Capítulo III

O grupo Baiano

A atividade literária dos brasileiros, na segunda fase do período colonial, particularmente na última metade do século XVII, manifesta-se quase exclusivamente pela poesia. Aliás em todo esse período a literatura brasileira compôs-se em grandíssima parte de poesia. «O Brasil foi uma Arcádia antes de ser uma nação», verificou finalmente um crítico de meados do século passado. O que não é, no século XVII, poesia, e poesia de bem pouca poesia, é sermão ou literatura oficial, crônicas, relações, memoriais de caráter estilo burocrático. A natural pobreza da primeira fase do mesmo período, da qual só ficou um nome de poeta e um poema, sucede a sua anormal abundância na segunda metade do século XVII. Anormal pela sua desproporção com o meio, uma sociedade embrionária, incoerente, apenas policiada, e inculta, e anormal ainda pela sua correlação com a prosa, de todo muda nesse momento. Relaciona a poesia quase uma dúzia de poetas. A que atribuir-lhes a gênese?

Primeiro ao natural incentivo da própria inspiração, inconscientemente estimulada pela tradição literária da metrópole, sobretudo poética. A estes primeiros incitamentos juntou-se o aumento da cultura colonial, pela educação distribuída dos colégios dos jesuítas. Fazia-se esta principalmente nos poetas latinos lidos, comentados, aprendidos de cor. Dessa educação, sempre e em toda a parte literária, e apontando apenas ao brilhante e vistoso, eram elementos principais exercícios retóricos de poesia, o que aliás não obstou a que da Companhia jamais saísse um verdadeiro poeta, em qualquer língua. Influíam mais para a produção poética brasileira, em época em que as preocupações eram forçosamente muito outras que as literárias, as solenidades oficiais, celebrando faustos sucessos da monarquia, os abadessados e outeiros desde que aqui houve conventos, isto é, desde o fim do século XVI, as festividades escolásticas inventadas ou pelo menos sistematicamente praticadas pelos jesuítas, quase sempre acompanhadas de representações teatrais, das quais há notícia desde aquele século, as academias ou assembléias de letrados que reciprocamente se liam versos e prosas — versos sobretudo — e conversavam de letras, ainda em antes de se fundarem como sociedades constituídas, no século XVIII. Eram tudo costumes da metrópole logo transplantados para a colônia. Em tais festas e solenidades, como nessas academias, havia sempre recitação de versos inspirados pelos mesmos motivos delas e consagrados a lhes louvar os objetos ou promotores. É justamente nessas festas que, com certeza desde os princípios do século XVIII, se verifica a influência do indígena e do negro em costumes e práticas do Brasil e porventura do seu sentimento no sentimento brasileiro.

Além do natural gosto de se publicarem, e da vaidade, muito de raiz em poetas e literatos, de aparecerem e luzirem, estimulava-os o empenho ou a necessidade de angariarem a benevolência e a proteção dos promotores ou patronos dessas festividades ou objetos delas, governadores, capitães-generais, capitães-mores, prelados.

Ainda em fins do século XVI começou o descobrimento das minas de ouro, que, continuado pelo XVII e seguido do achado dos diamantes, criou no país uma riqueza maior, mais fácil e mais pronta que o pau-brasil, o açúcar e mais produtos indígenas da sua primitiva exportação. Simultaneamente deu-se a interpresa dos holandeses contra a colônia. O primeiro ouro, e até a só bem fundada esperança dele, com a cata cobiçosa das esmeraldas, entrara a influir nos moradores, quer nativos, mamelucos e mazombos, quer adventícios, reinóis ou emboabas, a opinião das grandezas da terra. Disso à bem-querença e orgulho dela, com a conseqüente presunção dos merecimentos deles próprios seus moradores, ia apenas um passo. Não distaria muito este sentimento de um incipiente patriotismo. De 1624 a 1654 sofrera o Brasil, da Bahia ao Maranhão, assaltos, ocupações e conquistas dos holandeses. Salvador, com o seu Recôncavo, fora duas vezes investida e de uma tomada. Relativamente, na expugnação do invasor maior fora a parte dos colonos que a da metrópole. Disso houveram eles clara consciência. Os nossos sucessos nessas lutas, com as suas conseqüências políticas e sociais, e ainda morais, haviam exaltado a nascente alma brasileira com os primeiros ardores daquele sentimento, então apenas existente sob a forma rudimentar de apego à terra natal, a que temos chamado nativismo. Essas lutas dão lugar a uma copiosa literatura histórica: O valeroso Lucideno, de Fr. Manoel Calado (1648), O castrioto lusitano, de Fr. Rafael de Jesus (1679), as Memórias diárias, de Duarte de Albuquerque (1654) e ainda a Jornada... para se recuperar a cidade do Salvador, do P. Bartolomeu Guerreiro (1625) e menores e menos importantes escritos relativos a essas guerras. A esses cumpre juntar as numerosas genealogias que posteriormente a essa época se começaram a escrever, umas hoje publicadas, outras ainda inéditas, provando histórias e genealogias o acordar de uma consciência coletiva nos naturais da terra e a satisfação que a si mesmo se queriam dar da sua valia presente e passada, e de que não era tão somenos a sua prosápia. Não obstante todos estrangeiros, portugueses, os seus autores falaram da terra e dos seus naturais com tanta estima e encômio que lhes aumentara a consciência que começavam a ter de si e do seu torrão natal, por eles defendido com boa vontade, resolução, denodo verdadeiramente admiráveis. Não só admiráveis mas fecundos, porque principalmente desse padecer por ela lhes viria a certeza de quanto a amavam e quanto lhes ela merecia o seu amor. O nacionalismo brasileiro dataria daí.

Não há entretanto nos poetas nomeados qualquer revelação formal de haverem sido estimulados por essa exaltação patriótica. É, porém, quase inadmissível que não a tenham ainda inconscientemente experimentado, sentindo-se, como todos os seus patrícios, mais dignos e maiores, levantados como foram os brasileiros no próprio conceito e até no da metrópole, pela galhardia com que em tão apertada conjuntura se houveram. Não deve ser inteiramente fortuita a coincidência do florescimento, mofino embora, da nossa poesia na segunda metade do século XVII sucedendo ao nosso esforço e triunfo nas guerras com os flamengos. Apenas haverá nesses poetas alguma esquiva referência ou alusão a tais sucessos ainda frescos. É, porém, seguramente notável que as primeiras manifestações do nacionalismo brasileiro sob a forma ainda primitiva do apego por assim dizer material à terra, da ufania das suas excelências e belezas nativas, como sob a forma grosseira da animadversão ao reinol, datem justamente de após esses acontecimentos.

Nesse momento também a Bahia, a cidade do Salvador e a sua comarca, berço da civilização brasileira, pátria e domicílio desses poetas, crescera e se desenvolvera, avantajando-se a todos os respeitos aos demais centros de população da colônia. A crer os cronistas coevos, propensos aliás todos, pois que o hiperbólico e o pomposo estavam na feição do tempo, ao exagero, era a cidade, desde o primeiro século da sua fundação, uma povoação adiantada, de muita comodidade e riqueza. «A Bahia é a cidade de El-Rei e a Corte do Brasil» — escrevia o padre Fernão Cardim, já em 1585. Tudo é relativo. A nós hoje a Bahia se nos afigura ainda uma cidade atrasada, de escasso conforto, comparada a outras mesmo do Brasil, como Rio de Janeiro e S. Paulo. Como quer que seja a cidade do Salvador, na sua extravagância e incoerência de todas as primitivas cidades americanas, meios aldeamentos de índios, meios acampamentos militares, meias povoações civis, aglomerações de choupanas, fortalezas, casas de moradia, residências oficiais, todas mesquinhas e feias, era a sede do Governo-Geral e assento dos seus membros, autoridades civis e militares, cujas funções aliás ainda se confundiam. Dessas autoridades o maior número eram fidalgos de condição e tratamento. Era também a sede do único bispado do país, com a sua sé e o que ela implica de cônegos e mais dignidades. Possuía já muitas igrejas, alguns conventos e um colégio dos jesuítas, cujas aulas quase todos os letrados do tempo haviam freqüentado. No seu tempo se fazia justamente ouvir a voz eloqüente e florida do padre Antônio Vieira e a sua palavra de um tão literário sabor. Tinha «muitas casas sobradadas e de pedra e cal, telhadas e forradas como as do Reino» das quais ao tempo de Gandavo, que o diz, «havia ruas muy cumpridas e formosas». No tempo daqueles poetas teria de uns mil ou mil e quinhentos moradores, e os seus arredores dois mil e quinhentos a três mil. Desde meio século antes destes poetas, havia na cidade uma boa praça em que se corriam touros, e nela «umas nobres casas» onde residiam os governadores. Numa outra praça faziam-se cavalhadas, que, continuadas no século XVII, Gregório de Matos devia de celebrar em suas sátiras. Não faltavam moradores ricos de bens de raiz, peças de prata e ouro, arreios de montaria e tais alfaias de casa, que muitos possuíam dois a três mil cruzados em jóias de ouro e prata lavrada. Mais de cem deles usufruíam rendas de mil a cinco mil cruzados e mais, não faltando capitais de vinte e sessenta mil. Tratavam-se grandemente. Tinham cavalos, criados e escravos. Vestiam-se, principalmente o mulherio, com grandeza e luxo, não usando elas, «por não ser fria a terra» senão sedas. Mesmo a gente somenos acompanhava este luxo. Os peões usavam calção e gibão de cetim e damasco e traziam as mulheres com vasquinhas e gibões da mesma fazenda. Eram bem arranjadas as casas, e nas mesas comum o serviço de prata, andando as senhoras ataviadas de jóias de ouro. Fernão Cardim, descrevendo as boas recepções feitas ao visitador jesuíta e seu séquito na Bahia e arredores, não lhe esquece nem de mencionar os grandes repastos que lhes ofereciam e as iguarias servidas, galinhas, perus, patos, cabritos, leitões, todo o gênero de pescado e mariscados de toda a sorte, como lhe não esquece notar a limpeza e concerto do serviço, na maioria de prata, nem os ricos leitos de seda, etc. Quem conhece as nossas cidades sertanejas de hoje em dia, ou as conheceu há trinta anos ou mais, não terá dificuldade em imaginar o que seria a Bahia dos fins do século XVI e do século XVII: um misto incongruente de civilização e barbaria, de luxo e desconforto. Já então havia nela uma grande população negra e mestiça. Os costumes não eram de forma alguma austeros, antes soltos, como foram sempre os das sociedades incipientes, quando os não continha uma severa disciplina moral, qual a dos puritanos da Nova Inglaterra. Afora de guerrear o indígena, que às vezes ainda ameaçava a cidade ou o Recôncavo, ou de ir atacá-lo nos seus sertões para o descer ou reduzir, além da preocupação de agressões possíveis de estrangeiros cobiçosos do Brasil, resumia-se a atividade daquelas populações na cultura dos engenhos de açúcar vizinhos da cidade ou espalhados pelo Recôncavo. Mas esse trabalho como qualquer outro, e também a granjearia dos alimentos naturais — caça, pesca, frutos da terra, era todo exclusivamente feito por escravos, o que criava para a população livre, indígena ou forasteira, ócio propícios aos vícios e mais costumes. «Os encargos de consciência são muitos, escrevia o padre Cardim ao seu Provincial, os pecados que se cometem neles (engenhos) não têm conta: quase todos andam amancebados por causa das muitas ocasiões; (e jogando de vocábulo com o açúcar, principal riqueza da terra) bem cheio de pecados vai esse doce, por que tanto fazem, grande é a paciência de Deus que tanto sofre». É também a impressão de Froger como de outros viajantes estrangeiros, citados por Southey, que pela Bahia passaram aquele tempo. E a obra satírica, como a mesma vida de Gregório de Matos, confirma essa descompostura de costumes. A essa população mistura incongruente de fidalguia e de ralé portuguesa, de negros e mulatos, e índios e mamelucos, de numerosa soldadesca e não menos copiosa clerezia, ocupavam-na também as devoções festivais nas sessenta e tantas igrejas da cidade e seus subúrbios.

Afora as festas de igreja, em cuja freqüência e esplendor emulariam as diversas religiões, missas solenes, procissões, ladainhas, novenas, vias-sacras e outras da bela e rica liturgia católica, espetáculos diletos da gente ibérica, tinha os moradores da Bahia para diverti-los touros, não menos dela prezados, as cavalhadas, as festividades por motivos de júbilos nacionais da metrópole, representações teatrais dos colégios dos jesuítas ou acompanhando essas festividades, os abadessados, obrigados aos tradicionais outeiros poéticos da península. Na cidade e nos seus arredores era comum fazerem-se comédias. A essas representações consagrou Gregório de Matos mais de um dos seus poemas.45 A escravatura africana muito numerosa, com a facilidade e despejo de costumes produzidos pela escravidão, a soltura da vida colonial devia dar a esses divertimentos, a que cumpre juntar os batuques, candomblés, cateretês e outras importações d’África, já aqui mestiçadas com quejandas de Portugal e do país, um singular pico de talvez maior licença que a da sociedade portuguesa da época.

Os moradores mais abonados mandavam os filhos estudar a Coimbra, depois de os haverem feito cursar as aulas preparatórias locais, mormente as dos jesuítas, que eram as mais recomendadas e freqüentadas. Além das matérias de religião e teologia, estudavam-se nessas aulas o latim e sua literatura e conjuntamente a história e geografia antigas e a mitologia. Nelas explicou e comentou Sêneca, está-se a ver com que abuso de sutilezas e desmancho de trocadilhos, o padre Antônio Vieira. Os jesuítas mantinham em seu colégio uma livraria, ou biblioteca como hoje chamamos, em que certamente com livros de religião e teologia se achariam os poetas antigos e os portugueses e espanhóis de mais nomeada e estimação. Por citações de Botelho de Oliveira, um dos poetas maiores do grupo baiano, verifica-se que eram aí conhecidos entre os letrados, Tasso, Marini, Gongora, Lope de Vega, Camões, Jorge de Montmor, Gabriel Pereira de Castro. E o seriam com certeza ainda outros, famosos naquele tempo. A educação jesuítica, quase a única dos nossos primeiros poetas e letrados, é essencialmente formalística, apenas vistosa, de mostra e aparato, parecendo não apontar senão a ornamentar a memória. Não é porventura temerário atribuir-lhe a feição geral, abundante destes estigmas, do século da decadência literária portuguesa, já bem estreada, e o caráter incolor, e dessaborido como um tema de escolar, da primeira poesia brasileira.

Nesta cidade e sociedade, simultaneamente rudimentar e gastada, nasceram, criaram-se, viveram e produziram no século XVIII os poetas que se convencionou reunir sob o vocábulo de grupo baiano. Além de os juntar o acidente de existirem no mesmo lugar e momento, associa-os a comunhão na mesma poética portuguesa da época. São eles, por ordem de nascimento: Bernardo Vieira Ravasco (1617-1697), irmão do padre Antônio Vieira; Frei Eusébio de Matos (1629-1692); Domingos Barbosa (1632-1685); Gonçalo Soares da França (1632-1724?); Gregório de Matos, irmão de Eusébio (1633-1696); Manoel Botelho de Oliveira (1636-1711); José Borges de Barros (1657-1719); Gonçalo Ravasco Cavalcanti de Albuquerque, primo do outro Ravasco (1659-1725) e João de Brito Lima (1677?). Com a só exceção de Botelho de Oliveira, nenhum deixou livro impresso, sendo que dos outros, excetuado Gregório de Matos, de quem existe manuscrita parte considerável da sua produção, apenas nos restam amostras, resguardadas em antologias e repertórios do século XVIII. Dessas amostras não podemos induzir senão o medíocre engenho desses versejadores. Nenhuma autoriza a sentir a perda do resto. Apenas se haveria perdido com ele mais algum sinal, como o da Ilha de Maré, de Botelho de Oliveira, da impressão da terra e dos seus últimos sucessos nesses poetas, e, portanto, a confirmação interessante do despontar do nosso nacionalismo.

Cento e quatro anos depois da Prosopopéia de Bento Teixeira, saía à luz em Lisboa outro livro de brasileiro, uma coleção de poemas líricos, com este título, muito do tempo: Música do Parnaso em quatro coros de rimas portuguesas, castelhanas, italianas e latinas com seu descante cômico reduzido em duas comédias, oferecida ao Excelentíssimo Senhor Dom Nuno Álvares Pereira de Melo, Duque do Cadaval, etc., e entoada por Manuel Botelho de Oliveira, Fidalgo da Casa de Sua Majestade. Na oficina de Miguel Menescal, Impressor do Santo Ofício, Ano de 1705, in 4º, 240 págs.

Manoel Botelho de Oliveira é o único desses poetas cuja obra foi publicada ainda no seu tempo. Daí lhe vem a relativa, e ainda assim muito apoucada, notoriedade. Há nessa obra, aliás num só dos seus poemas, o primeiro sintoma de emoção estética produzida pela terra em um dos seus naturais, e literariamente exprimida. E a expressão não é, sob este aspecto, de todo somemos. Entre os poemas do tempo é acaso o único que ainda leiamos com aprazimento.

Segundo a mais antiga e única notícia que do poeta existe, Botelho de Oliveira «nasceu na cidade da Bahia, capital da América portuguesa, no ano de 1636, filho de Antônio Álvares Botelho, capitão de infantaria paga, fidalgo da Casa de Sua Majestade. Estudou na Universidade de Coimbra jurisprudência cesárea (direito romano), exercitando na sua pátria a advocacia das causas forenses por muitos anos com grande crédito da sua literatura. Foi vereador do Senado da sua pátria e capitão-mor de uma das comarcas dela. Teve grande instrução da língua latina, castelhana, italiana, como também da poesia, metrificando com suavidade e cadência. Faleceu a 5 de janeiro de 1711».

O livro de Botelho de Oliveira, a primeira coleção de poesias publicada por brasileiro, contém, afora os poemas em português, espanhol, latim e italiano (os quatro coros de rimas a que alude o título), duas comédias em castelhano: Hay amigo para amigo e amor-engaños y zelos, das quais a primeira parece havia já sido impressa antes de sair novamente no volume Música do Parnaso.

Não há neste principal documento dos começos da nossa poesia, ou melhor, da poesia portuguesa no Brasil, distinção notável, é pobre de sentimento e inspiração. A língua, como a metrificação, é correta, ainda boa, se bem não escapem ambas aos vícios e defeitos do tempo. O chamado catálogo da Academia de Lisboa inclui a Música do Parnaso nos livros que se haviam de ler para a organização do dicionário da língua, projetado pela mesma Academia. Os poemas, sonetos, canções madrigais e quejandas composições nas fórmulas da poética em moda, ou são laudatórios, endereçados a diversas personagens, geralmente próceres da república, por vários motivos, nenhum bastante comovente para inspirar um poeta, ou são versos de amor, mas do amor obrigatório dos poetas, versos frios, sem paixão, a certa Anarda, a amante proverbial que lhos inspira. Também os há simplesmente galantes, endereçados a outras damas ou a conta de outras: Pintura dos olhos de uma dama, pintura de uma dama namorada de um letrado e quejandos... O nosso cronologicamente primeiro lírico (já que Bento Teixeira presume-se de épico) não foi, pois, senão um correto e vernáculo versejador como os teve a nossa língua às dezenas na mesma época e depois. Esta sua obra poética apenas lhe daria direito a uma menção na história da nossa literatura, como um nome desvalioso e desinteressante à sua evolução não fora o acidente feliz do seu poema A Ilha de Maré, que unicamente o salva de um esquecimento completo e merecido. Ao inconsciente estímulo do nativismo, gerado dos acontecimentos no meio dos quais nasceu e se fez homem, sentiu-se um dia Botelho de Oliveira sinceramente tocado pelas belezas e dons do seu torrão natal, e sob esta comoção cantou-o ingenuamente, caso então extraordinário, e não sem lindeza. Aquela insignificante ilha da baía de Todos os Santos, provavelmente o seu berço, não podia conter ela só tanta cousa como ele lhe põe no poema em que a celebra, tantas e tão boas prendas. É a sua Bahia, é o mesmo Brasil, que o poeta embevecido resume na sua ilha natal e que, cantando-a, canta com manifesta satisfação e ufania:

Esta ilha de Maré, ou de alegria que é termo da Bahia tem quase tudo quanto o Brasil todo, que de todo o Brasil é breve apodo.

Dele embevecido faz já, o que é a mesma marca do nativismo brasileiro, ingênuas comparações desfavoráveis a Portugal e à Europa, dando a primazia à sua terra:

Tenho explicado as fruitas e legumes que dão a Portugal muitos ciúmes; tenho recopilado o que o Brasil contém para invejado e para preferir a toda a terra.

Este poema, que pode ainda hoje ser lido com aprazimento, graças ao seu pitoresco, à sua cor local e simplicidade, inicia na poesia brasileira o seu tocante sestro de cantar a terra natal. Meio século depois, Santa Rita Durão pouco mais fará que repetir e desenvolve com mais largo estro e mais advertido sentimento, a inspiração da Ilha de Maré, quando no canto VII do Caramuru celebra as riquezas naturais e produções do Brasil.

Esta emoção, que não é mais a simples impressão da terra do versejador da Prosopopéia, Botelho de Oliveira foi o primeiro a exprimi-la. Outro poeta baiano, o Anônimo Itaparicano, a repetiria no século XVIII, e ela nunca mais desapareceria da poesia brasileira. Antes permaneceria nesta como uma das suas emoções mais peculiares e um dos seus mais comuns motivos de inspiração, concorrendo para dar-lhe as feições que pouco a foram distinguindo da portuguesa. Justamente no momento em que, com o Romantismo, a separação entre as duas literaturas se estabelece e acentua, o maior poeta brasileiro, Gonçalves Dias, lhe achará a forma definitiva e sublime na sua ingenuidade, na Canção do Exílio. E apenas haverá poeta no nosso Romantismo em que se não ouça essa nota amorável da terra pátria.

Botelho de Oliveira é, com a sua Ilha de Maré, o mais frisante exemplo, em nossa primitiva literatura, ao conceito da gênese do sentimento brasileiro após os sucessos da primeira parte do século XVII, os acrescimentos geográficos e econômicos da colônia e as suas lutas vitoriosas contra

Holanda pérfida e nociva

como ele disse.

O que nos legaram os outros, excetuando sempre Gregório de Matos, é muito pouco para lhe podermos avaliar com segurança o mérito. Mas sobre insignificante tem tudo o mesmo ar de família da pior poesia contemporânea.