Lisardo estava sucumbido.
Era ele mancebo de vinte anos; tinha uma cabeça grega em talhe árabe. Os cabelos castanhos anelados caiam-lhe sobre as espáduas, moldurando o belo semblante.
Seu gibão verde era do melhor veludo de Alcobaça, mas já bastante usado; os calções apenas de belbute de algodão cor de azeitona. Contrastava, pela novidade e frescura, a véstia escarlata, embora feita de uma serafina bem ordinária.
Semelhante anomalia no trajo, não a deve estranhar quem sabe como viviam os rimadores daquele tempo. Se algum não se recorda, leia Nicolau Tolentino, o grâo-mestre da ordem dos poetas mendicantes do século XVIII. Que soma de engenho se não despendia então para arrancar dos ricos uma propina que hoje se obtém com uma simples folha de papel e a epígrafe subscrição?
Foi o Nuno quem reatou o fio à prática interrompida.
— Então, Lisardo, ficou você ai tão murcho. Tudo isso é medo?
— Ou cousa que se parece! acrescentou o fuinha piscando.
— Bem sabem vocês que eu não sou para estas cousas. A culpa, se há, minha não é; mas de quem me fez assim.
— Fique você descansado, que o ponho sob minha guarda, tornou o mascatinho em tom de importância.
— Estava eu bem aviado! respondeu o poeta sorrindo.
— De uma cousa porém ainda não cogitaram vocês, e me parece a principal, observou o escrevente.
— Vá dizendo!
— Demos que se embrulhem as cousas ainda mais do que já estão e haja realmente um levante. Notem bem que eu não asseguro; é uma simples suposição.
— Com a breca!... Asseguro eu, exclamou o Nuno.
— Pois sim; caso apareça o barulho, cada um de nós há de tomar seu partido. O do Nuno já se sabe; há de ser o da família.
— Quem lhe disse?
— Assim parece.
— Vê-lo-emos. E você, Lisardo, por quem há de ser?
O poeta estremeceu; tinham-lhe tocado na tecla.
— Eu?... Vejo o caso bem intrincado. Todo o meu indivíduo desde a raiz dos cabelos até a pontinha dos pés devia ser pelos senhores de Olinda, pois são eles que abrigam e mantêm este físico. O verso lá na cidade é moeda corrente: paga o jantar na mesa dos Cavalcantis e Figueiredos, e de vez em quando rende um vestuário que o dono já não usa, porque desmereceu na cor, mas que ainda faz sua vista cá no Recife. Os senhores mercadores são excelentes pessoas...
— Todos reconhecem!... atalhou o escrevente.
— Mas destas bandas os sonetos e décimas não valem um ceitil. Podia correr o bairro todo que não acharia por eles dez réis de cominho.
— Menos essa! interrompeu Nuno. Sei eu de certa pessoinha que tem seu fraco por umas rimas, especialmente por certo acróstico... hem! certo acróstico...
E piscou o olho para o companheiro.
Perturbou-se o poeta, e acrescentou logo para disfarçar:
— Os senhores mercadores, como é de razão, preferem Mercúrio a Apolo e as nove irmãs.
Não escapou ao fuinha nem a alusão de Nuno, nem o vexame de Lisardo.
— Mas afinal de contas, disse ele, em que fica você?
— Sim; dizia que todo eu estava em Olinda; mas cá me ficou por meus pecados neste Recife um bocadinho do tal eu, que pelos modos pode tanto, se não for mais do que o resto, não obstante ser este um quase todo. Ora, por mais que eu faça para desatar este nó daqui, creio que antes de o conseguir, primeiro me romperia a mim. Portanto o seguro é concertar-me com as duas vontades, para que me deixem ficar neutro na contenda.
— E caso não queiram elas estar pelo ajuste?
— Por que não, se bem nem mal faço a qualquer das duas?
— Não gosto de ser leva-e-traz; mas olhe que já em casa do capitão-mor um destes dias se cochichou: "Tenho notado que o Lisardo vai muito pelo Recife." Bem entendido, contaram-me, que eu não ando lá pela casa desses senhores. Mas no cartório sabe-se de tudo.
— Pois se não houver outro meio que melhor acomode as cousas, nesse caso vencerá a força maior.
— A barriga? perguntou o Cosme com uma mímica expressiva.
— Barriga não passa de vasilha: força é a fome; mas vence a do coração, por maior. Senão vejam: ainda não jantei hoje; e contudo estou bem contente de minha vida.
— Assim pende você decididamente para o Recife! concluiu o Cosme.
— Se não houver outro remédio?
— Pois então, atalhou Nuno, erguendo-se de um salto, comigo se há de haver o Sr. Lisardo de Albertim, poeta d'água doce, que me anda esgravatando versos no monturo para garatujá-los nas paredes! Está entendendo?...
Aquele pequeno repouso de uma natureza impetuosa devia ter breve sua explosão. Enquanto o macio poeta o contemplava maravilhado, e o escrevente lhe espreitava os movimentos por detrás de uma cara sonsa, o caixeiro prorrompeu:
— Que estão ai vocês embasbacados a olhar-me? Cuidaram que por ser filho de mascate, e dos graúdos, havia de entrar na súcia? Pois enganaram-se, digo-lhes eu. Se fosse com outra gente, nada mais natural que ajudar os seus... Regra do Mateus! Mas com a tal mascataria... Pensam lazer neste Pernambuco com os filhos o mesmo que lá na santa terrinha fizeram seus pais deles, que os empurraram para cá, no porão de um navio, com uma réstia de cebolas e um par de tamancos! Vejo cavalos que nascem da mesma besta, e uns são marchadores, outros choutões; uns levam albarda, mas outros têm arneses de veludo! Só o filho de mascate é que há de ser mascate por força! Uma figa!... Este muro falará, se me virem mais regatear!
Neste ponto de sua vigorosa alocução avistou Nuno o pacote, e travando-o com ímpeto, imprimiu-lhe tal rotação que o arremessou na praia.
— Vai-te, perseguição! Assim hei de eu fazer a todas as drogas que me caírem nas mãos, e também aos donos e vendedores das ditas!
Animou-se o poeta a introduzir uma palavra no meio daquela impetuosa loqüela:
— Mas...
— Olhe! Eu não sou versista como você... Não tenho veia para a cousa; mas cada um se arranja como pode. Já fiz um mote para mim; há de ser minha divisa nesta guerra! Vejam!...
Agarrando os dois cada um pelo braço, levou-os o caixeiro ao muro onde riscara o Lisardo suas rimas. Enchera as linhas o Nuno, tendo cuidado, para lhes dar igual comprimento, de graduar a letra. Saiu a seguinte composição, que se remete aos modernos fabricadores de poemas em todos os metros:
Para mascate não valia a pena nascer
Não suporto mais um instante!
Oh!... sorte inconstante!
Arre! que estou cansado de tanto sofrer.
— E mais é que tem seu jeito! exclamou o fuinha extático ante a obra. Você dá para poeta, Nuno!
— Então, que diz à quadra, Lisardo?
O poeta estava horrorizado:
— Quadra!... Quadrada seria a sandice se a escrevesse de outra forma!
— As que você tem mandado à mana Belinha, sô pateta, não são melhores!...
— Nuno!... modulou o Albertim em dois tons, sustenido e bemol, ao mesmo tempo que lhe indicava com o olhar a presença do escrevente.
— Ora! Que bem me importa?
Felizmente Cosme naquele instante parecia muito apurado a reler a bela produção de Nuno, a qual decididamente lhe dera no goto. Era de jurar que nada percebera, pois mostrou-se inteiramente alheio ao caso. Se porém as observações fossem cousas corpóreas, o bucho do escrevente já estaria tão bojudo, que o não pudera ele decerto conter no cós das bragas.
Seguira-se naturalmente uma pausa no diálogo. Os nossos camaradas formavam então um triângulo, cujo vértice era o Cosme ao pé do muro. Quando este se convenceu que estava de todo passado o episódio do namoro, voltou-se para os companheiros:
— Lisardo, você há de ensinar-me também a fazer a minha quadrinha. É bom a gente saber de tudo.
Não o atendeu o poeta, que estava ruminando, mas em prosa desta vez. Ao cabo saiu-se com esta:
— Ouça, Nuno; sou mais velho que você dois anos; e portanto estou no caso de lhe dar conselhos, como é dever dos mais idosos para com os mais moços.
— Que apoquentação do diabo! gritou o Nuno. E todos eles a darem-me com a matraca!... Muito moço, muito moço!
— Você não pode tomar nesta contenda as partes de ninguém mais, senão daqueles com que estão os seus. Não lhe parece, Cosme?
O fuinha atento à altercação foi surpreendido por aquela interpelação direta, da qual bem desejava fugir. Mas Nuno de seu lado voltara-se para ele esperando seu alvitre: força era dá-lo.
— Eu, sim, eu, quero dizer... pensando bem, entendo que... você (para o poeta) ... você (para o caixeiro) tem razão.
— Está ouvindo? exclamou Nuno.
— Estou!... O Cosme concorda comigo!
— Não há tal.
— Justa... mente!... disse o fuinha gaguejando e escandindo a palavra de modo a endereçar cada sílaba a um dos companheiros.
Tinha o Cosme esse hábito de gaguejar nas ocasiões difíceis.
— A primeira pátria, continuou o poeta sentenciosamente, é a nossa casa; pois está mais junto de nós. Traz-nos dentro dela toda a meninice, como nos traz no ventre durante nove meses aquela que nos deu o ser. Que se diria de uma criança que rasgasse por vontade o seio materno para sair à luz antes de tempo? Pois este é o caso do filho menor que abandona a casa de seu pai. É um mau filho: e Deus lhe retira a bênção.
Tais palavras ditas com sinceridade e energia não deixariam de comover o caixeiro em outra ocasião; mas naquela tarde estava ele tocado da fúria guerreira.
— Por que não fazes tu outro tanto do que dizes?
— Bem atirado! murmurou em aparte o fuinha.
— Não tenho casa, nem pai, Nuno! respondeu o poeta com sorriso merencório.
— Mas tem lá em Olinda quem lhe agasalha, e não obstante.
— É diferente!
— Qual diferente! Diga que o coração lhe puxa de cá!...
— Ele o confessou! acudiu o Cosme.
— Pois coração, também eu tenho, que bem me puxa, e a arrebentar.
— Lá para Olinda? replicou Lisardo pasmo.
— Para lá mesmo!... Ah! você não sabe ainda, que lhe não contei. Pois o almotacé não teve o descoco de me dizer ontem quando lhe falei de casar com a filha, a Marta, que eu ainda era um criançola, e que havia de contar ao pai para ele ralhar comigo!...
— Ora essa!... ponderou Cosme, e acabou a frase com um jeito que fez rir a um dos olhos, o do lado do poeta, e choramingar o outro, que pusera ao serviço de Nuno.
— Também você madrugou! disse o Lisardo.
— Com os seiscentos! Ando nos dezoito anos!...
— Dezesseis, Nuno!...
— Que seja! Já me nasceram todos os dentes, tenho mais um palmo de altura do que este carrapeta do Cosme!
— Nem tanto! replicou o escrevente empertigando-se.
— E não sou um homem?. . . Que me falta?... Barba?... Não é essencial; o Camarão tem a cara lisa como uma melancia e já está madurão!
— E o primo, o grande Camarão, dizem que era o mesmo. Nem um fio na cara; na cabeça, sim, com fartura.
— Com isso que nos conta, Nuno, mais me enche você de razão. Se o seu cuidado está cá no Recife, não é pelo caminho de Olinda que há de chegar.
— Isso depende do modo de caçar de cada um. Você, Lisardo, vai se chegando devagarinho para não espantar a rola. Eu cá atiro de longe, em campo aberto. O Perereca tem de haver-se comigo, e mais o pato choco do governador, com o seu ajudante. A pé, na estacada, à lança ou à espada, com o ferro na gorja os obrigarei a restituir-me a dama de meus pensamentos. Sempre desejei uma guerra; e a queixa que tenho de minha mãe é não me haver parido no tempo dos holandeses. Aquilo, sim, é que foi tempo!
— Com esta me vou! disse a rir o escrevente.
— Mas você, Cosme, ainda não disse por quem é? Olinda ou Recife?
— Eu sou por ambos!
— Como pode ser isso?
— Se cada um de vocês vai para sua banda, que remédio senão dividir-me por ambos? Eu cá não tenho quem me prenda a estes ou àqueles, e nada espero de uns nem de outros. Pelo meu gosto deixava a terra. Mas vocês podem precisar de mim, e então careço de estar em posição de lhes prestar.
Dois apertos cordiais cerraram ao mesmo tempo na mão que o Cosme levantava para enxugar os cantos dos olhos, umedecidos por um líquido humoral que em anatomia se chama lágrima.