Não era preciso grande esforço para adivinhar a dona das mãos. Estácio, com as suas, afastou as mãos de Helena, segurando-lhe os pulsos de modo que lhe arrancou um leve gemido. Voltando-se, deu com os olhos na irmã, que lhe disse em tom de gracioso reproche:
— Você é muito mau! Pagou-me a carícia com um apertão. Deixe estar que nunca mais cairei em outra. Vim vê-lo, porque você hoje não se lembrou ainda de dar à gente um ar de sua graça... Doeu-me! continuou ela olhando para os pulsos. Mas... tenho os dedos molhados; seria... você estaria... que é? que foi?
Estácio, que ouviu o discurso da irmã, com o rosto desfeito e o olhar ansioso, não lhe respondeu às últimas interrogações, e continuou a olhar para ela, como a querer ler na fisionomia da moça a explicação do enigma que o atordoava. Helena ainda insistiu, aterrada e aflita. Indo pegar-lhe nas mãos, Estácio desviou o corpo, dirigiu-se à parede, dependurou o desenho que Helena lhe dera no dia de seus anos, e aproximou-se da moça.
— Que é? repetiu esta admirada.
A única resposta de Estácio foi estender o dedo sobre a misteriosa casa reproduzida na paisagem. Helena olhou alternadamente para o desenho e para o irmão. A expressão interrogativa e imperiosa deste fê-la atenta no ponto indicado. Súbito empalideceu; os lábios tremeram-lhe como a murmurar alguma coisa, mas a alma falou tão baixo que a palavra não chegou à boca. Durou aquilo poucos instantes. A angústia lia-se no rosto dos dois; a moça para ocultar a sua, cobriu os olhos com as mãos. O gesto era eloqüente; Estácio lançou para longe de si o quadro, com um movimento de cólera. Helena atirou-se para o corredor.
D. Úrsula, aguardava os sobrinhos para jantar. Demorando-se estes, dirigiu-se ela própria ao gabinete de Estácio. A porta estava aberta; D. Úrsula entrou e deu com ele, sentado numa poltrona, com um lenço na cara, como a soluçar. A tia correu com a velocidade que lhe permitiam os anos. Estácio não a ouviu entrar; só deu por ela quando as mãos da boa senhora lhe arrancaram as suas dos olhos. O assombro de D. Úrsula foi indescritível, sobretudo quando Estácio, erguendo-se, atirou-se-lhe aos braços, exclamando:
— Que fatalidade!
— Mas... que é?... explica-te.
Estácio enxugou as faces molhadas do longo e silencioso pranto, com o gesto decidido de um homem que se envergonha de um ato de debilidade. A explosão desabafara-lhe o espírito; podia enfim ser homem, e era preciso que o fosse. D. Úrsula pediu e ordenou que lhe confiasse a causa da inexplicável aflição em que viera achá-lo. Estácio recusou dizê-la.
— Saberá tudo amanhã ou logo. Agora só poderia dar-lhe um enigma, e eu sei o que ele me há custado. Algumas horas mais, e precisarei de seu conselho e apoio.
D. Úrsula resignou-se à demora. Quando chegou à sala de jantar, achou um recado de Helena; mandava-lhe dizer que se sentira repentinamente incomodada e que a dispensasse naquela tarde e noite. D. Úrsula suspeitou logo que o recado de Helena tivesse relação com a aflição de Estácio, e correu ao quarto da sobrinha. Achou-a meio inclinada sobre a cama, com o rosto na almofada, e o corpo tranqüilo e como morto. Ao sentir os passos de D. Úrsula, ergueu a cabeça. A palidez era grande e profundo o abatimento; mas não houvera lágrimas. A dor, se a houve, e houve, parecia ter-se petrificado. O que restava ainda vivo na figura da moça, eram os olhos que não perderam o fulgor natural. Ela ergueu-os a medo, e abraçou a tia com um olhar de súplica e de amor. D. Úrsula travou-lhe das mãos, encarou-a silenciosamente, e murmurou:
— Conta-me tudo.
— Saberá depois! suspirou a moça.
— Não tens confiança em tua tia?
Helena ergueu-se e lançou-se-lhe nos braços; duas lágrimas rebentaram-lhe dos olhos, e foram as primeiras que eles verteram naquela meia hora. Depois beijou-lhe as mãos com ternura:
— Pode receber estes beijos, disse ela, os anjos não os têm mais puros.
Foram as últimas palavras que D. Úrsula pôde arrancar-lhe; a moça recolheu-se ao silêncio em que a encontrou. D. Úrsula saiu; e foi dali ter com Estácio. O sobrinho encaminhava-se para a sala de jantar.
— Vamos para a mesa, disse ele, não convém que os escravos saibam de tais crises...
D. Úrsula referiu o estado em que achara Helena e as palavras que trocara com ela. Estácio ouviu-a sem nenhuma expressão de simpatia. O jantar foi um simulacro; era um meio de iludir a perspicácia dos escravos, que aliás não caíram naquele embuste. Eles conheceram perfeitamente que algum acontecimento oculto trazia suspensos e concentrados os espíritos. As iguarias voltavam quase intactas; as palavras eram trocadas com esforço entre a sinhá velha e o senhor moço. A causa daquilo era, com certeza, nhanhã Helena.
Estácio deu ordem para que a todas pessoas estranhas se declarasse estar ausente a família. A única exceção era o padre Melchior. A esse escreveu pedindo-lhe que os fosse ver.
— Não posso esperar até amanhã, disse D. Úrsula; se tens de revelar alguma coisa a um estranho, por que o não fazes a mim primeiro? Dize-me o que há. Não posso ver padecer Helena; quero consolá-la e animá-la.
— O que tenho para dizer é longo e triste, retorquiu Estácio; mas, se deseja sabê-lo desde já, peço-lhe ao menos que espere a presença do padre Melchior. Eu não poderia dizer duas vezes as mesmas coisas; seria revolver o punhal na ferida.
A curiosidade de D. Úrsula cresceu com estas meias palavras do sobrinho; mas era forçoso esperar, e esperou. Foi dali ao quarto de Helena. Como a porta estivesse fechada, espreitou pela fechadura. Helena escrevia. Esta nova circunstância veio complicar as impressões de D. Úrsula.
— Helena está encerrada no quarto, e escreve, disse ela ao sobrinho.
— Naturalmente, respondeu este, com sequidão.
O padre Melchior não se demorou em acudir ao chamado de Estácio. O bilhete era instante e a letra febril. Algum acontecimento grave devia ter-se dado. A reflexão do padre era justa, como sabemos; ele o reconheceu desde logo, não só no aspecto lúgubre da família, como na ânsia com que era esperado. Os três recolheram-se a uma das salas interiores.
— Helena? perguntou Melchior.
— Vamos tratar dela, respondeu Estácio.
Referir o que se passara naquela fatal manhã era mais fácil de planear que de executar. No momento de expor a situação e as circunstâncias dela, Estácio sentiu que a língua rebelde não obedecia à intenção. Achava-se num tribunal doméstico, e o que até então fora conflito interior entre a afeição e a dignidade, cumpria agora reduzi-lo às proporções de um libelo claro, seco e decidido. Inocente ou culpada, Helena aparecia-lhe naquele momento como uma recordação das horas felizes, — doce recordação que os sucessos presentes ou futuros podiam somente tornar mais saudosa, mas não destruiriam nunca, porque é esse o misterioso privilégio do passado. Reagiu, entretanto, sobre si mesmo; e, ainda que a custo, referiu minuciosa e sinceramente o que se passara desde aquela manhã.
Não fora talhado para tão melindrosas revelações o coração de D. Úrsula. Desde o princípio da conversação sentiu o atordoamento que dão os grandes golpes. Esperava, decerto, um grande infortúnio de Helena, um episódio da família anterior, alguma coisa que desafiasse a compaixão, sem diminuir o sentimento da estima. Acontecia justamente o contrário; a estima era impossível e a compaixão tornava-se apenas provável.
— Mas não! é impossível! exclamou ela daí a pouco, logo que a razão, obscurecida pelo abalo, pôde readquirir alguma luz... não! eu a vi há pouco; senti-lhe as lágrimas na minha face, ouvi-lhe palavras que só a inocência pode proferir. E, além disso, seu procedimento irrepreensível, um ano quase de convivência sem mácula, a elevação de seus sentimentos... não posso crer que tudo isso... Não! pobre Helena! Vamos chamá-la; ela explicará tudo. Interroguemos o Vicente.
Um gesto dos dois homens mostrou que nenhum deles julgava digno este último recurso para conhecer a verdade.
D. Úrsula caíra em prostração, recordava suas apreensões do primeiro dia, e recuava com horror à idéia de ter acertado. Defronte dela, Estácio ocupava uma poltrona rasa, em cujos braços fincava os cotovelos, apoiando nas mãos a cabeça ardente e abatida. A alma ruminava a dor.
Um só dos três vingava a dignidade da situação. O padre Melchior não sentira menor assombro que os dois parentes de Helena, nem padeceu menos profundo golpe; mas reergueu-se de um e outro; pôde vencer-se e conservar a razão clara, fria e penetrante. Entre os dois corações ulcerados e sem força, compreendeu Melchior que lhe cabia a principal ação, e não recuou ante a responsabilidade que daí poderia deduzir. Viu de um lance a extensão possível do mal, a desunião da família, os desesperos da ocasião, os ódios do dia seguinte, as amarguras indeléveis, e, talvez, as indeléveis saudades; mas nem este quadro o aterrou, nem ele o aceitou sem exame. Melchior não condenava nem absolvia; esperava. Ele pertencia ao número dessas virtudes singelas para as quais o vício é uma rara exceção; natureza sincera e franca, era-lhe difícil crer na hipocrisia. Enquanto Estácio prosseguia calado e pensativo, e D. Úrsula, ora sentada, ora de pé intercalava o silêncio com exclamações de dor, Melchior observava-os e refletia também consigo. Enfim, proferiu estas palavras de animação:
— Sossegue, D. Úrsula; a verdade há de aparecer, e não estamos certos de que seja o que nos parece. Em todo o caso, não antecipemos a aflição. Seria padecer duas vezes. Há tempo de chorar à larga.
Melchior levantou-se:
— Convém sacudir o abatimento, continuou, dirigindo-se a Estácio; é a hora da ação e do vigor. Sobretudo, é necessário não boquejar de semelhante assunto por agora; daria azo às vozes estranhas e seus naturais comentários. Eu tomarei nesta colisão o lugar que me compete, se mo não contestam...
— Oh! exclamou Estácio.
— ... Mas, desejo que desde já se compenetrem bem de que, se a dignidade pede uma coisa, a caridade pede outra, e que o dever estrito é conciliá-las. Nada de ódios; perdão ou esquecimento.
— Mas, padre-mestre, que lhe parece? perguntou D. Úrsula com ansiedade.
— D. Úrsula, disse o padre, é preciso agora que a razão fale e trabalhe; o sentimento deve retrair-se e esperar. Examinarei o caso, e aconselharei o necessário remédio. Talvez estejamos a debater-nos no vácuo; quem sabe? trata-se de um equívoco, de uma aparência...
— Oh! ela confessou tudo! interrompeu Estácio. Vi-lhe a expressão da culpa nos olhos. Mas, enfim, estou pronto para tudo, continuou ele erguendo-se. Não foi o senhor um dos melhores amigos de meu pai? Não o é ainda nosso? Ajude-nos, aconselhe-nos; faremos o que lhe parecer melhor. Na situação em que nos achamos, nenhum de nós tem o espírito bastante senhor de si para colher os elementos da verdade, apurá-la e resolver. Esse papel é seu.
Vieram trazer a Estácio uma carta. Era do Dr. Camargo, anunciando-lhe que a madrinha de Eugênia falecera, e que ele no prazo de alguns dias estaria na Corte. Era o pior momento para semelhante vinda; Estácio não pôde reprimir um gesto de desgosto. O padre, dizendo-lhe o mancebo de que tratava a carta, observou que nenhum inconveniente podia haver no regresso de Camargo, uma vez que, sem demora, ficasse liquidado o assunto que os afligia.
— D. Úrsula, continuou ele, deixe-nos agora sós alguns instantes; vá tranqüila, confie em Deus, e não faça suspeitar a ninguém o que se passa nesta casa.
D. Úrsula obedeceu. Logo que ela saiu, Melchior fechou a porta. Estácio sentou-se de novo, disposto a ouvir o capelão. Este deu alguns passos entre a porta e uma das janelas. Ia anoitecendo; Estácio acendeu um candelabro. Melchior sentou-se ao pé dele, sem lhe falar nem lhe voltar sequer os olhos. Meditava ou lutava consigo mesmo; a fronte pesada e merencória traduzia a agitação interior. Já não era a inalterável placidez, reflexo de uma consciência religiosa e pura. Se a consciência era a mesma, não o era o coração, a braços com uma crise nova. Após dez minutos de profundo silêncio entre ambos, o padre falou.