A casa ficou logo numa grande atrapalhação. Olímpia foi conduzida em gritos para o seu quarto. Dois criados correram a chamar o primeiro médico que encontrassem, e Jacó ajoe­lhou-se soluçando ao lado do amo.

Ninguém mais se entendia. Figueiredo, que fora preve­nido da catástrofe, apresentou-se esbaforido, a perguntar o que sucedera naquela casa. Ninguém sabia explicar o que era.

Chegou afinal o médico. O comendador passou carre­gado para a alcova, e o seu ex-sócio, com o bom senso prático de que dispunha, tratou logo, inalteravelmente, de vedar a quem quer que fosse a entrada no gabinete.

Mais tarde apareceram outros facultativos e começaram logo a chegar visitas de amizade.

Olímpia ficou prostrada de febre; as crises repetiam-se-lhe quase sem intermitência. O Dr. Dermeval não lhe abandonava a cabeceira.

O comendador expirara à meia-noite, depois de esgotados todos os recursos da medicina; e, como não pudessem contar com a filha, que continuava sem dar acordo de si, o subdele­gado da freguesia, acompanhado de competente escrivão, mandou proceder à aposição dos selos nas portas do gabinete em que se achava o incompleto testamento do morto.

Só dois dias depois, quando alcançaram cinco testemunhas, a mesma autoridade tornou a abrir as portas, para se formar o testamento nuncupativo.

Olímpia por esse tempo havia sido conduzida já para a casa do Figueiredo. Não lhe disseram que o pai deixara de existir.

O enterro saiu às cinco horas da tarde do dia imediato ao falecimento do comendador. Foi muito concorrido. O comér­cio abalou-se; os carros formaram uma serpente negra, que se estendia por toda a praia de Botafogo. Um poeta da época, amigo de algum dos caixeiros do Figueiredo, recitou uma poesia, de que se falou depois, entre negociantes, com muito agrado, e o Jornal do Comércio publicou, na sua parte ineditorial, um artigo sério a respeito do falecido, pondo-lhe em relevo as qualidades práticas, as suas virtudes de pai de família e os serviços que ele em vida prestara ao Brasil, como sócio benemérito de várias instituições filantrópicas.

O testamento do comendador Ferreira causou muita im­pressão; era um testamento original. O pobre homem fora surpreendido pela morte, justamente na ocasião em que reunia os seus papéis e formulava as suas disposições. Encontraram um aglomerado de notas e declarações.

Havia várias referências. O falecido deserdava a mulher, porque se casara com escritura de separação perpétua de bens. Referia-se o testador a uma declaração de Luiz Portela, a qual não apareceu no lugar indicado; havia também uma referência acerca de certo cofre de ferro, contendo cinco mil libras esterlinas, que o falecido legava à sua filha Olímpia. O cofre não apareceu igualmente.

Deram-se logo as providências para se proceder a inqué­rito no empregado que se encarregara da escrita do comen­dador e no pessoal da casa. João Rosa estava ausente.

Constava ainda, nas disposições do morto, de um legado de vinte contos destinados ao advogado que se quisesse encar­regar de proceder contra Portela. E, no caso que esse dinheiro não pudesse ter semelhante aplicação, deveria reverter, no fim de dez anos, em benefício do Gabinete Português de Leitura. Isso mesmo dizia o falecido em uma carta dirigida à redação do Jornal do Comércio.

O mais eram disposições sobre bens móveis e imóveis.

Portela achou muito prudente ir à Europa buscar um novo sortimento de vinhos. Mas um amigo seu, entendido em tricas do foro, afiançou-lhe que as declarações do comendador não faziam fé perante a lei.

— Portela que estivesse descansado: não lhe poderia su­ceder por aí violência alguma.

O homem, porém, não se tranqüilizou com isso, e deu de velas para Portugal. O que ele temia não era precisamente ter de cumprir com as determinações do defunto; mas era cair no ridículo e desmoralizar-se aos olhos da mulher a quem pre­tendia para esposa: aquela agregada da casa de D. Januária, de quem vamos agora tornar a falar.

Chamava-se Matilde.

Não conhecera os pais. O tutor havia três anos, quando ela tinha quinze, retirou-a do colégio para a confiar aos cui­dados da velha Januária.

Esse tutor era um velho farmacêutico, que enriquecera a curar feridas de mau caráter a cinco mil réis por cabeça. Homem de inalterável economia e de uma saúde inquebran­tável. Poucas pessoas, raríssimas, o conheceram mais moço. Há vinte anos era aquilo mesmo que se via agora.

Cabelos curtos, grisalhos, cara toda raspada, boca seca, dentes magníficos, ombros largos, pouca barriga e pouca esta­tura. Enviuvara aos quarenta anos para nunca mais casar. Agora tinha setenta. A esposa não lhe deixara filhos, mas ele arranjara dois naturais, um dos quais trabalhava em sua companhia na farmácia; o outro nunca tomara caminho, caíra na vagabundagem e era de vez em quando recolhido à estação de polícia, bêbedo.

O velho chegara-lhe ao pêlo por várias vezes uma bengala de cana da Índia, que trazia sempre consigo. Mas da última o peralta ganhara a rua, gritando ao pai que, em vez de lhe abrir feridas nas costelas, melhor seria que as fosse fechar aos fregueses! E nunca mais apareceu.

O farmacêutico também não queria ouvir falar em seme­lhante biltre: "Que o leve o diabo!" resmungava ele, quando alguém lhe levava notícias do filho. "O governo é que há muito tempo lhe devia ter pregado o côvado e meio de cano às costas. Para não ser ruim! Peste de um vadio!"

O farmacêutico era muito excêntrico, era um tipão: não tirava da cabeça o seu grande chapéu de pêlo de seda, cuida­dosamente alisado. Às seis horas da manhã já estava de pé ao balcão da botica, a curar feridas, a despachar receitas, a misturar ungüentos e embolar pílulas; às nove horas subia para almoçar, e mal terminado o almoço, voltava ao trabalho, sem nunca descobrir a cabeça. O jantar era justamente a mesma coisa que o almoço, com a diferença das horas. De resto não ia a teatros, não visitava ninguém que estivesse de saúde, e o tiro das nove da noite já o encontrava dormindo, não de chapéu, mas de barrete de algodão; o outro, o seu companheiro de todo o dia, o chapéu, esse descansava então ao lado da cama, dentro de uma caixa de couro.

Era muito popular, muito conhecido, se bem que pouco estimado. Contavam dele algumas anedotas engraçadas e pe­queninos fatos de grande miséria.

As circunstâncias que fizeram dele tutor de Matilde, não podem interessar a ninguém. A rapariga era filha de um sujeito, outrora seu caixeiro, e que lhe pedira na hora da sua morte tomasse conta da pequenita. Como o agonizante dei­xava para aí fortuna superior a quatrocentos contos, o farma­cêutico encarregou-se da tutoria, chegando-se mais tarde a dizer até, pela boca pequena, que ele especulava com os bens da órfã.

Contos largos! O certo é que Moreira, tal se chamava o farmacêutico, por mais de uma vez dera aos demônios seme­lhante massada, e jurara, sem tirar o chapéu da cabeça, que nunca mais cairia na esparrela de se fazer tutor de ninguém! "Nem de meu próprio pai, que se apresentasse!" bradava ele cheio de indignação.

Entretanto Matilde bem pouco lhe poderia dar que fazer, porque era de seu natural não exigente e sumamente dócil.

Nada tinha ela de bonita, nem de espirituosa, mas dispu­nha de um todo simpático e bondoso. Não atraía pelos encantos, mas encantava pela simplicidade dos seus gostos, pela doçura da sua voz e pela docilidade do seu gênio.

O áureo cheiro do dote dava-lhe a muitos olhos certo prestígio, e puxava sobre ela as vistas cubiçosas de uma ma­tilha de galfarros. Mas de todos os pretendentes era Portela o que até aí parecia preferido, tanto pela abastada rapariga, como por D. Januária, cuja opinião não devia ser para des­prezar em semelhante assunto.

D. Januária gozava para o Moreira, e para muita gente, imaculada reputação de honesta. Em sua longa e pobre viuvez ninguém achara jamais com que lhe enodoar a pureza dos costumes e a austeridade da conduta.

Ser honesta ao lado de um marido moço, e forte, e de cujas mãos caíam nas da mulher os recursos necessários para manter confortável e decentemente a vida, muito pouco será; mas ser honesta, quando é preciso tirar da agulha e do ferro de engomar os meios de subsistência; ser honesta aos vinte anos, quando temos a bolsa pobre e o sangue rico; quando o armário está vazio, mas a imaginação cheia; quando a cozinha está gelada, mas o coração encandecido; ser honesta com os cabelos pretos, a tez limpa e fresca, os olhos brilhantes e for­mosos; ser honesta quando se tem todos os dentes e não se tem o que comer; quando se tem um colo branco e macio e não se tem com que o resguardar — isso é muito, isso é extra­ordinário!

Januária foi assim. Enviuvou pouco depois de casar e, aos vinte anos, em plena mocidade, na primavera dos seus encantos, quando lhe verdejavam e floresciam as esperanças no coração, ela resistiu a todas as vozes sedutoras, que lhe suspiravam e gemiam em torno dos ouvidos, como se a alma apaixonada de Tenório andasse errante pelo espaço, a cantar eternamente os seus amores egoístas.

Ofereceram-lhe sedas, jóias; falaram-lhe em carruagens; mostraram-lhe, da miserável janela da sua mansarda, o mundo feliz que lá embaixo se embriagava de prazer. E o marulhar daquele oceano de gozos, e o crepitar dos risos e dos beijos, e o ruído quente dos almoços no campo, pelas manhãs de verão, à sombra das mangueiras ou ao sussurrar das cascatas da Tijuca; nada venceu conquistá-la.

Embalde o champanha transbordou das taças o seu aljôfar inebriante; embalde Offenbach atirou aos ares as notas ende­moninhadas das suas partituras; embalde os carnavais, os vaudevilles, os hotéis, os circos e as corridas estridularam por toda a parte, chamando à loucura, ao prazer, ao riso! A pobre viúva fechou-se a tudo isso e continuou a aviar encomendas de costura, ao lado de uma velha patativa, que possuía do tempo do marido.

Foi nesse tempo que conheceu o farmacêutico. Januária, quando escassearam as encomendas de costura, desfiava linho usado, para vender o fio nos hospitais e nas casas de caridade. Moreira era um dos seus bons fregueses. Já por essa época explorava ele, com muito sucesso, as feridas do próximo.

Era moço então — teria trinta e cinco anos; não sabemos se já gozava da singular mania do chapéu, mas podemos afir­mar que foi ele um dos primeiros demônios dos que tentaram desviar a formosa e ríspida viúva da perfumada e santa obs­curidade em que vivia.

A princípio, o farmacêutico, cujos negócios da botica iam já perfeitamente encaminhados, supôs a coisa muito fácil de resolver e declarou francamente a Januária as intenções que mantinha a seu respeito.

— A senhora deve ter uma casita melhor e mais guarne­cida do que está, disse ele, com o aspecto desinteressado e superior de quem gosta de fazer o bem pelo bem; deve igual­mente passar melhor de boca e poder contar com certas como­didades e certos arranjos domésticos. Roupa, por exemplo: a senhora quase que não tem o que vestir! O querosene estraga-lhe a vista; e este trabalho, tão puxado, pode vir a dar-lhe com os ossos no cemitério! Deve a gente trabalhar para viver e não para matar-se! A senhora puxa demais pelas forças, abusa do trabalho; é impossível que isso não lhe venha a fazer mal!...

— Que remédio!... respondeu ela, com um gesto de resignação; as costuras dão agora tão pouca coisa!...

— Mas para que só conta com as costuras?... A senhora precisava de alguém que a ajudasse; algum rapaz decente e de bons costumes que a protegesse...

— De que modo? perguntou ela, talvez compreendendo já a intenção do farmacêutico.

— Ora, de que modo! Há tantos modo de proteger uma pessoa!...

— É por isso mesmo que eu pergunto qual deles é...

— Que modo há de ser?... ligando-se à senhora... Diga-me uma coisa: se lhe aparecesse um rapaz nessas con­dições e que estivesse disposto a fazer o que eu disse, a senhora não o aceitaria?

— Ah! se ele fosse boa criatura e caso se agradasse de mim... não digo que não... mas qual! interrompeu ela com um sorriso triste e ao mesmo tempo gracioso; quem hoje escolhe uma viúva pobre como eu?...

— Quem?! exclamou o Moreira esquentando-se. Um rapaz que eu cá sei!...

— O senhor está gracejando!... observou ela.

— Por Deus que falo a sério!

— E esse rapaz quem é?

— A senhora o conhece...

— Pode ser, mas eu conheço tanta gente!...

— Ele não está longe daqui...

— Não entendo...

— Um pobre farmacêutico, chamado Moreira; não é rico, nem tem dotes físicos, mas passa por boa pessoa...

— O senhor?! perguntou ela, franzindo as sobrancelhas.

— Sim, minha querida Januária, respondeu ele procurando segurar-lhe uma das mãos. Há muito tempo que estou doido por dizer-te isto, mas...

— Mas como, se o senhor é casado?!

— E que tem isso?... Acaso, por ser casado, não posso tomar conta de uma mulher a quem ame?...

A viúva afastou-se tranqüilamente, sem um gesto de indignação, e, quando chegou à entrada do seu quarto, vol­tou-se e disse ao Moreira com toda a calma:

— O senhor pode retirar-se e tenha a bondade de não voltar aqui, porque não o receberei. Diga a sua mulher que o vestido de fustão está pronto, e que me desculpe não lhe aparecer mais em casa para ir buscar as outras encomendas.

E fechou-se no quarto.

O farmacêutico ficou a olhar um instante para a porta fechada.

— Ora esta! disse ele afinal e ganhou a rua, aborrecido com aquela decepção, mas instintivamente penetrado de res­peito pelo caráter da viúva; o que aliás não impediu que, daí por diante, nem só não lhe desse mais trabalho e não lhe comprasse o fio, como também ainda se empenhasse com alguns seus conhecidos para que fizessem outro tanto.

O resultado foi que a viúva, ao fim de pouco tempo, se achava a braços com um milhão de dificuldades e via, aflita, chegar o momento terrível em que fosse preciso um pedaço de pão para matar a fome, e não houvesse.

Então resolveu alugar-se como criada em casa de alguma respeitável família. Apareceu-lhe arranjo. Era uma gente que morava para além do Campo de Santana, nesse tempo ainda muito pouco concorrido.

A princípio custou-lhe bastante afazer-se ao seu novo estado, mas o desejo de viver honestamente, a necessidade ingênita de conservar-se virtuosa, triunfaram de todos os obstáculos, e Januária conseguiu passar alguns anos a servir sem nunca relaxar os seus princípios de peregrina austeridade.

Quando lhe principiaram a secar as faces, e os lábios come­çaram a empobrecer de frescura e rubor, foi solicitada por D. Henriqueta dos Santos (aquela com quem se casou Leão Vermelho) para ajudá-la no serviço da sua casa de pensão.

Só a morte da mãe de Clorinda conseguiu separá-las. As duas, como já sabe o leitor, se tinham feito muito amigas. Januária possuía o segredo de viver bem com uma pessoa do seu sexo, o que aliás é muito raro entre mulheres. Era muito condescente asseada, ativa, amiga de servir e agradar. Ninguém lhe ouvia uma frase de cólera, ninguém lhe sur­preendia um momento de mau humor. O sorriso parecia fazer parte intrínseca de seus lábios; seus olhos eram doces e transparentes como os olhos de uma criança. Naquela fisionomia calma e cheia de bondade, não havia ressaibo de ressentimento ou de ódio; nela tudo respirava resignação e paciência. As necessidades mortificadoras da sua triste vida não lograram azedar-lhe o sangue e derramar-lhe bílis no coração.

Como não seria bom o homem que nascesse dessa mulher. Como não seria feliz a criatura que fosse em pequenina aque­cida nas asas daquele anjo! E ela, que possuía todas as sutilezas da ternura, todos os mistérios do amor legítimo e fecundo; ela, que parecia ter vindo à terra só para cumprir um destino de sacrifícios e de abnegação; ela, como não saberia ser mãe! como não saberia dar-se toda ao entezinho querido que lhe saísse das entranhas!

Entretanto Januária nunca desfrutou essa ventura; e quando nasceu Clorinda, ela deu à filha da amiga, à sua afilha­dinha, todo o farto tesouro de ternura maternal que lhe enchia o coração.

Não precisa o leitor de que lhe lembremos os sucessos determinados pelo casamento de Leão Vermelho, e sabe de­certo, tão bem como nós, que, depois da morte de Henriqueta, a pequenina Clorinda ficou entregue aos cuidados da madri­nha, enquanto o desventurado pai fugia para a pátria, deses­perado e perseguido.

Foi pouco depois disso que o farmacêutico, já então viúvo e adiantado em anos, vendo-se na contingência de retirar Matilde do colégio e confiá-la a alguma senhora verdadeiramente honesta, se lembrou de procurar a velha Januária e lhe pedir que tomasse conta da abastada órfã.

D. Januária aceitou; o que mais tarde abriu lugar ao namoro de Portela com Matilde.

Mas, deixemos por hora tudo isso de mão, para darmos conta final dos outros personagens que foram ficando aban­donados pelo caminho, e irmos encontrar-nos de novo com Olímpia e espreitar a posição que, ao lado dela, toma o nosso Gregório.

À filha do comendador muito custou consolar-se da perda do pai. O Dr. Dermeval viu-se em sérias dificuldades para a erguer do estado de abatimento em que ficara.

Olímpia transformou-se durante os quinze dias que suce­deram à morte do comendador; fez-se muito abatida, muito mais magra e mais nervosa. Eram precisos mil cuidados para evitar-lhe as crises. Em algumas rodas dizia-se até que a mulher do Gonçalves não estava muito boa da cabeça. Isso, porém, não tinha fundamento algum; o que ela estava era sumamente hipocondríaca, profundamente aborrecida e des­consolada.

Gregório ficou desapontado com semelhantes transforma­ções; supunha ele que, depois da morte do comendador, Olímpia lhe pertenceria mais exclusivamente; que desapareceriam os sobressaltos, os riscos, as torturas de todo o instante. E não se lembrava o inexperto de que é precisamente desses pequeninos casos, excitantes e provocativos, dessas galantes contrariedades, desses passageiros obstáculos, que se alimen­tam os amores, cujas raízes grassam mais pela fantasia do que pelo coração.

Olímpia, logo que se sentiu independente, logo que pôde estar à vontade com o amante todas as vezes que lhe apetecia, começou a enfraquecer de interesse por ele, a possuir-se de fastio por aquele amor que ia amornecendo e caindo a pouco e pouco na vulgaridade das coisas fáceis e obscuras.

E, quanto mais Olímpia se retraía, mais se empenhava Gregório em chamá-la ao seu afeto; já procurando lembrar-lhe os sonhos venturosos do passado, já provocando, com artifício, novas situações armadas ao sabor do espírito romanesco do amante. Tudo, porém, era debalde. Olímpia não se mostrava menos enfastiada e parecia suportar o rapaz apenas por con­descendência.

Um belo dia Gregório apareceu pouco antes do que era de costume.

— Ah! é você?... disse ela com o ar fatigado.

— Sei que não devia vir, respondeu ele, da porta, sem largar o chapéu; já não sou desejado...

E depois de observar o efeito que produziu a sua frase em Olímpia, acrescentou, pondo uma expressão de queixa nas palavras:

— Agora chego sempre cedo demais!... Reconheço que só posso ser agradável pela ausência!...

A caprichosa não respondeu, e ficou a olhar demoradamente para as unhas da mão direita. Houve um silêncio de alguns segundos.

Gregório afinal aproximou-se dela e passou-lhe um braço na cintura.

— Para que me tratas deste modo? perguntou ele. Que fiz eu para merecer tamanha indiferença... Por que me fazes padecer tanto, Olímpia?... Sabes perfeitamente que és a única consolação que me resta na vida! a minha única ventura, minha única...

Ela o interrompeu para lhe perguntar onde se encontraria um jardineiro que se quisesse encarregar da chácara, porque o preto velho que lhe fazia esse serviço, dera ultimamente para beber e estava insuportável; ainda na véspera se apre­sentara tão embriagado que, na ocasião de entrar no jardim, fora de encontro a um belo jarro de louça vidrada e lançara-o por terra.

Olímpia não se podia conformar com semelhante perda! O seu querido jarro fazia imensa falta na chácara! Ela o estimava muito! Fora um presente do Porto, de um amigo de seu pai. Aqueles jarros ali estavam havia anos; era preciso que viesse a lesma do jardineiro para reduzir um deles a cacos!

— Bruto! resumiu ela, empenhada na sua indignação! Quebrar um objeto que eu prezava tanto!...

As palavras da filha do comendador caíram sobre Gre­gório como um jato de água fria dentro de uma caldeira a ferver. Ele empalideceu de raiva ou talvez de vergonha, e fez um movimento brusco para sair.

— Já vai? perguntou a rapariga, com um ar entre delicado e indiferente.

— Decerto! respondeu Gregório; que fico eu fazendo aqui?...

— Então não se esqueça do que lhe disse; e, se puder descobrir um jarro parecido com o que ficou na chácara, tenha a bondade de comprá-lo. Olhe, o melhor é ir lá abaixo vê-lo antes de sair. Venha comigo; faço muito empenho nisto! Venha!

E largou da sala, a encaminhar-se para a chácara.

Gregório prometeu ir em outra ocasião; naquele momento estava com pressa.

Olímpia dispunha-se a insistir no seu pedido quando a criada apareceu, muito esbaforida, dizendo que o Guterres acabava de expirar.

— Coitado! Já!? perguntou a senhora, com o ar de quem esperava por aquela notícia. E voltando-se para Gregório:

— É um vizinho aí defronte. Estava muito mal. Há quinze dias que penava!...

— Ah! balbuciou Gregório.

— Bom homem. Muito sossegado, muito agarrado à mu­lher. Ele esteve aqui, dizem, por ocasião da morte de papai e ofereceu-se para ajudar no que fosse necessário.

E depois de uma pausa, acrescentou:

— A Júlia, coitada! deve estar muito aflita... É a mulher, explicou ela, em resposta a um gesto de Gregório. Bela moça, muito dada, muito amiga de obsequiar. Já esteve aqui duas vezes. Eu vou fazer-lhe companhia esta noite...

— Talvez isso não lhe faça bem!... observou Gregório.

— Ora! desdenhou Olímpia. Já não estou doente; além de que, tenho obrigação de ir. Ela se mostrou sempre tão minha amiga!... Está a mandar-me constantemente lembrançazinhas de amizade. Vou mostrar-lhe um açafate de papel, com o retrato dela. Deu-mo na semana passada. Quer ver?...

Gregório disse que sim por comprazer.

Olímpia foi buscar o açafate. O retrato, em fotografia, estava no fundo, entre uma cercadura de papel bordado.

— Eu conheço esta mulher! disse Gregório logo que olhou para o retrato. Esta é a Júlia Guterres!

— Ah! já a conhecia?

— Já. Uma atriz...

— É exato, ela foi do teatro; mas o marido não quis que continuasse. Você algum dia a viu representar?

— Não.

Gregório saiu afinal, resolvido a não tornar ao lado de Olímpia.

Uma semana depois, recebeu dela uma carta. Pedia-lhe que aparecesse. "Ele estava um ingrato; também isso não admirava, porque, segundo o que Olímpia ouvira dizer, Gre­gório não perdia uma noite do Alcazar, e andava apaixonado por uma francesa. Ela sabia de bonitas coisas a seu respeito!" Falou em certa orgia no Hotel Paris. A carta terminava pe­dindo ao rapaz que fosse domingo jantar com Olímpia. A viúva Guterres estaria presente e desejava conhecê-lo.

Gregório leu cinco ou seis vezes aquelas palavras.

— Devia ou não devia ir?...

Não foi. Mandou um bilhete, pedindo desculpas, e não apareceu.

Um mês depois, nova carta. Era mais extensa e mais recri­minatória; Olímpia queixava-se amargamente do proceder de Gregório e pedia-lhe ternamente que a fosse ver. Ele ainda desta vez não foi.

Entretanto Gregório principiava a ganhar reputação de estroina. Um dos seus companheiros da pândega era o padre Beleza; padre ainda moço e levado da breca. À noite metia-se em roupas seculares, escondia a coroa e atirava-se para o Alca­zar, onde floresciam nesse belo tempo as pernas da Aimé. O Beleza era quase sempre cabeça de motim e jogava capoeira como os mais entendidos da matéria. Contavam dele façanhas terríveis. O bispo não conseguia corrigi-lo.

Olímpia escreveu ainda duas cartas a Gregório, sem ter melhor êxito que das primeiras. Na última jurara que, se ele não lhe aparecesse nesses dias, nunca mais lhe daria uma palavra.

Foi então, isto é, seis meses depois do rompimento de Gre­gório com Olímpia, que o padre Beleza o convidou para uma festa.

Era o batizado da filhinha de uma das suas comadres.

O rapaz aceitou e foi, sem prever que esse passo tinha de representar um importante papel na sua vida.

Só depois de lá estar, soube que a madrinha da criança se chamava Júlia Guterres.