Ao tempo em que Nuno escapava-se da embrechada, outro mancebo pouco mais idoso que ele assomou na extremidade da ponte que então ligava ao Recife a Ilha dos Pescadores, onde era o bairro de Santo Antônio.
Já não existe aquela ponte construída no tempo da dominação holandesa pelo Conde Maurício de Nassau. Em 1737 a reformou o Governador Henrique Luís Pereira Freire, que teve a engenhosa idéia de levantar ao longo dela dois renques de pequenas lojas para os quincalheiros, donde provinha ao real erário boas propinas. Desabando esta segunda ponte em 5 de outubro de 1815, foi substituída por outra que chegou aos nossos dias.
Vinha o rapaz do Porto das Canoas onde acabava de desembarcar.
Representava ele maior idade do que os 26 anos que tinha; era de mediana estatura e compleição fornida. Por cacoete ou vicio de conformação faziam as espáduas uma leve corcunda, que o privava de apresentar o rosto bem de face; o olhar do interlocutor encontrava um semblante escorregadio e resvalava por ele sem o penetrar.
Caminhava com um piso miudinho, mas indeciso, imprimindo à marcha certa sinuosidade. Percebia-se, reparando-lhe nos movimentos, que antes de abrir o passo hesitava em avançar; e que andando vacilava constantemente, como um pêndulo, entre a direita e a esquerda.
Ao mesmo tempo os olhos quase redondos e espantadiços enfrestavam-se pelas pestanas de uma à outra banda e faziam um como crivo de olhadelas rápidas e sutis. Dai lhe viera o apelido de Pisca-Pisca por que era mais conhecido do que pelo próprio nome de Cosme Borralho. Nesse estrabismo artificial estava o cunho do rapaz. Em tudo vesgava ele; na vista, no andar, na fisionomia e até na fala. Ressentia-se a voz de singular desafinação, pelo que ora saia-lhe machucha, ora menineira.
Seu trajo compunha-se de roupeta, véstia, calções e peúgas, tudo preto, muito rapado e já cerzido em vários lugares. Mas a escova lhe espoara escrupulosamente o fato, e os fios mais desbotados do estofo pareciam retintos de fresco a bico de pena. O mesmo esmero se notava no velho casquete surrado e nos grossos sapatões de couro alaranjado.
Indicava esse vestuário um de tantos moços que então escreviam para os tabeliães do público, judicial e notas, e aí se amestravam na rabulice. O povo chamava-os pela alcunha expressiva de fuinhas de cartório, que lhes assentava às mil maravilhas.
Enterravam-se no sombrio aposento como em um buraco. Desde crianças, curvados sobre o telônio e afeitos à busca dos autos e papéis velhos, adquiriam certa inflexão e prolongamento de pescoço acompanhado de furtivos esgares que lhes davam em verdade boas mostras do animalejo furão e bisbilhoteiro.
Saiam-lhe do bolso da véstia um rolo de papel cheio de garatujas e as ramas compridas de duas ou três penas de ganso, matizadas de várias cores. Semelhante garridice, único vislumbre de vaidade naquela figura sombria e estrambótica, a inspirara o carinho da profissão, que de ordinário cria os melhores operários do espírito como da matéria.
De quando em quando por um gesto rápido passava pelos beiços a unha polegar da mão direita e a esfregava com sofreguidão ao peito da roupeta. Parecia dominado da idéia de umedecer a coroa do dedo, a fim de tirar pelo atrito uma nódoa de tinta, ali permanente desde muitos anos.
Não era pela gola, que atacava a gordura do casco, nem pelos cotovelos roçados no bufete de escrever, que ia-se a roupeta do Pisca-Pisca. Vinha-lhe a ruína do peito, onde trabalhava a unha impertinente. Homem de recursos, pusera em prática todos os meios de vencer o terrível cacoete. Chegara até a amarrar à cinta o dedo rebelde; porém quando a unha lhe começava a comer, e era justamente no meio de suas cogitações, lá se ia o atilhó. Ao dar fé de si, o escrevente via com desespero o brejeiro do dedo tocando viola no peito da roupeta.
No momento em que o avistamos sob o arco do Bom Jesus, vai ele sem dúvida muito preocupado; pois o atrito atingiu sua maior velocidade. Com efeito, assim atravessou a ponte, e já saia em Santo Antônio, quando o Nuno esbarrou-lhe a passagem.
— Vem de Olinda, Cosme?
— Agora chego.
— Quando estoura o negócio?
— De qual negócio fala você, Nuno? retorquiu o escrevente envesgando um olhar que fez ziguezague à direita e á esquerda e veio cair sobre o bolso da véstia, onde aparecia o rolo de papel.
— Vamos cá! disse o mascatinho puxando o fuinha pela aba da roupeta.
— Pois não estamos bem aqui?
— Nada, que não me faz conta me bispem os tais malandros! Se me pilham!...
Assim falando, puxava o Nuno ao companheiro pala baixo do primeiro olhal da ponte, que a maré deixara em seco.
— Então não sabe que negócio é, hem?
— Podia jurar que não!
— Ora! Quer-se fazer de bom. Pois olhe, aqui está tudo cheio da nova; desde Fora de Portas até Arrombados não se fala senão do levante que os de Olinda pretendem fazer.
— Muito há que se rosna a este respeito; mas são boatos que dão em nada. Há certa gentinha enredeira que inventa estas cousas para ter de que mexericar.
— Desta vez a cousa é séria, digo-lhe eu, Cosme; que também vou meter-me na dança. Oh! se vou; hei de ensinar a uns certos marrecos, inclusive um barbado cá do meu conhecimento! Tomara já ver tudo no sarilho.
— Não acredite nessas caraminholas, Nuno. Que lucrarão os de Olinda com o levante?
— Então você está muito atrasado. O plano é empolgar o marmanjão do Sebastião de Castro como se fez há tempos com o Xumbregas, e recambiá-lo para Lisboa com uma queixa a El-Rei.
— E conseguem lá isto? Não há de sair como pensam. Os do Recife são gente de peso, mercadores ricos, e têm por si o melhor povo da capitania.
— E os nobres então? Não foram eles que conquistaram ao flamengo esta terra'
— Assim apregoam; e contudo, pensando bem, Nuno, que valeria a terra, se não fossem os mercadores que a têm enriquecido? Mas nenhum como o Sr. Miguel Viana.
— O pai tem juntado boa chelpa, não há dúvida; mas tirante disso não serve para mais nada. Eu cá é que não estou pelo ajuste. Em começando a guerra, hão de ver para quanto presta este fedelho, como dizia o mono há pouco.
— Quem? perguntou curioso o fuinha.
— Aquele focinho de caititu do tal de Negreiros... Mas isto cá é comigo.
— Então, vistos os autos, está você aborrecido de mascatear e prefere a milícia!
— Pois é minha paixão! Não sei por que já não atirei no mangue esta burjaca.
Assim é a sorte. O que você rejeita, outros invejam. Eu, verbi gratia, eu que há sete anos garatujo do Matias, para ganhar uns magros tostões... se pilhasse um arranjozinho de mascate, nalguma loja... Bem podia você, Nuno, se quisesse, arranjar-me em casa de seu pai para o lugar que vai deixar.
— Está dito; você toma conta da albarda, e o pai ganha na troca, porque fica com um bom latagão! Vamos a isto; eis aí o surrão!
Para fazer ao vivo a entrega do fardo, o Nuno chimpou com ele no toutiço do Cosme, que titubeou.
— Arre lá! As cousas fazem-se com jeito. Você primeiro deve falar de mim ao velho; e para inquirições ele pode tirá-las do Capitão Miguel Correia e Padre João da Costa, o da Recoleta. Ambos hão de assegurar que eu dou conta da obrigação, como se fosse devoção. Não há tarefa que me meta medo; e para remate, fui sempre pelos do Recife.
Já não o escutava o Nuno, que esguardava na ribeira do Recife alguma cousa. Reparando nessa distração, voltou-se o Pisca-Pisca e logo percebeu-lhe a causa.
Havia daquela banda do bairro uns muros de quintais com serventia para a praia. O sol, transmontando, projetava larga sombra ao longo da parede. Aí, na zona opaca, um sujeito ia e vinha em continuo giro, a não ser que o interrompia acercando-se do muro e gesticulando, como se estivera com ele em prática animada.
— O Lisardo!...
Murmurou o escrevente este nome com um meio sorriso de mofa, pronto a se transformar de súbito em sorriso de prazer. Tudo neste rapaz era assim dúplice. Nos olhos, como nos lábios, sua alma só apresentava-se aos outros de perfil, para que não lhe vissem a divergência das duas faces.
— Psiu!... Psiu!... fazia no entanto Nuno agitando a mão.
— É debalde!... acudiu o Pisca-Pisca zombando.
— Vamos bulir com ele?
— Já vai sendo tarde, e tenho de voltar a Olinda antes de Trindades.
— Qual! para o escurecer ainda falta muito. Toca a avançar... Lança em riste. Arranca!
Vergou-se o petulante rapaz enristando a vara como se fora um virote, e empurrou para diante o escrevente em rota batida. Assim atravessaram rapidamente a ponte, e contornando a praia, foram sair no lugar onde arruava o solitário passeador.
Era também um rapaz; e parecia não ter ainda vinte anos. Ia e vinha ao longo do muro, repetindo em tom soturno palavras sem nexo. Acompanhava o trabalho mental uma gesticulação enérgica. Todo o corpo concorria para aquela mímica, desde a cabeça que pontuava a frase até ao pé que batia a cadência.
Tinha entre os dedos alguma cousa que se lobrigava confusamente no meio do gesto patético. Quando parava para conversar com o muro, percebia-se então perfeitamente que era um prego enferrujado. Servia-lhe de estilete para gravar na caliça da parede as rimas de uma décima em cuja composição suava o jovem árcade.
Ali na página aberta desse álbum dos meninos de escola liam-se já algumas palavras alinhadas no fim de um risco..
_______________ nascer
_______________ instante
_______________ inconstante
_______________ sofrer.
O sítio não era dos mais apropriados para a poesia. Além da sua já suspeita posição nos fundos dos quintais, vizinhava com a praia suja e coberta de cisco. Havia ali uma transfusão de cheiros terrestres e marinhos, capaz de asfixiar a mais robusta inspiração. Alguns velhos cascos de navios, que desmanchavam para lenha, ali amontoavam-se na vasa, fechando o horizonte.
São os poetas uma espécie de caramujos, ainda mais admiráveis que os outros; pois estes apenas levam consigo a casa, e aqueles nada menos do que um mundo, no qual vivem. Não se admirem pois, que apesar de tudo não estancasse a veia poética do nosso rimador. Ele tinha lá na sua cachola, de sobressalente, uma tal provisão de flores, de matizes e de perfumes, que debalde o assaltavam as impressões exteriores.
Naqueles olhos tudo eram prados; naquele olfato tudo recendia a jasmim.
Estava o sujeito muito apurado a escrever a deixa do seu quinto verso, quando desastradamente apareceram Nuno e Cosme no cotovelo que formava a praia. A areia solta, abalando os passos, permitiu que se aproximassem, antes que os pressentisse o outro.
Sempre estabanado, anunciou o caixeiro sua vinda de uma maneira estrepitosa. Arremessou com força o surrão, que foi esbarrar nas canelas do poeta.
— Rende-te, cavaleiro das beldroegas!.
O susto que teve o camarada, surpreendido por aquela imprevista surtida, não se imagina. Todo o indivíduo foi abalado, como se dentro dele puxassem um cordel para fazer dançar cabeça, braços e pernas de arlequim. Logo, porém, que tornou a si do choque, compôs nos lábios um sorriso de bondade extrema para saudar os recém-chegados.
— Que maricas!... exclamou Nuno a rir-se. Quero ver como te aviarás agora com a guerra.
— Que diz você, Nuno? Pois temos guerra?
— Não acredite!... soprou o Pisca.
O caixeiro levantou com a ponta do pé o balote, pondo-o a prumo para lhe servir de tamborete.
— Pois não sabes? Vai haver um levante dos de Olinda; e leva tudo a breca.
— Quem lhe disse, Nuno? Será sério?
— Não leva três dias a arrebentar'. Quem disse foi o Tunda-Cumbe.
— O Manuel Gonçalves? acudiu o Pisca-Pisca.
— Você bem sabe a gana que ele tem aos nobres, por causa da sova que lhe pregaram.
Houve um instante de silêncio.
O poeta cismava:
— Estou bem avisado com estas brigas. Ou Ceres ou Vênus!
Resmungava o escrevente:
— Diabos me levem se entendo este mascatinho a cortar na súcia do pai. Entretanto Nuno, lobrigando no muro as palavras escritas pelo companheiro, exclamara:
— Oh! temos rima?
Frustrada a esperança de apreciar a obra do Lisardo, apanhou na areia uma casca de marisco e pôs-se a garatujar naquela página do álbum popular, onde o galopim soberano exerce a liberdade da gaiatice.