Coincidiram com a chegada do Portela ao Rio de janeiro os primeiros sintomas nervosos que se apoderaram de Olímpia, pouco depois do rompimento dos laços conjugais. O comen­dador, preocupado com os incômodos da filha, não pensava em outra coisa. Passeios, distrações, romances, tudo lembrava ele para distrair a enferma. Ora em Petrópolis, ora em Tere­sópolis, ora em Barbacena, andaram os dois, perto de dois anos, em inútil e constante peregrinar.

Isso explica a razão por que Portela não foi logo, desde a sua chegada, perseguido pelo comendador. Não havia tempo para cuidar da vingança; o velho andava arredado de casa, esquecido de si e só cuidoso da sua adorada Olímpia.

Entretanto, Portela, que compreendera perfeitamente a situação, tratou de não perder tempo e firmar na Corte os seus alicerces, de modo a poder mais tarde resistir aos golpes do marido de Teresa, quando este porventura o quisesse derrocar. Uma vez firmado em terreno sólido, não tinha que recear do inimigo, e quase que podia de antemão contar com a vitória.

Nesta convicção se estabeleceu e abriu a trabalhar com a fúria de quem foge de um grande perigo. Todo o seu empenho era granjear simpatias, ganhar posição e juntar dinheiro. Tudo isso conseguiu ele em muito pouco tempo. Portela não esperdiçava um segundo, acumulava quase todo o trabalho do seu armazém, fazia a correspondência, a escrita e a venda ao balcão. Dentro de um ano estava a sua casa já perfeitamente acreditada; o comércio dos vinhos desenvol­via-se com um impulso prodigioso. Portela aumentou então o pessoal, alargou o armazém, e de novo foi a Portugal. Quatro meses depois era de volta, com um novo carregamento e novas especulações. Antes de chegar o terceiro ano de seu comércio no Rio de Janeiro, já lhe havia pingado da pátria sobre a gola do casaco a vermelha tetéia por que de tanto suspirava.

Portela definitivamente era um homem feliz. O do­cumento em poder do outro, longe de o prejudicar, servira, como vemos, para lhe incutir no ânimo resolução e coragem. Dois anos depois o Sr. comendador Portela gozava das melhores simpatias, estava já arranjadinho de fortuna, e olhava de frente para um futuro de causar inveja.

Não tardaria a abrir-se em torno dele as boas relações, os bons sorrisos, as boas rodas fluminenses. No Rio de Janeiro, com uma casa de negócio, uma casaca e uma comenda, vai-se a toda parte e percorre-se familiarmente toda a escala social, desde os bailes da Princesa, até às bacanais das irmandades carnavalescas.

E o certo é que o demônio do Portela tinha um tipo que se apresentava maravilhosamente às suas aspirações. Ninguém daria melhor um comendador. Desde que lhe chegou o título, principiou a transformar-se. Caminhava agora mais teso, em­pinava a cabeça, esticava as pernas e dilatava os lábios nesse risinho discreto e malicioso dos ricaços condecorados. Uma vez raspado o bigode, talhada a suíça e desfalcados pela calva os cabelos da cabeça, terá logo o leitor defronte dos olhos aquele legítimo comendador, com quem tão boas relações travou no primeiro capítulo deste romance.

Mas, como já temos o comendador Ferreira, seja-nos per­mitido continuar a tratar o segundo simplesmente pelo nome. Continuará a ser "O Portela".

Quando o Portela chegou ao Rio, justamente ao tempo em que se via o comendador atrapalhado com a moléstia da filha, João Rosa, ficou exclusivamente encarregado dos negó­cios do pai de Olímpia. Não podia pois desejar melhor ocasião para cumprir o que prometera ao amigo: a casa estava toda em suas mãos; ninguém o surpreenderia enquanto desse a busca.

João Rosa por conseguinte começou a procurar os tais documentos com toda a calma e toda segurança; e, com tanto jeito e minuciosidade mexeu e remexeu nas gavetas e nos segredos do patrão, que, em vez de achar o objeto procurado, achou coisa muito melhor; achou um pequeno cofre de ferro, que jazia cuidadosamente oculto num esconderijo, feito de propósito para isso na parede, por detrás da burra.

O cofre pesava e tinha um segredo na fechadura. João Rosa não descansou enquanto o não abriu.

Estava cheio de libras esterlinas. Ninguém sabia a pro­cedência desse dinheiro, nem o destino que o comendador lhe tencionava dar. Não constava dele em nenhum dos livros de sua escrituração e em nenhuma das notas esparsas.

João Rosa teve uma tentação diabólica. O comendador só mais tarde poderia dar por falta do cofre, e aquele dinheiro representava perfeitamente a independência do caixeiro. Lem­brou-se de tomar passagem no primeiro vapor e fugir do Brasil com o seu tesouro, mas reconsiderou: Para que fugir?... Aquele dinheiro estava por tal forma bem escondido, que o comendador não poderia imaginar que alguém desse por ele... e daí, quem sabia lá se o próprio comendador tinha ciência de semelhante coisa?... se aquele belo segredo não existia ali antes dele tomar conta da casa?... De qualquer forma, concluiu o velhaco: não era preciso fugir; tudo se poderia arranjar limpamente, sem espalhafatos de viagens.

E adotadas estas reflexões, João Rosa procurou o Figuei­redo, pediu a sua conta e deu-se por despedido. Só lhe faltava pôr em dia o exíguo trabalho que estava a seu cargo e esperar pelo comendador, para se despedir deste também por sua vez.

Portela, sempre que o via, lhe perguntava logo pelo resul­tado daquilo que os dois haviam combinado entre si. O outro se desculpava; não descobria os tais documentos, mas que Portela podia ficar descansado, que, se estivessem eles em casa do comendador, lhe haviam de chegar às mãos.

Dias depois o encontrou por acaso. Esteve quase a fazer que o não via, tão pouca importância ligava ele agora a seme­lhante bagatela. Mas uma súbita idéia de especulação, fê-lo apoderar-se dos documentos e guardá-los cuidadosamente consigo.

O comendador chegou nesse dia, sem ser esperado. Vinha aflito; a filha estava pior, o Dr. Roberto acompanhava-os, pre­vendo qualquer capricho da moléstia. Receava a paralisia, o idiotismo e até a morte.

João Rosa declarou que não podia continuar ao serviço do comendador, disse que já não estava em casa do Figueiredo e precisava tratar-se dos pulmões em Barbacena. O velho abor­receu-se muito com isso. Pois o caixeiro queria abandoná-lo naquela situação? O Dr. Roberto entendia que o João Rosa não tinha necessidade de partir com tanta pressa. Mas o rapaz insistiu, queixou-se de que estava muito mal, tossiu, disse que já expectorava sangue, e dois dias depois recebeu o saldo que lhe tocava e entregou em dia o trabalho ao seu substituto.

Constou-lhe no dia seguinte que o comendador ia chamá-lo ainda para pedir algumas explicações sobre o trabalho; João Rosa, a quem não convinha entrar em mais esclarecimentos, apressou a viagem e partiu na primeira madrugada, sem ter entregue os papéis a Portela, a quem escreveu um bilhete com as seguintes palavras: "Pode ficar tranqüilo; acha-se tudo em meu poder. Em breve estarão com o senhor". Portela não se satisfez com isso e foi ao encontro de João Rosa. Já não o alcançou e retrocedeu para a Corte porque tinha de fazer a viagem de que falamos.

Decorreu um ano, Olímpia não tinha melhoras, o comen­dador continuava sobressaltado.

João Rosa voltou cautelosamente à capital, hospedou-se no Hotel do Caboclo e tratou logo de procurar Portela.

Encontraram-se na rua e seguiram juntos para o Passeio Público, porque aí conversariam mais à vontade.

O que se segue já o leitor sabe. Pedro Ruivo, que fingia dormir em um banco do Passeio, ouviu a conversa dos dois e empregou meios e modos de furtar os documentos do Portela; depois foi dar consigo na Avenida Estrela, donde afinal saiu, ameaçado e perseguido, para se esconder na gruta com o fruto do seu roubo.

Pois bem; acompanhemos o gatuno e vejamos o que fez de dos papéis. Pedro Ruivo, logo que retomou o cofre na gruta, ganhou o mato e desapareceu por entre as folhas, como a ligeira cotia, quando sente perto de si algum rumor estranho.

É preciso observar que a gruta do Rio Comprido se estende por todo o sopé do monte e abre várias gargantas, oferecendo diversos caminhos, uns mais curtos e às vezes mais difíceis, outros longos e naturalmente mais pitorescos e agra­dáveis.

Olímpia, Gregório e Augusto, naquele passeio que des­crevemos, foram pelo caminho mais comprido e pitoresco, e penetraram na gruta justamente pelo lugar onde esta principia. Pedro Ruivo ao contrário, chegou lá pelo caminho mais curto e entrou por uma das gargantas laterais, que abrem obscuramente para as bordas da floresta.

O gatuno, uma vez senhor do seu cofre, atravessou obli­quamente a gruta e embrenhou-se no mato pelo lado oposto àquele por onde havia entrado. Fazia um belo luar, mas a vegetação enredava-se por tal forma, que os raios da lua muito a espaço se coavam por entre a mole balsâmica da folhagem. Entreteciam-se os cipós e as parasitas, formando cortinas de verdura e como fechando aos forasteiros a passagem da mata.

Se a viagem era difícil, também era perigosa, porque as cobras descem à noite dos seus covis, arrastando-se pelo morro à procura do que comer e beber.

Mas Pedro Ruivo, aguilhoado pelo medo, varava o mato que nem uma anta assustada.

Atravessou o morro e, depois de caminhar três horas seguidas, achou-se em um pântano sombreado de árvores. Palhoças esparsas branquejavam aqui e ali por entre o silêncio melancólico da noite. Percebia-se a vizinhança de algum arrabalde pelo longínquo barulho de cães, que ladravam à lua.

Pedro Ruivo continuou a andar. Estava em Catumbi. Em breve o paredão comprido do cemitério começou a estender-se diante de seus olhos como, uma mortalha que se desdobra. O bairro modorrava deserto. Ouvia-se ao longe a cansada mú­sica de uma festa, e um burro inválido passeava silenciosamente pela estrada, a manquejar da perna.

O gatuno continuou a andar na direção do Campo de San­tana. Não se arreceava da polícia, porque já a conhecia de perto. Em certa altura da Cidade Nova parou defronte de uma casa, em cuja porta brilhava um miserável farol de folha com a seguinte inscrição "Hospedaria do Gato".

Pedro Ruivo tirou do bolso um pouco de dinheiro, que escamoteara do quarto de Gregório, e pôs-se a contá-lo.

— Chega, disse ele consigo. E bateu à porta da hos­pedaria.

Veio abrir um homem magro e macilento, com a camisa por fora das ceroulas e uma lanterna na mão.

— Ó Estica! Como vai essa força?

— Vai se rolando, e você?

— Mais morto que vivo! Ainda há lugar por aí?

— Sim, mas você já deve duas dormidas e sabe que...

— Ó, seu vinagre! Eu não lhe disse que queria fiado!

— Também não é preciso zangar-se... Suba!

Pedro Ruivo caminhou na frente, enquanto o Estica fechava a porta, e estendia depois a lanterna para iluminar a escada.

— Isto por cá está preto como o padre! gritou Pedro Ruivo, já em cima, dando um encontrão.

— Espere lá, criatura! Não faça barulho que pode acor­dar os hóspedes!

Daí a pouco se introduziam os dois por um estreito cor­redor formado de tapumes de madeira. E depois de uns trinta passos, chegaram ao quarto que o estalajadeiro destinava ao Ruivo.

— Pronto! disse o homem, pousando a lanterna no chão e procurando matar uma pulga que sentiu na perna.

Pedro Ruivo tirou do bolso uma nota de dez tostões e passou-a ao outro, dizendo-lhe que pagasse as três dormidas e lhe trouxesse parati. Em seguida assentou-se na espécie de cama que havia no quarto e colocou ao lado de si o cofre.

O Estica, que se tinha afastado, voltou com um pequeno copo de aguardente e entregou-o ao Ruivo.

— O troco? reclamou este.

— Que troco?...

Seis tostões do que eu devia, trezentos réis de hoje, três vinténs de parati; ainda tenho quarenta réis. Venha!

— Você sabe que depois da meia-noite o parati é um tostão!...

— Ladrões como ratos! resmungou Pedro Ruivo, tirando do bolso um pedaço de vela, que acendeu na lanterna do hospedeiro.

— Boa noite! disse este, afastando-se.

Pedro Ruivo fechou a porta, acendeu o cachimbo e gru­dou a vela no chão com alguns pingos da mesma.

O quarto teria doze palmos sobre seis de largura. A cama, único objeto que lá se achava, além de um moringue esbor­cinado, era de ferro e sem lençóis.

Ruivo assentou-se no chão, abriu o cofre e, depois de beber um gole de aguardente, começou a examinar-lhe minu­ciosamente o conteúdo. Encontrou a declaração assinada pelo Portela, a carta em que este remetia o veneno à amante, e mais uma fotografia de cada um dos criminosos, completamente emolduradas.

— Ora! disse o gatuno quando se convenceu de que mais nada havia. Para tão pouca coisa não era preciso uma caixa deste tamanho! (E passou a ler com dificuldade os papéis, tendo examinado minuciosamente os retratos).

— Este deve ser daquele sujeito gordo do Passeio Público, considerou ele, procurando mentalmente comparar a fotografia do Portela com o original. E acrescentou, passando a exami­nar a de Teresa: — Esta outra não conheço, mas deve ser gente graúda, a julgar pele luxo com que está vestida! Enfim, have­ríamos de ver quanto tudo isto poderá dar!...

Em seguida, tirou um cordão do bolso e com ele fez um só pacote dos papéis e dos retratos.

— Amanhã temos tempo para tratar disso!...

E meteu o pacote na algibeira do paletó, do qual fez uma rodilha e improvisou um travesseiro; em seguida deitou-se e adormeceu logo, porque estava muito cansado.

Só daí a três dias conseguiu encontrar-se com o Portela. Este, que já vivia desesperado com o sumiço dos documentos, e supunha que João Rosa pretendia especular com eles, ficou muito satisfeito com as primeiras palavras do Ruivo.

— Está tudo aqui! disse o gatuno, mostrando o pacote. Se quiser fazer negócio, é questão decidida!...

— Eu dou-lhe uma boa gorjeta...

— De quanto? perguntou o gatuno.

— Deixe estar que por isso não havemos de brigar...

E apresentou uma nota de cem mil réis.

— O que é lá isso!... Um conto dava o senhor ao outro!

— Pois você imaginou que eu seria capaz de lhe dar um conto de réis?

— Foi o senhor mesmo quem marcou o preço, lá no Passeio Público.

— Sim, mas isso era para descontar o que me deve aquele sujeito. Com você o caso muda de figura. Tenho de pagar em dinheiro!

— Pois eu só entrego os papéis por um conto de réis.

— Não! dessa forma não quero.

— Bom, nesse caso farei deles o que bem entender. Já sei quem nos há de comprar...

— Não seja tolo, porque esses papéis não têm valor para mais ninguém.

— Paciência! Ficarão comigo. Eu também gosto de foto­grafias...

— Quer duzentos mil réis?

— Nem quatrocentos.

— Pois então faça o que entender!

— Adeus, disse Ruivo, afastando-se.

— Olhe! volveu o outro. Dou-lhe quinhentos...

— Não vai nada! respondeu o Ruivo. Quer dar o conto ou não quer?

— Ora, vá pentear monos! exclamou Portela certo de que o gatuno havia de voltar, quando se convencesse de que não alcançaria maior pagamento.

Mas Pedro Ruivo não voltou, e Portela, que por essa época havia tomado a seu serviço o Talha-certo, encarregou a este tratante de alcançar os papéis das mãos do súcio.

— Nem é preciso dar-lhe nada! afirmou o capanga com ar de quem confia muito em si. Pode ficar descansado, patrão, que os papéis hão de aqui chegar, quer aquele bisborria queira, quer não queira!

A coisa, porém, não era assim tão fácil. Talha-certo não conseguiu, como supunha, alcançar imediatamente os papéis do poder de Pedro Ruivo. E Portela, poucos dias depois, ao passar pela rua dos Ourives, teve que esconder-se no primeiro corredor, porque o gatuno, logo que o viu principiou a gritar-lhe com as mãos nas cadeiras:

— Então, comendador, seu capanga está encarregado de arrancar-me os seus documentos, hein?! Quer ver se pilha a coisa sem puxar pela bolsa! Está enganado, meu amigo, ou o senhor cai com o cobre, ou tudo aquilo vai publicadinho no jornal. É escolher!

E, desde então, o Pedro Ruivo se converteu para o nego­ciante de vinhos em uma sombra perseguidora. Portela já estava resolvido a dar-lhe o conto de réis, ou mais, contanto que se visse livre dele por uma vez; porém, temia agora entrar em qualquer ajuste, porque o maldito se punha aí a gritar e a fazer escândalos.

Talha-certo ofereceu-se ainda para o despachar com uma boa navalhada.

— Isso é pior! respondeu o Portela; você não lhe dava cabo da pele e o homem afinal ficava mais assanhado! Além do que não me convém assassinar pessoa alguma... O melhor é dar-lhe o dinheiro e ficarmos livres por uma vez dessa massada.

E assim resolveram. Talha-certo começou a procurar Pedro Ruivo; mas este não aparecia. Ninguém sabia dar notícias dele.

Pedro Ruivo não era encontrado na capital pelo simples fato de haver partido poucos dias antes para S. Paulo, à som­bra de um fazendeiro de boa-fé, que se deixou comover pelas lábias do velhaco. O aventureiro ainda possuía o talento de impressionar, quando estava de maré para jogar com a fisio­nomia. O Portela é que não podia ficar tranqüilo, enquanto não estivesse senhor dos documentos, e recomendava sem ces­sar ao seu capanga que se não descuidasse nas pesquisas.

Mas deixemos tudo isso de parte. Tenha a bondade o leitor de unir os pés, encolher os braços, dobrar ligeiramente as pernas e dar ao corpo o impulso necessário para um novo salto. Vamos pular por cima dos episódios, que medeiam desde as cenas da Avenida Estrela até àquela crítica situação em que deixamos Gregório ao lado de Olímpia no pequenino chalé da Tijuca.

Não precisa empregar o leitor toda a sua força de músculos, porque o salto, se comporta muitas cenas, não abrange todavia muito tempo.

Pronto! Estamos novamente em casa do comendador Ferreira. O Dr. Roberto segue viagem para o norte. Olímpia parecia já consolada da morte de Scott, e o velho Jacó acompanha fielmente aos amos.

São sete horas da tarde. O sol mergulhou no horizonte, ensangüentando o céu. A natureza envolve-se no crepúsculo da noite para adormecer. O canto da cigarra vai amortecendo, à proporção que recrudesce no fundo dos vales o coaxar das rãs.

Na rua acendem-se os lampiões, os bondes passam de um quarto em um quarto de hora, e um piano da vizinhança soluça o Spirito gentil da Favorita.

Penetramos no gabinete, onde deixamos Gregório, assen­tado aos pés de Olímpia. Ela acaba de erguer-se e de afastar-se, abandonando o pobre rapaz estarrecido de pasmo sob a impres­são daquela terrível frase: "Você é um idiota!" O álbum, que es dois folheavam, jaz estatelado no chão. Gregório perma­necia estático no seu tamborete, e olha com espanto para a cortina da porta, que ainda treme com o repelão que lhe deu Olímpia ao sair.

O comendador, que acabava de fazer a sua sesta, aparecia então na sala de jantar. A filha correra para ele, alvoroçada, passara-lhe os braços em volta do pescoço, e dera-lhe um beijo na face.

O velho, meio perturbado pela efusão daquela carícia brusca, ia pedir explicação dela, quando a rapariga lhe cortou a palavra, perguntando em que dia saía o primeiro paquete para a Europa.

— Hein?! o primeiro paquete?! Queres viajar?!

— Quero; quando sai o primeiro vapor?

— Não sei ao certo; talvez só no princípio do mês que vem...

— Não me serve! Quero antes. Que viagem há por estes dias?

— Mas que resolução é essa?...

— Ó meu Deus! Sempre os mesmos espantos! Pois o médico, e o senhor mesmo, não têm aconselhado constante­mente que faça viagens?!...

— Sim, mas tu mostravas uma tal repugnância!...

— Mas já não mostro, ora essa!

— Bem. Vamos tratar disso...

— Então seguimos no primeiro vapor que sair!

— Para onde?! perguntou o pai, assustado.

— Seja lá para onde for... O destino do primeiro que sair!

— Isso é loucura!

— Pois então seja! Não viajo! Acabou-se!

E Olímpia afastou-se para o seu quarto, de mau humor.

O velho foi encontrar-se com Gregório na sala de visitas. Jacó acabava de acender o gás.

Depois dos cumprimentos, o comendador, que vinha ainda impressionado pelas palavras da filha, principiou logo a falar sobre o projeto da viagem.

— Ah! D. Olímpia quer viajar?... perguntou Gregório.

— Quer, e é sangria desatada; quer meter-se no primeiro vapor que sair!...

— E a causa dessa resolução?

— Ora! a causa! nervos! Tudo aquilo são os nervos que estão trabalhando. Eu só peço a Deus que me dê paciência, ao menos até vê-la completamente restabelecida.

E o paciente velho, depois de dar uma volta pela sala, acrescentou com um gesto de contrariedade:

— E logo agora é que não está aí o Dr. Roberto. Ao menos se o Dermeval aparecesse!...

— O comendador o que resolveu?

— Eu, já se sabe, faço-lhe a vontade. O doutor disse que a não contrariasse!...

— Então sempre seguem no primeiro vapor?...

— Não sei se no primeiro, mas se Olímpia não mudar de resolução, iremos quanto antes. É o diabo, porque eu até pre­cisava estar aqui por este tempo à testa de umas tantas coisas; além de que muito me custa deixar a casa assim ao desamparo, como aliás ela se acha desde que Olímpia caiu doente.

E, depois de urna pausa em que ambos ficaram a pensar, o comendador acrescentou:

— Homem, o senhor é que podia vir conosco!...

— Eu, exclamou o rapaz. É impossível! Posso lá viajar!...

— Não! isso até lhe seria muito útil... O senhor está em excelente idade de conhecer a Europa. Olhe, para não ir com as mãos abanando, eu o encarregaria da minha correspondên­cia, pagando-lhe o trabalho. Então? Que tal lhe parece a idéia?...

— Não, não é possível, respondeu Gregório, perturbado. Tenho muito desejo de visitar a Europa, mas não nessas condições...

— É que o senhor nunca encontrará ocasião melhor.

— Sim, mas...

— O senhor não tem aqui família que o prenda; seu emprego não depende do governo; que, pois, o poderia im­pedir de fazer-nos companhia?...

— Não há dúvida, balbuciava Gregório, sem ânimo de resistir; mas é que não sei se farei bem em aceitar o seu convite...

— Ora, deixe-se de histórias, Gregório! eu conto com o senhor! Não me diga que não!

— Mas...

— Não admito razões! Sei que será para seu bem!

— Ora esta!... disse consigo Gregório, logo que se afastou o comendador. Isto não é o demônio? Pois eu a fugir do perigo, e o próprio pai a empurrar-me cada vez mais ao lado da filha!...

E, tendo refletido por alguns instantes, resolveu aceitar a situação.

— Vou! concluiu ele; aconteça o que acontecer! Aquela mulher não me tornará a chamar idiota!

Mas daí a pouco, quando se servia o chá, o comendador disse à filha:

— Sabe, sinhazinha? O Gregório vai conosco.

— Hein? perguntou ela, apertando os olhos. Conosco para onde?

— Ora essa! Já te não lembras? replicou o velho, rindo. Pois não estamos com uma viagem projetada?

— Ah! já nem pensava em semelhante coisa. E, se fôsse­mos, eu não consentiria que esse senhor se incomodasse em acompanhar-nos...

— Oh! minha senhora, disse Gregório levantando-se; eu teria o maior prazer em...

— Sim, mas eu, repito, é que não consentiria!

E, quando ela ficou só com o pai, lhe perguntou logo que idéia extravagante era aquela de convidar um estranho para a viagem.

— Estranho é o que estás dizendo, menina? É a primeira vez que te vejo falar assim desse pobre moço. Tu te mostravas tão amiga dele; ficavas tão satisfeita quando ele te aparecia; sempre achavas bem escolhidos os livros, os jornais e as gra­vuras que ele te ofertava, e agora chamas extravagância con­vidá-lo para nos fazer companhia! Pensei até que, convidando-o te fosse eu muito agradável; além de que, eu e o Jacó nem sempre poderíamos em viagem estar ao teu lado, conversar contigo, e o Gregório coitado, parecia-me excelente para isso; mas, uma vez que já não pensas em viajar, nem precisamos estar aqui a falar ainda em semelhante coisa!...

— Não. Eu estou disposta a fazer a viagem; ainda há pouco disse aquilo para não ter de declarar francamente que não aceitava a companhia de Gregório.

— Isso agora é que é o diabo! resmungou o comendador; já convidei o rapaz, ele não queria ir; insisti, afinal aceitou. Ora, com que cara vou eu dizer-lhe que fica o dito por não dito?! que diabo de desculpa lhe posso eu dar?!

— Pois então não dê desculpa nenhuma! não se fará a viagem!

— Mas tu tens alguma razão de queixa do Gregório?...

— Eu não tenho razão de queixa de ninguém!

— Mas então por que não queres que ele vá, minha filha? Se a tua viagem é um pretexto de distração, que mal faz mais um companheiro?

— Temos outra! disse ela. Pode o senhor provar quantas vezes quiser que será melhor levarmos o Gregório em nossa companhia, eu entendo que não e declaro que não estou dis­posta a ser contrariada!

— Está bom, não te zangues, minha filha, Gregório não irá conosco! Eu retirarei o convite que fiz.

No dia seguinte, com efeito, o comendador remeteu ao moço uma carta muito atenciosa, dizendo que havia pensado bem no sacrifício que exigira dele e estava agora resolvido a não o aceitar.

Gregório compreendeu tudo, mas dissimulou. À noite apareceu em casa do comendador e Olímpia o recebeu friamente. Durante o serão não lhe dirigiu a caprichosa uma só vez a palavra.

O rapaz voltou dessa visita muito contrariado e triste.

Não pôde dormir; a imagem de Olímpia não lhe saía da cabeça.

— Sou mesmo um idiota! repetia ele, a voltar-se de um para outro lado da cama. Sou um idiota! ela tem toda a razão! Pois se a desejo, se a adoro e se me não posso fazer seu marido, por que a repeli tão asnaticamente?

No dia imediato apresentou-se de novo em casa do comen­dador, às mesmas horas do célebre episódio do álbum. O velho, como então, fazia a sua sesta; Olímpia passava os olhos por um livro, assentada no jardim, debaixo de um caramanchão.

Gregório entrou sem ser sentido, encaminhou-se para ela, pé ante pé, e, quando a teve ao seu alcance, deu um salto para a frente e surpreendeu-a com um beijo na boca.

Pela noite desse mesmo dia, quando Gregório se retirou da casa do comendador, Olímpia disse ao pai que já estava resolvida a consentir na viagem em companhia do rapaz.

— Então para que me obrigaste a destruir o meu con­vite?... Ora aí está uma dessas coisas com que deveras me aborreço!

— Mudei de resolução! respondeu Olímpia, sem erguer os olhos.

— Tanto pior para ti, replicou o pai, porque agora o passo está dado! Eu não hei de voltar atrás ainda uma vez! Havia de parecer caçoada; além do que, ele com certeza não aceitaria!...

— Encarrego-me eu do convite, disse Olímpia, sem se perturbar.

— Estou pressentindo é que acabarás por me fazeres ri­dículo aos olhos daquele moço.

No dia seguinte estavam de mudança para Botafogo. A viagem ficara resolvida para a primeira quarta-feira. Iriam para Lisboa em um paquete francês que havia de sair nesse dia.

Não fizeram itinerário. Demorar-se-iam em cada lugar o tempo que lhes apetecesse. Se Olímpia aproveitasse com a viagem, eles seguiriam adiante, iriam a Paris, talvez chegassem à Inglaterra. Não sabiam ainda se teriam de demorar meses ou anos.

A casa de Botafogo ficara em uma grande desordem. Durante os poucos dias que precediam à viagem, o comendador não podia descansar um instante. Era preciso ordenar seus negócios, escrever cartas para a direita e para a esquerda, passar procurações, fechar o testamento e deixá-lo em poder do Figueiredo.

Quatro dias era muito pouco tempo para tanta coisa. Mas o velho não descansava.

Olímpia parecia reanimada com os sobressaltos daquela viagem. Vivia alegre, esperta, falava com vivacidade, prepa­rava-se com muito interesse, consultava os guias de viajantes, estudava mapas da Europa, discutia sobre as roupas que mais convinha levar. À mesa não se tratava doutra coisa; imagina­vam-se peripécias, calculavam-se os episódios que haveriam de surgir quando se afastassem do Brasil.

Dois dias antes da saída do vapor, o comendador passara a manhã todo ocupado no seu gabinete. Interrompeu o tra­balho para almoçar, porém mal sorveu o último gole de chá, recolheu-se de novo, fechando a porta sobre si, depois de recomendar que o não interrompessem.

Gregório ficou à mesa com Olímpia. Não disseram pala­vras por alguns segundos, mas quedaram-se a olhar um para o outro, embevecidos, enamorados.

— Tu gostas muito de mim?... murmurou ele afinal, segurando-lhe uma das mãos.

— Se gosto!... respondeu ela, ameigando os olhos.

Mas tiveram logo de mudar de atitude, porque o copeiro apareceu para levantar a mesa.

Olímpia propôs que se passassem para a sala de trabalho. Gregório acompanhou-a.

— Sabes de uma coisa? segredou-lhe a filha do comen­dador, assim que se viu a sós com ele. Tu ainda és muito tolo!...

— Por quê? perguntou Gregório, tomando-a pela cintura.

— Por muitas coisas... respondeu ela, com a voz alte­rada... Às vezes tenho receio do futuro! Tu és muito criança!...

— Que tem isso, se te adoro, minha Olímpia?

— Tenho medo das conseqüências! Quando me lembro do modo austero pelo qual eu própria acusava as mulheres levianas... fico envergonhada, acredita!

— Não penses nisso!...

— Não posso deixar de pensar. É tão bonito uma mulher conservar-se honesta!...

— Não penses nisso, repetiu Gregório, procurando cha­má-la ao amor.

Olímpia ia abandonar-se, quando um barulho surdo, de corpo que cai no soalho, a sobressaltou.

— Que é isto?! exclamou ela, correndo para a porta, trêmula.

Jacó e os outros servos haviam já acudido ao estranho ruído. O choque partira do quarto do comendador. Jacó começou a bater na porta do gabinete. Ninguém respondia.

— Que sucedeu a meu pai?! gritou Olímpia, já muito pálida, sem poder dar mais um passo, porque o corpo lhe tremia todo.

Ouviram-se então uns roncos guturais dentro do gabinete.

— Ai! gritou Olímpia, perdendo os sentidos e estrebuchando.

Gregório apoderou-se dela, enquanto os criados arromba­vam a porta do quarto do comendador.

Encontraram-no estendido no chão, roxo, com os olhos no branco, a boca aberta, a língua inchada, e os membros contraídos. A burra estava afastada do seu lugar, via-se o segredo da parede aberto e vazio. Sobre a mesa papéis re­voltos. O quarto em desordem, denunciava que pouco antes houvera ali a busca desesperada de qualquer objeto.