herdando de cada uma dose de ternura que lhe dava o comendador; de sorte que, ao desaparecer a última, Olímpia ficou senhora do coração inteiro de seu pai. Ela, só, representava todos aqueles a quem o bom homem amara durante a sua longa vida.

O comendador fora casado duas vezes. A primeira mulher, justamente a que ele mais estimara, ou, talvez, a única que ele amou, dera-lhe ainda um outro filho, que nasceu pouco depois de Olímpia; a segunda mimoseou-o com duas raparigas gêmeas. Mas tudo isso morreu; tudo isso desertou; aquele aos treze anos e estas duas antes dos cinco. Só Olímpia resistiu e se conservou fiel ao infeliz patriarca. Não admira, pois, que ele a amasse com tanto extremo. E esse belo amor de pai, fazia com que a gente não desse grande atenção a algum ridiculozinho, que porventura turvasse o tipo simpático do comendador.

Quanto lhe não seria penoso por conseguinte habitar a Avenida Estrela, para que o pobre velho ainda se não tivesse habituado a semelhante idéia e ainda se não mostrasse de todo resignado. Definitivamente era enorme o sacrifício! A filha nunca lhe tinha exigido até ali tão grande provação.

E o comendador, pensando assim, deixava-se entristecer. O Papá Falconnet, entretanto, mal o pilhou desacompanhado da filha, correu ao seu encontro e principiou a falar-lhe minu­ciosamente da casa:

— V. Exa. aqui ficará melhor do que em parte alguma!... afirmava este convicto. Não me fica bem dizê-lo, mas juro-lhe que escolho do melhor para servir meus hóspedes!

E, desfazendo-se em cortesias, obrigava o comendador a acompanhá-lo.

— Tenha a bondade! dizia ele; tenha a bondade de passar um instante à nossa sala de bilhar. É o que se vê! Asseio, simplicidade e cômodo completo! Agora temos ali a sala de jantar! Faça o favor de ir entrando... Aqui janta-se defron­te das árvores! É como se fosse em plena floresta!... Ouvem-se da mesa cantar os passarinhos. Veja, Sr. comen­dador, tenha um pouco mais de paciência e olhe V. Exa. para isto: é a nossa cozinha... Pouco luxo, mas limpeza por toda a parte. Agora vou mostrar-lhe os banheiros!...

— Não! dispense-me, respondeu o comendador com deli­cadeza. Estou muito fatigado e preciso de recolher-me.

E, antes que Papá Falconnet o detivesse, já ele se tinha afastado para ir visitar a filha.

Os hóspedes, que foram entrando pouco a pouco à propor­ção que anoitecia, olhavam com certa surpresa para o comen­dador e faziam entre si perguntas a seu respeito. Olímpia mostrou-se no dia seguinte, e dispensou que lhe servissem o almoço no quarto.

Era um domingo, a mesa encheu-se de hóspedes, que só nesse dia comiam no hotel. O comendador assentou-se contrariado ao pé da filha, depois de cumprimentar os outros comensais. Gregório estava entre estes e não tirava os olhos de Olímpia.

Esta impunha, sem saber, uma inusitada cerimônia. Fez constrangimento; ninguém se queria servir sem passar o prato ao vizinho. A figura nutrida do comendador destacava-se, amplamente, dentre dois rapazes magrinhos que pareciam irmãos. O Falconnet ocupava a cabeceira e falava, em tom reservado, sobre a excelência do almoço.

— Não me fica bem dizê-lo, repetia ele, mas incontestavelmente estes camarões estão soberbos!

E voltando-se para Olímpia:

— V. Exa. não quer repetir, minha senhora?

Olímpia respondeu que não com o garfo.

Mme. Falconnet distribuía pratos aos seus hóspedes. A conversa em breve começou a estalar de vários pontos da mesa, a princípio apenas murmurada, depois em tom mais alto, e afinal livremente solta. Os assuntos chocavam-se no ar. De um lado discutia-se a respeito da guerra franco-prussiana, que ainda nessa ocasião tinha cheiro de novidade; falava-se de outro a respeito da última estação da febre amarela; os dois rapazinhos parecidos disputavam uma questão sobre um tal Mateus, um deles afirmava que o Mateus era filho da Bahia, e o outro sustentava que era fluminense. Às vezes falavam pela frente do comendador e estendiam-se sobre o prato, quase a tocar nariz contra nariz; às vezes derreavam a cadeira para trás e gesticulavam agitando os braços pelas costas do seu vizinho comum do centro. O comendador, entalado entre os dois, ora se chegava para a frente, ora se empinava para trás, sem querer interromper com seu volumoso corpo as vistas dos contendores.

Dava-se com o comendador nessa ocasião um fenômeno muito vulgar. Ele ali, entre aquela gente singela e pouco escrupulosa na prática das etiquetas, se sentia, mais do que nunca, disposto a conservar a sua austera atitude de homem fino; o contraste estabelecido entre ele e os companheiros da mesa instigava-o a sustentar com muito empenho um grande ar diplomático que nem sempre era o seu. Em outros lugares, onde aliás qualquer sem-cerimônia não seria perdoada, o bom comendador nunca se mostrava tão fiel aos rigores da cortesia e parecia até disposto a abrir mão contra alguns deles.

Todavia Gregório não tirava os olhos de Olímpia. Sua imaginação cabriolava doida em torno da formosa criatura, procurando puxar-lhe pelos olhos, pelo riso ou pelo perfume dos cabelos, o fio de algum segredo, o segredo de alguma paixão, que a tivesse posto assim tão preocupada e tão triste, e lhe tivesse dado aquele ar melancólico de rola sem companheiro.

Depois do almoço apareceu o Dr. Roberto. O comen­dador carregou com este para o quarto e desabafou então com ele as suas penas.

— Fez bem! respondeu-lhe o médico à sua primeira per­gunta; fez bem em não contrariá-la. Descanse que não levarão aqui muito tempo... Ela se aborrecerá em poucos dias!...

E, depois que o comendador lhe tornara a falar da cena da pedreira, interrogou:

— Ela estava em jejum?...

— Não. Havia tomado leite antes de sair de casa.

— Mas a crise só veio à volta?

— Só; continuando, porém, com uma tal veemência, que fiquei deveras assustado... Nunca eu a vira assim tão mal, doutor...

— Ela teve antes disso alguma contrariedade?

— Não...

— Viu alguma coisa que a assustasse?... encontrou-se com qualquer objeto que a sobressaltasse?...

— Não. Nada disso. Teve apenas uma vertigem quando estava lá em cima da pedreira; o moço carregou com ela e...

— Que moço?!... interrompeu o médico.

— Um trabalhador que se ofereceu para a pôr cá em baixo.

— E trouxe-a?

— Perfeitamente.

— Ela estava sem sentidos?

— Não dava acordo de si.

— E o rapaz... que idade terá ele?...

— Uns vinte e cinco anos.

— Era homem forte?...

— Fortíssimo.

— Ah!

E, depois que o médico recebeu mais algumas informações de outro, bateu com o guarda-chuva no chão e disse entre dentes:

— Compreendo! compreendo, coitada!...

E, como o velho quisesse saber o que ele resmungava, Roberto respondeu, afagando a barba:

— O melhor, meu caro comendador, é arranjar-lhe as pazes com o marido! Isso é que era!

Tanto para o velho Ferreira, como para a filha, se fez então uma vida muito especial. Olímpia acordava cedo, três horas antes do que era seu costume em Botafogo, banhava-se n’água fria, enfiava um paletó de casimira e saía a passear pelo braço do pai. Voltava à hora de almoço, depois do qual lia o seu romance, ou tentava alguma música em um velho piano adormecido às moscas na sala de bilhar. Às vezes dormia, de outras vezes costurava ou não fazia coisa alguma, até que o Papá Falconnet vibrava afinal a campainha chamando para a mesa. Depois do jantar saía de novo a passeio ou ficava entretida a olhar para os trabalhos da pedreira no fundo da chácara.

Era bem singular o que sentia Olímpia à vista dos traba­lhadores da pedreira. Seu espírito, finamente educado entre carinhos de família e amimado pelos costumes de uma vida feliz, contrariava-se sobremaneira com a ausência do meio superior em que se desenvolvera; mas o corpo, ao contrário, forcejava por saltar fora desses arraiais e precipitar-se aventu­rosamente nos domínios do desconhecido.

Uma vez olhava para os trabalhadores da pedreira, quando viu aproximar-se deles uma rapariga. Era ainda moça, forte, e rica de quadris. Levava uma cesta no braço e parecia alegremente empenhada pelo serviço que fazia. Um dos trabalhadores, ao vê-la, soltou uma estrondosa exclamação de prazer e correu ao seu encontro.

A mocetona depôs a cesta ao chão e estendeu-lhe a cara. Ele a beijou em cheio na boca e abraçou-lhe a cintura. Depois seguiram juntos para o lado dos companheiros; sentaram-se todos em volta de uma pedra, despejaram a cesta e principia­ram a comer alegremente, ao sol.

Esta cena produziu na filha do comendador uma impressão penosa e ao mesmo tempo agradável. Fizera-lhe mal aos nervos o espetáculo daquela ternura grosseira e sincera, mas sentira apetite de participar do almoço daquela pobre gente. Ela, com quem já não iam os imaginosos acepipes da mesa de seu pai, desejou comer do bocado dos trabalhadores, beber do seu vinho ordinário e palestrar com eles, em torno daquela mesa de pedra, informe e tosca, mas tão alta e tão alevantada, que Olímpia não podia chegar até lá sem perder os sentidos.

E tão empenhada ficou a ver aquele espetáculo, que a não conseguiram tirar daí senão quando os trabalhadores, depois de beberem pela mesma garrafa, deram o almoço por findo e despediram a rapariga.

Só então Olímpia reparou que, a pequena distância dela, estava Gregório, assentado debaixo de uma árvore, com uma pasta sobre as pernas cruzadas, na atitude de quem copiava a pedreira. A histérica ficou logo tomada duma grande curiosidade por aquele desenho, e foi pouco a pouco se aproxi­mando do rapaz. Ele a sentia chegar perfeitamente, mas fingia não dar por isso e afetava grande preocupação com o seu trabalho; ela afinal estacou discretamente por detrás do desenhista e ficou a observar-lhe o debuxo por cima do ombro. Gregório prosseguiu no seu desenho, como se continuasse inteiramente só; todavia a presença de Olímpia lhe perturbava de leve o espírito e lhe punha no coração um doce enleio amoroso. Ele se penetrava dela sem a ver, aspirando-lhe o perfume sensual do corpo e o hálito suave da respiração oprimida.

E ela, presa pelo interesse do desenho, ia cada vez mais se aproximando de Gregório, sem notar que já lhe tocava com o rosto na cabeça. O rapaz voltou-se finalmente e cumprimentou-a com toda a delicadeza.

— Ah! disse a senhora, em ar de quem pede desculpa. Perdão! não desejava interromper o seu trabalho...

— Oh! respondeu ele, procurando disfarçar a comoção; nem vale a pena falarmos a respeito disso... este pobre desenho não merece tanto!...

E fez um gesto de querer inutilizá-lo.

— Não! disse Olímpia, defendendo o álbum em que traba­lhava Gregório; não estrague! Faça-me antes presente dele...

— Oh! coitado! não merece semelhante honra!...

— Mas eu quero! disse a caprichosa, com o seu habitual modo de impor. Preciso deste desenho!

— Está às ordens de V. Exa., balbuciou o moço, despren­dendo a folha. E acrescentou em tom mais baixo: — É inspi­rado pelo almoço dos trabalhadores da pedreira...

— O senhor então gosta de contemplar a natureza?... perguntou ela, com os olhos muito abertos sobre Gregório.

— Ainda não consegui perder essa mania, respondeu ele, desculpando-se.

— Mania?! Não sei por quê! só as almas grosseiras e vulgares não se comovem defronte de certos espetáculos da natureza! Quanto a mim, se me não permitissem contemplar o céu, as árvores, o mar, o sol e as montanhas, creio que desistiria da vida! Que vale este mundo sem o que ele tem de belo?... Suprimam a música, as flores os sonhos e o amor, e verão o que restará depois!... Nada! uns destroços de vida estúpida e sem graça!...

— Oh! V. Exa. tem um coração de poeta!...

— Poeta?! Esta palavra para mim não tem a significação que em geral lhe emprestam. Todo o homem é poeta enquanto não atrofia a sua alma com as paixões brutais. Poeta! Mas o que é não ser poeta?!... Como se pode admitir um coração insensível ao que há de divino espalhado por toda a nature­za?... Como é possível conceber a idéia de que alguém passe nesta existência, sem notar o que ela tem de ideal?!...

— Mas a realidade de nossa vida é tão dura e prosaica!... objetou Gregório.

— Que realidade? As que eu conheço são todas encan­tadoras! A vida, quanto mais difícil, quanto mais trabalhosa, quanto mais áspera, tanto mais me fascina! Eu seria incapaz de amar verdadeiramente um homem feliz! Eu amo a todos os desgraçados!

— Quem me dera ser o mais desgraçado dos homens!... balbuciou Gregório, com os olhos perdidos pelo espaço.

— Para quê?... interrogou Olímpia, quase sem mexer com os lábios.

— Para merecer o amor de um coração como o seu! para esquecer-me de tudo, pensando nesse amor ideal, independente, sem leis e sem senhor! para poder um dia adormecer embalado por um dos seus sorrisos e despertar cantando, esquecido deste miserável mundo em que vegeto!

— O senhor tem idéias de louco!

— Talvez. Mas a respeito da loucura, digo o que V. Exa. me disse a respeito da poesia: Quem não será louco?! Que é não ser louco?! Que é esquecer as leis das conveniências e calcar debaixo das suas asas tudo aquilo de que os homens vulgares fizeram o seu ideal e a sua ambição?! Que é isso senão loucura?!...

— O Sr. delira! disse Olímpia.

— Sim! confirmou Gregório. Que é o amor senão um delírio?...

Nisto, foram interrompidos pelo comendador. Os dois moços calaram-se de súbito. O velho observou o desenho, cumprimentou o autor, falou de amigos seus que desenhavam também com muito gosto, e profetizou lisonjeiramente que Gregório seria um segundo Mota.

Só na seguinte semana, um acontecimento, verdadeira­mente imprevisto por todos, colocou aqueles dois, com as suas filosofias, em situação muito mais delicada e séria.

Foi um passeio à gruta.