E, desde então, não se passava um dia em que não hou­vesse alguma nova rezinga entre o casal; mas o marido, por muito que protestasse contra os costumes da mulher, nada conseguira. O comendador tomou abertamente o partido da filha e principiou a tratar o genro com frieza.

— Logo vi que este homem não poderia convir a Olímpia, dizia e repetia ele consigo. Grande parvo! em vez de agra­decer a Deus o presente que lhe fez, ainda tem o desplante de lamentar-se! Idiota.

E, quando se achava a sós com a filha e vinha a pêlo falarem de Gonçalves, repisava o comendador com o seu ar aprumado:

— Não faças caso, minha flor! diverte-te, brinca, dança à vontade, que és moça! Brilha, minha Olímpia; brilha, que és bonita, espirituosa e rica! Deixa falar o tolo de teu marido; ele o que tem é ciúmes! Não faças caso! Preza o teu nome, defende a tua reputação, cumpre com os teus deveres de senhora honesta, mas continua a ofuscar! Mata de inveja essas presumidas que estão todos os dias a descobrir defeitos em ti!

E o velho sentia-se cada vez mais satisfeito com ela. Para ele não havia em todo o mundo outro ente tão completo, tão belo, tão agradável como a filha. Olímpia, depois que mu­dara de gênio e que se alindara de corpo, era o seu enlevo e a sua vaidade. Quando a via, decotada no rico vestido de seda, a chamar a atenção de todos, a jogar com muita graça o leque, a responder sorrindo às palavras que choviam da direita e da esquerda, o feliz pai ficava embevecido, a acom­panhar-lhe com a fisionomia os menores gestos e os mais li­geiros movimentos.

— E queria o senhor meu genro que este mimo de graças não aparecesse nas salas e ficasse em casa, talvez a jogar a bisca! Tinha que ver...

Por essa época sofreu o comendador um novo desgosto: a morte de seu filho, que estava já nos estudos em S. Paulo.

Este fato alterou de alguma forma, e por algum tempo, a vida da família, servindo de paliativo aos desgostos de Gon­çalves. Mas, acabado o luto, Olímpia cingiu de novo o seu diadema e reapareceu nas salas.

O pobre homem já não podia suportar semelhante exis­tência. Era preciso que a esposa se decidisse por uma vez a mudar de vida, ou ele pediria a sua demissão de marido.

Olímpia declarou que não estava disposta a alterar de forma alguma os seus hábitos. Se ela, com as suas fantasias, obrigasse o marido a sacrifícios e privações, muito bem! seria a primeira a fugir da sociedade exigente e a submeter-se a uma vida proporcionada à estreiteza dos seus recursos; mas não! o marido nem precisava tocar nos bens que trouxera: Olímpia era rica, tinha muito com que sustentar o seu luxo e os seus caprichos; Gonçalves, por conseguinte, que deixasse de ser egoísta e não a estivesse contrariando daquele modo, porque isso podia ter lamentáveis conseqüências...

Gonçalves opunha carradas de razão: dizia que se casara para viver com a mulher e não para proporcionar mais um bom par aos dançadores de valsa; que era homem sossegado, amigo dos seus cômodos, gostando de passar os domingos na sua chácara, e que não se achava disposto, por conseguinte, a andar por aí, num torniquete, de casaca, a cochilar, que nem o Imperador; que estava já muito farto de bailes, de jantares e de teatros líricos; que as tais ceias fora de horas, os sorvetes, os ponches, que o obrigavam a ingerir todas as noites, lhe punham o estômago em petições de miséria e lhe haviam de dar com os ossos no Caju, se ele não mudasse quanto antes de regime; e, afinal, quando por mais nada fosse, era porque ele não podia admitir que uma senhora casada tivesse adora­dores, e ouvisse galanteios, e se deixasse, nas tais danças, abraçar por uns pelintras que ele nem sequer conhecia; como também não podia tolerar que o nome de sua mulher andasse por aí, de boca em boca, de jornal em jornal, tratado por tu, como se ela fosse alguma dançarina ou alguma cômica! Não! Gonçalves não estava por nenhuma dessas coisas e, se a mulher não pretendesse mudar de sistema de vida, que lhe falasse então com toda a franqueza, porque nesse caso quem disparava era ele!

Olímpia não respondeu uma só palavra e deixou que o marido ainda acrescentasse muitas outras queixas. À noite encarregou o pai de tratar da separação, se é que Gonçalves estava com efeito a isso disposto; mas, caso estivesse, ficasse ele desde logo prevenido de uma coisa, e era que, em nenhuma hipótese, voltaria ela a fazer pazes com o marido. Gonçalves, portanto, que meditasse antes de dar o grande passo. Quanto a ela não alteraria, de forma alguma, o seu modo de viver!

Daí a três dias estavam separados.

Sabe já o leitor o que se seguiu ao rompimento: Olímpia principiou a emagrecer, foi ficando triste e perdendo, pouco a pouco, o gosto pelas festas ruidosas e pelos prazeres opu­lentos. Ficou nervosa, doente, aborrecida, e dentro de seis meses desertou totalmente da sociedade.

O comendador embalde procurou persuadi-la de voltar aos seus hábitos primitivos; embalde lhe falou do triunfo que outras obtinham já na ausência dela; embalde a cercou de objetos da moda, jornais de figurinos, programas de concertos, camarotes de teatros e provocações de todo o gênero.

Olímpia não se moveu, e em menos de dois anos ninguém mais lhe citava o nome.

Todavia, os seus incômodos recrudesciam; o nervoso to­mava proporções muito sérias; o monstro histérico escancarava as fauces.

O Dr. Roberto, como também já sabe o leitor, aconselhou viagens, falou em banhos de mar, lembrou passeios ao campo, mas disse positivamente que o verdadeiro remédio para Olímpia seria fazer, quanto antes, as pazes com o marido.

Não fez. E mais dois anos decorreram, até o dia em que a vimos subir, pelo braço do pai, a escadaria do Papá Falconnet.

Pela confrontação das cenas da Avenida Estrela, com as cenas igualmente mal esboçadas deste capítulo, pode o leitor sem dificuldade calcular os progressos que fez nesses dois anos a moléstia de Olímpia.

Mas saltemos por sobre isso e vamos revê-la no momento em que a deixamos ao lado de Gregório.

Antes, porém, cumpre explicar o que foi feito de Teresa. O Dr. Roberto fazia-lhe de vez em quando uma visita. Achou-a sempre pior; propensa a sofrer das faculdades mentais. Teresa dera-se ultimamente à devoção e estava muito amiga de rezas e de igrejas. Olímpia já não encontrava nela a mesma amiga e a mesma conselheira; a pobre doente parecia agora estúpida e mostrava-se desconfiada, de mau humor, às vezes impertinente e grosseira.

Rosa, aquela criada que na época dos amores de Portela, lhe protegia as escapulas, fora substituída ao lado dela por tia Agueda.

A infeliz pouco se demorou no hotel; queria um lugar mais obscuro e mais modesto; transferiu-se para Cascadura. O marido mandava-lhe lá, todos os meses, uma pensão de cem mil réis. Estava feia, sumamente feia; a febre crestara-lhe a pele, empobrecera-lhe o cabelo e desfeiara-lhe as feições. Não dava já idéia do que fora; magra, encanecida, meio calva, com os olhos sem expressão, a boca desadornada de sorrisos, o pescoço bambo, as costas arqueadas, parecia mais uma freira velha, comida pelos rigores da vida monástica, do que uma simples devota de trinta e oito anos.

Não saía de casa, senão para ir à igreja. Ninguém a via à janela; apenas, em algumas noites de luar, a custo lobrigavam o seu vulto magro, vestido de chita preta, a passear como um espectro por entre as pobres árvores do seu quintal. Duas vezes fora acometida por crises nervosas, que a deixaram prostrada durante muito tempo com todos os sintomas da loucura.

E o comendador recomendava sempre ao Dr. Roberto que a não deixasse de ver de quando em quando, e pedia-lhe constantemente notícias dela.

— Vai naquilo mesmo... dizia o médico. Dali para pior... coitada!

— Mas pode viver?... perguntava o velho, com os olhos iluminados por um sinistro brilho de vingança.

— Ah! lá viver pode, e até muito; mas o que não con­seguirá é restabelecer-se totalmente. Está perdida!

— Bem! dizia o velho consigo; minha vingança será com­pleta... Aquele miserável há de casar-se com ela logo que eu feche os olhos!

Uma tarde, passeava a mísera, como sempre triste, por entre as solitárias plantas do seu quintal quando um vulto de homem parou às grades do portão.

— Saberá dizer-me onde mora por aqui uma senhora cha­mada Teresa?... perguntou o sujeito, apoiando-se aos varais da grade.

Pelo seu todo fatigado via-se logo que de vinha de longe, a fazer até ali a mesma pergunta pelas outras casas daquela rua.

Teresa aproximou-se lentamente sem responder; mas, ao chegar perto da grade, soltou um grito e exclamou:

— Luiz!

— Meu nome?!... disse o outro muito surpreso.

E sem ter tempo de procurar reconhecer a lastimosa figura que tinha defronte dos olhos, transpôs o portão, para amparar Teresa, prestes a cair desfalecida.

— Já me não conheces?... perguntou ela com um tom de profunda tristeza, logo que pôde falar. É natural! Eu já não sou a mesma.

— Esta voz!... Será possível?! balbuciou Portela, sem querer acreditar no que via. E ficou a olhar, muito aflito, para a pobre mulher.

— Está aqui o que resta daquela tua Teresa dos outros tempos, tão fresca e tão bonita! explicou ela. E acrescentou com os olhos cheios d’água e a voz muito alterada pela comoção: — Contigo, meu Luiz, tudo fugiu! já nada resta do que fui... Estes olhos já não falam de amor; estes lábios esque­ceram o riso; este colo não provoca em mais ninguém desejos desenfreados... Depois que tu partiste, nunca mais tive um momento de ventura; tudo se converteu em remorso. Cheguei a amaldiçoar o nosso amor; cheguei a duvidar se a memória dele me causava saudade ou me causava tédio... Principiei a tomar aborrecimento por tudo; meu marido apunhalava-me todos os dias com a sua indiferença e com o seu desprezo... E o meu sofrimento foi crescendo, crescendo, até me reduzir a isto que aqui vês!

Portela escutava, sem desviar os olhos. Tudo aquilo pro­duzia nele uma grande tristeza e um grande constrangimento. Como era possível conceber semelhante transformação?... Como, em doze anos, se podiam extinguir tanta formosura e tanta graça?... Oh! é terrível, pensava ele, vermos assim de perto os destroços de uma felicidade que, um dia, passou por nós e nos encheu a vida com todos os brilhos da paixão e do amor. Amor? não! instinto. Um pouco de carne palpitante, cabelos, sangue, dentes, olhos, tudo isso disposto de certo modo, ordenado com certo encanto, eis quanto basta para nos enlou­quecer, para nos arrastar a todas as loucuras e a todas as degra­dações! Entretanto, ali estava aquela mesma mulher que o fizera delirar um dia!... Como a nossa matéria é fraca ou como a natureza é hábil! Como esta sabia impor as suas leis de reprodução e da vida! E queriam os homens do rigor e da austeridade que se pudesse fugir despoticamente a todas essas armadilhas tão finamente preparadas, tão sabiamente urdidas debaixo de nossos pés!...

E, depois destas considerações, uma tristeza profunda, um aborrecimento doloroso, negro, úmido, entrou-lhe no coração e começou a inchar lá dentro como um sapo entalado num cano de esgoto.

O coração daquele homem era com efeito um cano de esgoto, por onde lhe desfilavam todas as imundícies da alma. Não se teria demorado de um instante ao lado de Teresa, se não precisasse dela para alguma coisa que diretamente o inte­ressava. O triste espetáculo daquela ruína revoltava o seu egoísmo; Portela sentia-se impaciente por conseguir o que desejava da mulher do comendador e pôr-se a caminho para longe, para bem longe, onde não chegasse o inquietante cheiro daquela desgraça e daquela miséria. Sentia-se tão apressado que não esperou pelo fim das divagações de Teresa; interrom­peu-a, declarando francamente que ia ali levado pela neces­sidade de alcançar das mãos do comendador um papel assinado por ele.

— Que papel? perguntou a mísera.

— Pois não te lembras que deixei um documento em poder de teu marido, declarando os obséquios que recebi dele, as relações que tive contigo, aquele projeto de envenená-lo e ainda outras coisas de que já não me recordo?!...

Essas tais coisas de que ele já se não recordava, não lhe fazia conta declarar quais fossem, porque implicava direta­mente com o futuro de Teresa.

— Mas afinal, perguntou ela, que desejas de mim?...

— Desejo em primeiro lugar saber se esse papel não está em teu poder, respondeu ele.

— Pois se eu até ignorava da existência de semelhante coisa...

— Bem, pois então o que eu desejo é que o obtenhas de teu marido, que o subtraias a todo o transe do lugar em que está. Preciso apoderar-me desse documento! Não poderei dar um passo aqui no Rio de Janeiro, enquanto ele existir nas mãos do comendador...

— Mas eu não vou à casa do Ferreira. Além disso...

— Bom. Nesse caso, adeus.

— Já te queres ir?... perguntou Teresa.

— Desculpa; tenho alguma pressa. Eu te aparecerei mais vezes.

— Espera ao menos que venha tia Agueda para fazer café...

— Não! não! Tenho de estar cedo na cidade. Adeus!

— Visto isso, adeus. Olha, espera! vou dar-te uma flor; leva-a para te lembrares de mim...

E foi buscar ao oratório uma rosa, que murchava aos pés de um santo.

— Está benta! disse ela.

Portela sentia-se cada vez mais impaciente. Na ocasião de sair, já no corredor, voltou-se e deu com Teresa a fazer-lhe momices por detrás dele. Só então desconfiou que a desgra­çada sofria de qualquer desarranjo cerebral.

Pôs-se a caminho com vontade. Iria dali à casa de um conhecido; talvez lhe desse este informações a respeito do comendador e lhe fizesse encontrar alguém capaz de subtrair os documentos de que ele tanto precisava.

Portela, nas suas viagens, arranjara algumas economias e vinha estabelecer-se na Corte com um sócio bastante endinhei­rado. Tinha em vista um casamento; o futuro sorria-lhe como nunca auspicioso: fora com Leão Vermelho mais feliz do que contava. O compadre facilitou-lhe os meios pecuniários para especular em compras de vinho no Porto, e recolheu-se, se­quioso de descanso, à sua província natal, onde tencionava acabar a existência.

Com este, pouco mais temos que ver. Quanto ao Portela, podemos afiançar que andou com lisura nas suas especulações e que se despediu limpamente do protetor, retirando-se com um forte carregamento de vinhos para o Brasil, em cuja capital pretendia agora estabelecer uma casa especial daquele gênero.

O bom desempenho de suas transações granjeara-lhe crédito na península, de sorte que, com muita facilidade e pouco capital, poderia sortir o seu estabelecimento, sem encon­trar competidor no Rio de Janeiro.

Por esse tempo contava ele uns trinta e tantos anos, e sentia-se vigorosamente disposto a fazer carreira. Estava moço e fortalecido de esperanças. Com os elementos materiais de que dispunha, podia ir muito longe; sonhava já com a co­menda. O diabo era aquele documento em poder do marido de Teresa!... Se o demônio do velho saísse dos seus cuidados e mandasse publicá-lo no Jornal do Comércio, Portela estaria perdido. O comendador, apesar de retirado da vida ativa, gozava de muito crédito na praça e era sumamente conside­rado pelos negociantes de mais peso; qualquer acusação que viesse dele teria, fatalmente, um curso vertiginoso entre os seus colegas.

Convinha, por conseguinte, que Portela, antes de assentar os alicerces das suas especulações no Rio de Janeiro, tratasse prontamente de desarmar o inimigo, sob pena de mais tarde ser precipitado no chão no melhor do vôo. Mas de que modo havia ele de alcançar semelhante coisa?... A questão era tão delicada que, sem dúvida, daria volta ao espírito mais auda­cioso e mais fino.

Principiou a sondar, de longe, o comendador.

— O homem, pensou de, talvez já se não lembrasse do passado, nem dos seus planos de vingança. Mas qual! Portela conhecia perfeitamente o gênio rancoroso do seu antigo patrão, para se não iludir por esse lado. O único expediente a tomar era apoderar-se do tal documento, fosse como fosse, custasse o que custasse!

Em todo caso, nada disso o incomodaria tanto, se Portela não tivesse em vista mudar de estado, casando-se com uma rapariga de bons recursos, que encontrou em casa de D. Januária, quando aí foi visitar a afilhada, pela primeira vez, depois da sua volta.

Para esse projeto de casamento é que o comendador se tornava verdadeiramente perigoso, porque Portela, na obriga­ção que assinou, se comprometia, sob palavra de honra, a tomar conta de Teresa e a casar-se com ela, logo que o marido falecesse.

Ora, incontestavelmente, havia em tudo isto uma grande dose de tolice. Não se poderia obrigar um homem a casar, assim sem mais nem mais, só porque, em certa época, declarou por escrito que o faria. Mas o fato é que a sua assinatura lá estava, naturalmente reconhecida já pelo tabelião, e, se o mal­dito papel aparecesse pela morte do comendador, ligado ao importante testamento deste, podia, pelo menos, cobri-lo de ridículo, e dificultar-lhe a carreira, chamando sobre ele as suspeitas e a desconfiança de pessoas, para as quais lhe con­vinha passar por homem de vida imaculada.

— Maldito fosse o momento em que se lembrou de requestar a mulher do comendador! Antes tivesse quebrado uma perna na ocasião em que se aproximou dela pela primeira vez!

Em tais circunstâncias, visitava uma ocasião D. Januária, quando um rapaz magrinho, feio, de vinte e tantos anos, se aproximou dele tratando-o pelo nome.

Portela recordava-se de ter visto já aquela cara, mas não conseguia determinar onde e quando.

— Não se lembra do João Rosa?... perguntou-lhe o rapaz. Aquele que quando o senhor estava em casa do comen­dador, só chamava o "João Cabeça"?!...

E riu.

— Ah! exclamou Portela. É isso mesmo! Ora senhores! como você mudou! está um homem. Barbado!...

E depois de medir por algum tempo a pequena estatura de João Rosa, perguntou-lhe com amigável interesse:

— Então, que se faz agora?...

— Continuo lá! disse o outro, armando uma careta.

— Ainda está lá?... insistiu Portela, admirado, mas pos­suído já da idéia de aplicar o João Rosa aos seus projetos.

— Ainda, resmungou o outro.

— Interessado na casa?...

— Qual. Já perdi as esperanças disso. O Figueiredo não me tem querido proteger. Um moço, que entrou muito de­pois de eu lá estar, faz parte há um ano da sociedade e eu ainda continuo como empregado...

— Você casou-se?...

— Não. Estou ainda solteiro.

— Ah! quem sabe se você tem as suas pretensões cá por casa de D. Januária!...

— Não. Dou-me com ela há muito tempo, mas não passa disso.

— Pois, seu João Rosa, eu vou estabelecer-me aqui no Rio com uma casa de vinhos. Tome o cartão. Se você quiser, apa­reça por lá, talvez tenhamos o que conversar. Olhe, amanhã à noite, você está ocupado?

— Não.

— Nesse caso vá amanhã...

— Pois bem.

No dia seguinte os dois encontraram-se de novo. Falaram muito sobre o passado. João Rosa fez referências aos escân­dalos de Teresa.

O Portela, sacudiu os ombros com desdém.

— Não! replicou o outro, o senhor andava nesse tempo muito mordido por ela...

— Tolices!

— Coitada! Está feia, magra ao último ponto, descabe­lada, meio idiota...

— Sim?... disse, Portela, fingindo ignorar essas coisas.

— Se o senhor a visse não reconheceria!...

— Coitada. Era muito doida aquela rapariga!...

— Era da pele do diabo, acrescentou o João Rosa, com o ar de quem tem opinião segura sobre o fato.

Desde então principiaram a encontrar-se com mais freqüência. João Rosa passeava alguns domingos com o Portela e patenteava-lhe, nessas ocasiões, como uma submissão de dependência e amizade. Tinha muito em conta o que lhe dizia o amigo e seguia à risca os conselhos que dele recebia.

João Rosa deu a Portela notícias completas a respeito da casa do comendador; falou do casamento de Olímpia com o Gonçalves; disse a vida desordenada que os dois levaram durante quatro anos; contou os pormenores da separação dos cônjuges; circunstanciou as mudanças de gênio que fizera Olímpia depois do rompimento, os desgostos do velho, a proposta de reconciliação apresentada por Gonçalves, a recusa da mulher, e enfim as tristezas e o recolhimento em que esta por último vivia.

— E o Jacó?... que fim levou? quis saber o Portela.

— Lá está! no mesmo! Não faz a menor mudança!

— O Jacó!... reconsiderou aquele, com um ar cheio de recordações. E disse depois: Deve estar bem velho!

— Mas forte... Parece muito mais moço que o comen­dador!

— E este? Sempre o mesmo, hein?

— Sempre. Eu vou lá duas vezes por semana fazer-lhe a escrita. Pouca coisa!

— Ah! você é quem faz agora a escrita do comendador?!...­

— Sim, por quê?

— Por nada...

E Portela ficou a pensar.

Na primeira ocasião em que esteve de novo com o João Rosa, abriu-se francamente com este a respeito do famoso documento que estava em poder do comendador.

— Você sabe o que são estas coisas!... disse em confi­dência muito amigável. Eu estou no comércio... Aquele velho é muito capaz de cortar-me a carreira... Ele é ran­coroso!...

— Oh!... fez o outro, estalando os dedos.

— Por conseguinte, se você me conseguisse arranjar esses papéis... eu saberia recompensar o seu trabalho...

— Não sei, homem! Eles devem estar muito bem guarda­dos! em todo o caso...

— Ora, na sua posição ser-lhe-á muito fácil de os descobrir; e o comendador, quando der pela falta deles, não acreditará que você os tenha subtraído, porque aquilo não representa nenhum valor. Para que diabo podia você precisar de papéis velhos?... Não são documentos de dívida; não representam dinheiro, nem objeto de preço!... O mais que o velhote pode­ria supor, é que alguém os tivesse inutilizado sem saber do que se tratava.

— Isso é verdade...

— E eu lhe daria um conto de réis, se você me arranjasse o que lhe digo. É preciso notar: com o documento assinado por mim, deve estar uma carta, também minha, dirigida a Teresa, e um frasquinho de vidro com um líquido transparente. Arranja-me isso e dou-lhe um conto de réis. Depois, como para ambos convém guardar o segredo, a coisa ficará só entre nos. Hein? Serve-lhe?...

— Eu vou ver se encontro...

— Você, querendo, acha...

— Pode ser.

E, quando os dois se separaram, já estavam perfeitamente combinados.