Poucos instantes esperou Estácio. Veio um homem abrir-lhe a porta; era o mesmo que ele vira ali uma vez. Entre ambos houve meio minuto de silêncio, durante o qual nem Estácio se lembrou de dizer o que queria, nem o desconhecido de lhe perguntar quem era. Olhavam um para o outro.
— Que desejava? disse enfim o dono da casa.
— Um favor, respondeu Estácio, mostrando-lhe a mão ferida. Ia a cair há pouco; procurando amparar-me, numa cerca de espinhos, feri-me, como vê. Podia dar-me um pouco d’água para lavar este sangue, e...
— Pois não, interrompeu o outro. Queira sentar-se aí no banco, ou, se prefere, entrar... É melhor entrar, concluiu, abrindo-lhe caminho.
Em qualquer outra ocasião, Estácio teria recusado o convite, porque o espetáculo da pobreza lhe repugnava aos olhos saturados de abastança. Agora, ardia por haver a chave do enigma. Entrou. O desconhecido abriu uma das janelas para dar mais alguma luz, ofereceu ao hóspede a melhor cadeira e foi por um instante ao interior.
Estácio pôde então examinar, à pressa, a sala em que se achava. Era pequena e escura. A parede, pintada a cola já de longa data, tinha em si todos os sinais do tempo; primitivamente de uma só cor, a pintura apresentava agora uma variedade triste e desagradável. Aqui o bolor, ali uma greta, acolá o rasgão produzido por um móvel; cada acidente do tempo ou do uso dava àquelas quatro paredes o aspecto de um asilo da desgraça. A mobília era pouca, velha, mesquinha e desigual. Cinco ou seis cadeiras, nem todas sãs, uma mesa redonda, uma cômoda e uma marquesa, um aparador com duas mangas de vidro cobrindo castiçais de latão, sobre a mesa um vaso de louça com flores, e na parede dois pequenos quadros cobertos de escumilha encardida, tais eram as alfaias da sala. Só as flores davam ali um ar de vida. Eram frescas, colhidas de pouco. Atentando nelas, Estácio estremeceu: pareceu-lhe reconhecer uma acácia plantada em sua chácara. Quando a suspeita germina na alma, o menor incidente assume um aspecto decisivo. Estácio sentiu um calafrio.
Voltou o dono da casa, trazendo nas mãos uma bacia, e nos braços uma toalha, cuja alvura contrastava singularmente com a cor da parede e o aspecto senil da casa. Estácio ergueu-se.
— Deixe-se estar, disse o desconhecido.
— Estou perfeitamente bem.
— Nesse caso, faça o favor de chegar à janela.
A bacia foi posta na janela; o desconhecido quis lavar ele próprio a mão do hóspede; o moço não lho consentiu.
— Ao menos, disse o dono da casa, há de consentir que a enxugue. Eu entendo um pouco disto; infelizmente, não tenho aqui nenhum medicamento caseiro para aplicar.
Estácio aceitou o oferecimento. O dono da casa abriu a toalha e começou cuidadosamente a operação. O sobrinho de D. Úrsula pôde então examiná-lo à vontade.
Era um homem de trinta e seis a trinta e oito anos, forte de membros, alto e bem proporcionado. Uma cabeleira espessa e comprida, de um castanho escuro, descia-lhe da cabeça até quase tocar nos ombros. Os olhos eram grandes, e geralmente quietos, mas riam, quando sorriam os lábios, animando-se então de um brilho intenso, ainda que passageiro. Havia naquela cabeça, — salvo as suíças, — certo ar de tenor italiano. O pescoço, cheio e forte, surgia dentre dois ombros largos, e, pela abertura da camisa, que um lenço atava frouxamente na raiz do colo, podia Estácio ver-lhe a alva cor e a rija musculatura. Vestia pobre, mas limpamente, um rodaque branco, calça de ganga e colete de brim pardo. O vestuário, disparatado e mesquinho, não diminuía a beleza máscula da pessoa; acusava somente a penúria de meios.
Quando acabou de lavar os arranhões de Estácio, — eram pouco mais do que isso, — propôs-se a ir buscar um pedaço de pano. Estácio, com a outra mão e os dentes, rasgou o lenço que trazia, e o dono da casa completou o sumário curativo.
— Pronto! disse ele. Se tiver em casa algum medicamento apropriado, será conveniente aplicá-lo. Toda a cautela é pouca; convém evitar alguma inflamação.
— Obrigado, respondeu Estácio. Realmente, vim dar-lhe uma maçada, sem grande necessidade, talvez...
— Por quê?
— Podia fazer isto mesmo quando chegasse à casa.
— Mora perto?
— Um pedaço abaixo.
— Foi conveniente curar já; nenhuma precaução é inútil em coisa nenhuma da vida.
— Máxima de prudência, observou Estácio, procurando sorrir.
— Que só aprende tarde quem a não traz na massa do sangue, replicou o outro, suspirando.
A não ser indiscreto ou falador, era difícil levar a conversa por diante. O favor estava feito, o assunto esgotado. Restava agradecer, despedir-se e sair. Estácio, entretanto, tinha necessidade de mais tempo; queria arrancar àquele homem uma palavra menos indiferente à situação, ou conhecer-lhe, se fosse possível, o caráter e os costumes. Para isso havia, talvez, um meio; contrafazer-se, empregar maneiras estranhas às suas, apegar-se à ocasião por todas as bordas. Estácio, determinou-se a isso, confiando o resto ao acaso. Voltou à cadeira e sentou-se.
— Consente que descanse um pouco? Estou fatigadíssimo.
— Não pelo que caçou, disse o desconhecido, rindo.
— Volto com as mãos abanando. Nunca fui bom caçador, e tenho, não obstante, a mania de atirar aos pássaros.
— Não é esse o defeito de muita outra gente, em mais elevada ordem de coisas? Eu fui vítima desse defeito mortal.
— Ah! exclamou Estácio com certa entonação interrogativa.
O dono da casa sorriu levemente, mas não pareceu molestá-lo a curiosidade do hóspede; talvez mesmo não desejasse outra coisa.
— É verdade, disse ele; devo a minha atual penúria ao erro de teimar em coisas estranhas à minha índole e aptidão, estranhas e totalmente opostas...
— Há de perdoar-me, interrompeu Estácio com um ar de familiaridade indiscreta, que lhe não era habitual; eu creio que um homem forte, moço e inteligente não tem o direito de cair na penúria.
— Sua observação, disse o dono da casa sorrindo, traz o sabor do chocolate que o senhor bebeu naturalmente esta manhã antes de sair para a caça. Presumo que é rico. Na abastança é impossível compreender as lutas da miséria, e a máxima de que todo o homem pode, com esforço, chegar ao mesmo brilhante resultado, há de sempre parecer uma grande verdade à pessoa que estiver trinchando um peru... Pois não é assim; há exceções. Nas coisas deste mundo não é tão livre o homem, como supõe, e uma coisa, a que uns chamam mau fado, outros concurso de circunstância, e que nós batizamos com o genuíno nome brasileiro de caiporismo, impede a alguns ver o fruto de seus mais hercúleos esforços. César e sua fortuna! Toda a sabedoria humana está contida nestas quatro palavras.
O desconhecido proferiu isto com o tom mais simples e natural do mundo, e uma facilidade de elocução que Estácio mal lhe podia supor. Era aquilo uma comédia ou a expressão da verdade? Estácio olhou fixamente para ele, como a querer penetrá-lo. Ao mesmo tempo, ouviu-se um rumor na parte da casa que ficava além da sala; Estácio voltou a cabeça com um gesto de desconfiança. A porta abriu-se e apareceu uma preta velha trazendo nas mãos uma bandeja. A criada estacou a meio caminho.
— Põe em cima da mesa, disse o dono da casa. É o meu almoço, continuou ele, voltando-se para Estácio; almoço parco e higiênico. Ousarei oferecer-lho?
Estácio fez um gesto negativo, e dispôs-se a sair.
— Já! Não é meu intento despedi-lo; almoçarei conversando. Vivo tão solitário que a presença de alguma pessoa é para mim um encanto.
Estácio aceitou sem dificuldade o convite; sentou-se defronte do homem, ao pé da mesa, e assistiu ao almoço, que não podia ser mais escasso: um pão, duas hóstias de queijo duro e uma chávena de café. O que mais valia era o contentamento do dono da casa e a franqueza com que ostentava aos olhos de um estranho a simplicidade de seus hábitos.
— Não é refeição de príncipe, dizia ele, mas satisfaz todas as ambições de um estômago sem esperança. Aqui é a sala de visitas e a sala de jantar; a cozinha é contígua; além, ficam duas braças de quintal; para lá do quintal... o infinito da indiferença humana.
E depois de um silêncio:
— Não digo bem, emendou ele; nem sempre acho indiferença. Meu trabalho não me dá mais do que escasso pão de cada dia; mas tenho algumas alegrias, no meio de minha perpétua quaresma; e essas recebo-as de mãos caridosas e puras.
Dizendo isto, o desconhecido esgotou a chávena, e reclinou-se sobre a cadeira, fitando em cheio a cara do hóspede. Estácio refletiu nas últimas palavras, e um raio de esperança veio rasgar-lhe a nuvem que lhe entenebrecia a fronte. Os dois homens pareciam interrogar-se. O filho do conselheiro sacou do bolso um charuto e ofereceu-o ao dono da casa.
— Obrigado, disse este.
— Não fuma?
— Já fumei; hoje economizo esse vício. Nem por isso faço mais lentamente a digestão.
— Mora só?
— Só.
— Não tem família?
— Nenhuma.
— Há de achar-me singularmente indiscreto....
— Não; suponho que a sua curiosidade tem uma causa honrosa e legítima.
— Acertou; o senhor inspira-me simpatia. E se eu conhecesse alguma dessas mãos puras, que lhe emendam as lacunas da sorte...
— Dar-me-ia, por intermédio delas, o seu óbolo?
— Se o não ofendesse...
— Não ofendia, mas eu recusava, se soubesse; peço-lhe desde já que o não faça às escondidas...
Estácio fez um gesto de assentimento.
— Não é orgulho, continuou o dono da casa; é um resto de pudor que a pobreza me não tirou ainda. Fiz-lhe agora um obséquio, um simples dever de vizinho... Pareceria que o senhor mo pagava com um benefício. O benefício seria menos espontâneo de sua parte e menos agradável para mim. Agradável não exprime, talvez, toda a minha idéia; mas o senhor facilmente compreenderá o que quero dizer.
— Entendeu-me mal; o meu óbolo não seria na espécie a que o senhor alude. Tenho amigos e alguma influência; poderia arranjar-lhe melhor posição...
O desconhecido refletiu um instante.
— Aceitaria? perguntou Estácio.
— Estou pensando na maneira de recusar. Ouro é o que ouro vale. Eu vexar-me-ia eternamente de dever qualquer melhora da sorte ao cumprimento de um dever de caridade.
— Já me não admira a vida pobre que tem tido.
— Excessivo escrúpulo, talvez?...
— Escrúpulo desarrazoado.
— Antes demais que de menos.
— Nem de menos nem demais; mas, só a porção justa.
— A porção varia, conforme as necessidades morais de cada um. Mas eu mesmo, que lhe estou a falar, nem sempre tive esta virtude intratável; e porventura alguma vez fraqueei...
A fronte do desconhecido tornou-se sombria; a voz morreu-lhe nos lábios, e os olhos caíram naquela atonia que exprime uma grande concentração de espírito. Era ocasião de interrogá-lo diretamente ou sair. Estácio preferiu o último alvitre.
— Não o quero demorar mais, disse o dono da casa, quando o mancebo proferiu as palavras de despedida. Já é tarde, e sua mãe talvez esteja ansiosa...
Estácio limitou-se a olhar para ele em cheio, dizendo:
— Se alguma vez resolver dar de mão a seus escrúpulos, mande procurar-me. Minha casa é conhecida em todo Andaraí pela casa do conselheiro Vale...
O desconhecido, em cujo rosto Estácio esperou ver um sinal qualquer de abalo ou surpresa, conservou-se impassível e risonho. Curvou-se em sinal de agradecimento; e como Estácio hesitasse em estender-lhe a mão, ele meteu as suas nas algibeiras.
— Talvez nos vejamos ainda, disse Estácio já fora da porta.
— Sim?
— Passeio algumas vezes por estes lados.
— Nem sempre estou em casa; mas, ainda estando, conservo fechadas as portas. Quando quiser descansar, bata; a casa é pobre, mas será amiga.
Estácio afastou-se rapidamente. Eram dez horas, e o sol aquecia; ele não deu pelo sol nem pelo tempo. Semelhante ao transviado florentino, achava-se no meio de uma selva escura, a igual distância da estrada reta, — diritta via — e da fatal porta, onde temia ser despojado de todas as esperanças. Nada sabia, nada conjeturava; eram tudo novas dúvidas e oscilações. O homem com quem acabava de conversar, parecia-lhe sincero; a pobreza era autêntica, sensível a nota de melancolia que, por vezes, lhe afrouxava a palavra. Mas, onde cessava ali a realidade e começava a aparência? Vinha de tratar com um infeliz ou um hipócrita? Estácio rememorou todos os incidentes da manhã, e todas as palavras do desconhecido; eram outros tantos pontos de interrogação suspeitos e irrespondíveis. Repelia com horror a idéia do mal: custava-lhe a aceitar a idéia do bem; e a pior das angústias, — a dúvida, — continha-o todo e agitava-o em suas mãos felinas. O sol e a agitação alastravam-lhe a testa de pérolas de suor; ao ofego da marcha apressada juntava-se o da violenta comoção. Estácio não via os objetos que ia costeando, nem as pessoas que lhe passavam ao lado; ia cego e surdo, até que o choque da realidade o despertasse.
Chegou enfim à casa. Ao portão estava um escravo, a quem deu a espingarda. A demora causara alguma inquietação à família; logo que as duas senhoras souberam de seu regresso, correram a recebê-lo, ficando D. Úrsula a uma janela, e descendo Helena até meio caminho. A aparição súbita da moça, a alegria e o amor, que pareciam impeli-la, a perfeita ingenuidade do gesto, tudo produziu nele a necessária reação, — reação de um instante, — mas salutar, porque a crise era demasiado violenta. Estácio apertou as mãos da moça com energia. Um fluido sutil percorreu as fibras de Helena, e aquele rápido instante teve toda a doçura de uma reconciliação.
Estácio contava recolher-se ao quarto para pôr em ordem as idéias, compará-las, extrair uma conjetura, pelo menos, e verificá-la ou desmenti-la. Mas, nem a tia nem a irmã haviam almoçado, à espera dele, e forçoso lhe foi acompanhá-las na satisfação de uma necessidade que não sentia. Durante o almoço, Estácio procurou observar Helena; trabalho ocioso, porque o rosto da moça, se alguma coisa traía nessa ocasião, eram as alegrias inefáveis da família. Ela própria servia por suas mãos a Estácio e D. Úrsula; inexcedível na atenção com que sabia repartir-se entre os convivas, não o era menos no carinho, e na graça. Nos olhos parecia estampada a ignorância do mal, e o sorriso era o das almas cândidas. Poder-se-ia atribuir àquela criatura de dezessete anos corrupção e hipocrisia? Estácio envergonhou-se de tal idéia; sentiu as vertigens do remorso.
Mas o almoço acabou, dispersou-se a companhia, o mancebo recolheu-se ao gabinete, e, desfeita a visão, voltou a suspeita. Estácio buscou dominar a situação. Ele não ia ao ponto de supor em Helena a completa perversão dos sentimentos; o limite do mal, que se lhe podia atribuir, era o de uma culposa leviandade. Se, em vez de um ato leviano, fosse aquilo um simples estratagema de caridade, Helena não mereceria menos uma advertência; mas a pureza da intenção salvava tudo, e a paz da família, não menos que o seu decoro, se restabeleceria inteira. Estácio examinou um por um todos os indícios de culpabilidade e de inocência; buscou sinceramente os elementos de prova; não esqueceu um só argumento de indução. Nesse trabalho despendeu longo tempo, sem resultado apreciável, pela razão de que, se a sentença era difícil de formular, o juiz era incompetente para decidir; entre a dignidade e a afeição balouçava incerto.
Quase à hora do jantar, Estácio, que não saíra uma só vez do gabinete, chegou a uma das janelas, e viu atravessar a chácara a mais humilde figura daquele enigma, humilde e importante ao mesmo tempo: o pajem. O pajem apareceu-lhe como uma idéia nova; até aquele instante não cogitara nele uma só vez. Era o confidente e o cúmplice. Ao vê-lo, recordou-se de que Helena lhe pedira uma vez a liberdade daquele escravo. A ameaça rugiu-lhe no coração; mas a cólera cedeu à angústia, e ele sentiu na face alguma coisa semelhante a uma lágrima.
Nesse momento duas mãos lhe taparam os olhos.