Devastação

 

Já foi aqui a civilização.
Brilhou a luz. Cantou a fé. Riu o trabalho.
– Mas no rebanho há de haver sempre algum tresmalho:
tresmalhou a afeição;
e veio a derrocada.

Seguindo os largos rios nos seus cursos,
nas faldas da cadeia abruta e torturada,
junto ao primeiro roble secular,
muito antes, tinham vindo os homens se agrupar,
na defesa comum contra as renas e os ursos.

– E a esperança brilhou, como sempre, a primeira.

Conseguiram vencer. O último urso brama,
e rebenta-lhe o crâneo o machado de pedra...
Já pascem, junto ao lar, domesticadas renas;
o homem pensa em plantar, e o terreno se redra...
Enfim, na encantação de amplas tardes serenas,
– canta no alqueive o rouxinol, a terra cheira –
ao convívio do bem-estar,
o homem pode mirar a companheira
e coloca-la num andor...
E quando, pêlas manhãs claras,
avoaçou a calhandra sôbre as searas,
houve searas também, plantadas pêlo amor.

— E o amor brilhou em cada lar.

Pêlo trabalho, pêlo engenho o homem procura
fortificar então sua ventura.
É só lançar a mão: e mais, e mais,
grassa na concha dos convales calmos
a poesia alourada dos trigais...
...É só lançar a voz: e sôbre o monte,
e sôbre o vale, e no horisonte,
e em toda parte lhe respondem outras vozes...
Sobem os fumos pêlo céu – que ao fogo
já se derretem os metais –
já se não temem animais ferozes;
tudo é progresso!... Então, reunidos no sopé
da cadeia, a cantar, como em glórias e salmos,
soltam aos ares o primeiro rôgo...

– E rebrilhou a fé.

Crea-se o livro. Os homens pensam.
Pensam e agitam-se em tumulto.
Por sobre os seus trabalhos paira a bençam:
e todos os trabalhos tomam vulto;
O saber suspicaz penetra o alto segrêdo da
vida. É tudo um labutar de sciência.
O homem afoita-se, descobre, perde o medo...

– E brilha, altiva e forte, a inteligência.

E ele atinge afinal o cume do Jungfrau.
Olha em redor e vê, na campina tamanha,
uma herança que é sua e que se perde alem:
e tem um pensamento mau.
Êle atingiu o cume da montanha!
Só êle é grande, mais ninguem!
Cogita, e se entremeia em labirintos
de sofismas agudos; e, infeliz!
diz tudo o que não pensa ou que não sente,
mas o que sente ou pensa nunca diz.
Constrói teorias, alevanta em plintos
novo ideal, que lhe é Deus; e, indiferente
encara o mundo e nada o maravilha...

– E o orgulho máximo e insensato, brilha.

Vem a rivalidade, a traição, a mentira,
o exagêro da glória, a negação da falta;
Caim mata de novo Abel, – mas por mais alta
que sobressaia a eterna voz,
aos seus ouvidos não há voz que fira! –
Mesmos os Abeis tornaram-se Cains;
e os homens todos, na avareza atroz,
ganiram, defendendo os bens, como mastins...

A afeição tresmalhou. E no estêrco fecundo
de mil invejas e ambições, abrolha
a flor de púrpura da guerra... E o mundo
todo, a tremer nos seus arcanos olha.

Nêsse ponto do globo, onde o passado
viu continuar, em surto resplendente,
as civilizações do antigo oriente,
nas águas batismais das energias novas,
tudo é um imenso plaino devastado!
O homem voltou ao seu estado primitivo:
blasfema, odeia, trai, e sepulta-se vivo
em trincheiras, sinistras como covas...

Cruza os espaços, rebentando, atroa
a cólera do obús;
e no arruído, no choque e na fumaça,
a civilização perde a coroa,
e treme, e foge, e tomba e se espedaça,
desertando da grande luz!...

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Deante de tanto mal e tanta ruína,
de tanta inveja parda e estulta,
diante desse ódio frio e crú,
pálida, imóvel, trágica e divina,
sôbre a devastação que cresce e avulta,
surgiu a minha dôr, como um mármore nú.

Surgiu, cresceu, e, imensamente branca,
com o branco triste dos enfermos,
na compunção atroz do seu sofrer,
a minha dor sem lágrimas, nos ermos
onde o último eco dos canhões estanca,
gelou o íntimo gesto e nada quis dizer.

Apenas, a sorrir, num sorriso que punge,
pálida, imóvel, trágica e divina,
olha sem ver para a devastação...
A esperança talvez lhe santifica e unge
o olhar, mas o sorriso, o sorriso que a mina,
trai o penoso fel duma desilusão.