Capítulo IV

Gregório de Matos

Do grupo baiano o mais conhecido, o mais interessante e curioso e ainda, em suma, o mais distinto, é Gregório de Matos. Se, como parece, são realmente suas as numerosas composições métricas que, em cópias do século XVIII, chegaram até nós, foi ele também o nosso mais copioso poeta dos tempos coloniais. Há vários volumes manuscritos de obras suas. São umas sérias, outras satíricas e burlescas, a máxima parte aliás, mais burlescas do que satíricas. São estas não só as mais porém as únicas conhecidas, tanto dos historiadores da nossa literatura como do vulgo dos letrados.

Da porção séria da obra de Gregório de Matos não julgaram aqueles dever ocupar-se. Deste descuido resultou uma noção imperfeita e uma idéia errada do poeta. Fizeram dele um herói literário, um precursor do nosso nacionalismo, um antiescravagista, um gênio poético, um repúblico austero, quiçá um patriota revoltado contra a miséria moral da colônia. Houvessem procurado conhecer a parte não satírica de sua obra, ou sequer lido atentamente a parte satírica publicada, 6 única que conheceram, haveriam escusado cair em tantos erros como juízos.

Único entre os poetas e escritores coloniais, coube a Gregório de Matos a fortuna de ter um biógrafo ainda, quase seu contemporâneo. Esta sua biografia48 escrita por volta do meado do século XVIII, mais de quarenta anos depois dele morto, e o fato das numerosas cópias dos seus poemas provam a fama que havia adquirido e a estima em que era tido. Uma e outra não deixaram de atuar nos que modernamente o estudaram, aliás com preconceitos nacionalistas já de todo desapropositados. É também ele acaso o único dos nossos poetas de quem, antes dos mineiros, encontramos lembrança em autores portugueses. O bispo do Pará, D. Fr. João de S. José, nas suas Memórias, de meados do século XVIII, consagra-lhe um parágrafo.

O seu parcialíssimo biógrafo noticiou, e todos o têm repetido, que o padre Antônio Vieira dizia que «maior fruto faziam as sátiras de Matos que os sermões de Vieira». Pode ser, mas em toda a obra de Vieira referente ao Brasil se não encontra a mais vaga alusão ao poeta, e não é de crer o asserto na boca do soberbo jesuíta.

Filho de um escudeiro fidalgo emigrado da província portuguesa e proprietário na Bahia de uma senhora brasileira de boa geração e afazendada, Gregório de Matos cedo foi mandado estudar a Portugal. Ali se doutorou em leis em Coimbra, onde se lhe revelou o engenho poético e a índole satírica. Na indisciplina geral da sociedade portuguesa, mais do que estreada naqueles princípios do século XVII, teria a Universidade, isto é, a corporação de seus alunos, como sempre teve, parte conspícua. Não se precisa de grande esforço de imaginação para ver o nosso brasileiro, naturalmente com boa mesada, reputação de rico, desenvolto, talentoso, chistoso e trêfego, representando saliente papel nas famosas troças e tropelias daquela rapaziada irrequieta e bulhenta. «Anda aqui, escrevia desde Coimbra a um amigo da Corte um seu condiscípulo, Belchior da Cunha Brochado, ao depois desembargador na Bahia, anda aqui um estudante brasileiro tão refinado na sátira que com suas imagens e seus tropos parece que baila Momo às cançonetas de Apolo.» Imagina-se o furor que ele faria em Coimbra.

Dali já conhecido e estimado pelo engenho poético e gênio folgazão, parece saiu também com bons créditos de leguleio, confirmados pouco depois na prática de advocacia com um bom letrado, com quem trabalhou em Lisboa. A metrópole foi-lhe, como a tantos outros brasileiros, caroável e propícia. Teve em Lisboa os lugares de juiz do crime e de juiz de órfãos. Como tal uma de suas sentenças figura nos Comentários de Pegas às ordenações do Reino. Cresceu em créditos e considerações de jurista e jurisperito, com bons augúrios de aumentos na magistratura, quando de súbito se viu baldado nas suas pretensões a maiores cargos e, ao que parece, malquisto da Corte ou do Governo. O seu biógrafo, o licenciado Pereira Botelho, cujas são estas notícias, duvidosas por serem de uma única testemunha, que não era sequer presencial, não diz claramente o motivo deste desfavor.

Das suas retorcidas explicações, no mais sesquipedal estilo do tempo, pode-se porém induzir sem risco de erro que à sua veia satírica, tão bem iniciada em Coimbra, deveu Gregório de Matos a sua desgraça. Deu-lhe provavelmente curso e criou-se inimigos entre os poderosos. Mas ainda nesta conjuntura não lhe foi a fortuna de todo adversa, pois lhe deparou um favorecedor no primeiro arcebispo nomeado para a Bahia. Sem obstáculo de não ter Gregório de Matos mais que as ordens menores, o nomeou tesoureiro-mor da sua catedral, acrescentando-lhe o cargo de vigário-geral. De Lisboa veio Matos amatalotado com um patrício, que recolhia à terra como desembargador da Relação. Se são exatos os dados do seu biógrafo, teria Gregório de Matos, quando regressou à terra natal para nela viver, 58 anos feitos. Era já um pouco tarde para se lhe afazer e afeiçoar. Não seria uma natureza afetiva, como não o são em geral os satíricos. Mostra-o se ter deixado ficar em Portugal, donde só saiu obrigado das circunstâncias. Voltando do desterro de Angola, deixou-se também, por puro espírito de boêmia, ficar em Pernambuco, sem mais se lhe dar da família que na Bahia fizera e abandonara. É certo que entre os seus poemas alguns há à sua futura mulher e à morte de seus filhos. São porém os versos de praxe dos poetas enamorados. Nos feitos aos filhos a retórica do tempo escondeu o sentimento real que porventura os inspirou.

Pelo seu gênio malédico e satírico, pela irritação com que deixara Portugal, pelo desapego da terra, onde se encontrava deslocado e contrafeito, e a qual não cuidou de afeiçoar-se, achou-se naturalmente mal e contrariado nesta, e em oposição com ela. Mais de trinta anos de Portugal lhe tornaram insuportável a mesquinha vida da sua mesquinha Bahia.

Muito vaidoso, como soem geralmente ser poetas e literatos, era-o extremamente do seu título de doutor, do seu saber jurídico, da posição que tivera no Reino, e até de ser branco. Sentia-se, pois, afrontado com a indiferença dos seus patrícios e vizinhos, insensíveis a estas suas superioridades. Acham-se-lhe fartos documentos deste seu estado d’alma, em todo caso revelador de pouco espírito, em vários passos de sua obra. Na Epístola ao Conde do Prado, filho do governador-geral Marquês das Minas, claramente o descobre:

Era eu em Portugal sábio, discreto, entendido, poeta melhor que alguns douto como os meus vizinhos. E chegando a esta terra logo não fui nada disto porque um direito entre tortos parece que anda torcido.

Desvanece-se grandemente do seu título de doutor e de vez em quando o alardeia. No Benze-se o poeta de várias ações que observava na sua pátria, ralha:

Que pregue um douto sermão um alarve, um asneirão; e que esgrima em demasia quem nunca lá da Sofia soube ler um argumento anjo bento!

A Sofia é a Universidade de Coimbra, alcunha que lhe veio da rua desse nome ficava. Nas Verdades lastima-se:

Os doutos estão nos cantos Os ignorantes na praça.

Nos Milagres do Brasil exprobra:

Um branco muito encolhido, um mulato muito ousado, um branco todo coitado, um canaz todo atrevido. O saber muito abatido a ignorância e ignorante muito ufano e mui farfante sem pena ou contradição: milagres do Brasil são.

Mostra Gregório de Matos particular ojeriza a negros e mulatos, aos quais por via de regra chama de cães. Tinha consciência e orgulho de sua prosápia e sangue estreme. Lastima, é certo, os negros e teve uma vez expressões de comiseração pelos escravos (pelo que já o deu a crítica indígena por abolicionista), mas a conta que de uns e outros fazia era a do reinol do mazombo, isto é, do branco filho de português como ele. Nos citados Milagres do Brasil sobram exemplos desta sua ojeriza. E na também citada Epístola ao Conde do Prado:

Pois eu por limpo e por branco Fui na Bahia mofino

Não suporta o menospreço da gente da Bahia à sua superioridade, e não lhe sofre a paciência a este jurista que a sua qualidade de branco e outras partes lhe não dêem insenções e regalias:

Não sei para que é nascer neste Brasil empestado um homem branco e honrado sem outra raça. Terra tão grosseira e crassa que a ninguém se tem respeito salvo se mostra algum jeito De ser mulato!

[...]

Os brancos aqui não podem mais que sofrer e calar e se um negro vão matar chovem despesas. Não lhe valem as defesas. Do atrevimento de um cão, porque acorda a Relação sempre faminta.

E, mais, ainda nos Citados Milagres do Brasil:

Que vos direi do mulato, que vos não tenha já dito, se será amanhã delito falar dele sem recato?

[...]

Imaginais que o insensato do canzarrão fala tanto porque sabe tanto ou quanto?

Não, se não por ser mulato; ter sangue de carrapato, seu estoraque de congo cheirar-lhe a roupa a mondongo.

Ao revés era extremamente caroável de mulatas e crioulas. O sátiro que nele descobriu a crítica imaginosa de Araripe Júnior, prodigalizou-se em versos amantéticos, babosos, de velho femeeiro, a esse tipo feminino, de que a Bahia teve sempre a primazia. Mas ainda nestes requebros não é raro revelar-se-lhe, na ironia com que insensivelmente descambam em sátira, aquela quizília de raça. Os seus apetites grosseiros eram, porém, mais fortes que esta sua idiossincrasia, e ele é sobretudo o cantor da mulata.

Na Bahia, o seu primeiro ato inconsiderado foi andar a secular, apenas revestindo as vestes sacerdotais, a que o obrigavam as suas funções, quando as exercia, o que foi motivo de escândalo. Se como sujeito douto, que se vira bem aceito no Reino, onde ocupara boa posição, se encontrou mal aqui, por outro lado a sua índole desabusada, solta devia achar a terra à sua feição. Que importa que ele tenha deblaterado contra ela e contra os seus vícios e defeitos quando da sua mesma obra verificamos, de modo a não deixar dúvida, que se compôs perfeitamente com tudo aquilo de que ralha e viveu deleitosamente a mesma vida que tão crua e insistentemente reprova aos seus concidadãos? O capadócio que era de índole e condição, achou na sua terra onde expandir os seus instintos nativos se não atávicos, influídos de mais a mais pelo meio. Gregório de Matos é a mais perfeita e mais ilustre expressão desse tipo essencialmente nacional, do qual foi e continua a ser a Bahia a fecunda progenitora, o capadócio.

É ele o seu mais eminente protótipo, como é também o primeiro boêmio da nossa literatura, com a vantagem sobre os aqui procriados pelo romantismo de o ser de nascença e originalmente, e não de macaqueação de Paris. Porque nele se completasse cabalmente o tipo do capadócio, era também insigne cantador de modinhas, tocador de viola, um solfista, como então se chamava. Ao último remate da sua caracterização, só lhe faltou ser mestiço, se com efeito não era, o que quase custa a crer. Mas se a indolência, o desleixo, a incúria, certas qualidades brilhantes mas superficiais de espírito, a debilidade de caráter, a lascívia exuberante, são os sinais mais comuns e aparentes do mestiço, ele moralmente o era, apesar da sua presunção de branco puro, da sua vaidade de douto, dos seus muitos anos de Portugal e da educação portuguesa.

Quis, talvez, conciliar duas cousas incompatíveis, e de o não ter, por impossível, conseguido, resultou o seu profundo desgosto da terra, manifestado com uma reiteração e variedade de formas que lhe estão revendo a sinceridade fundamental. As duas cousas que quis acordar eram a consideração pública pelos seus talentos, letras e graduação social com a vida dissoluta que, a despeito dos péssimos costumes locais, seria ainda assim escandalosa, segundo ressalta das anedotas da sua vida e o deixa de manifesto a sua obra. Como não o conseguisse, e por hora da moralidade humana que jamais soçobra totalmente não o podia alcançar, rebelou-se, fazendo-se ao mesmo tempo o flagelo e o divertimento dos seus concidadãos, o «boca do inferno», como é de tradição o alcunhavam. Não se limitava a versejar por sua conta, se não que fazia versos para outros. Como fosse de fato quem satíricos e malédicos mais e melhor os fazia, atribuíam-lhe quantos neste gênero apareciam, de autoria desconhecida. Não é, pois, improvável que dos existentes com o seu nome, os haja que não sejam seus. Só se empresta aos ricos. Disso queixa-se ele, deixando na sua mesma queixa a marca da sua vaidade:

Saiu a sátira má e empurraram-me os perversos, porque enquanto a fazer versos só eu tenho jeito cá. Noutras obras de talento só eu sou o asneirão mas sendo sátira, então só eu tenho entendimento.

Achou-se, portanto, em guerra com a sociedade cujo era, de cujos vícios e manhas comparticipava, para cuja imoralidade contribuía com o seu exemplo de vida desregrada e ainda torpe, como o testemunham os seus poemas publicados e inéditos. Tinha aliás consciência da animadversão recíproca dele e de sua cidade:

Querem-me aqui todos mal, e eu quero mal a todos, eles e eu por nossos modos nos pagamos tal por tal: e querendo eu mal a quantos me têm ódio tão veemente o meu ódio é mais valente pois sou só e eles tantos.

E noutro passo dos inéditos da Biblioteca Nacional (Cod. 34-29, pág. 403) malsina assim cinicamente da terra:

Porque esta negra terra nas produções, que erra, cria venenos mais que boa planta: comigo a prova ordeno que me criou para mortal veneno.

É estranho que aquela confissão tão pessoal seja apenas o desenvolvimento, feito aliás com vantagem, destes versos do espanhol Quevedo, tantas vezes imitado e até plagiado por Gregório de Matos:

Muchos dicen mal de mi, y yo digo mal de muchos; mi decir es más valiente por ser tantos y yo ser uno.

Foi justamente esta situação singular em que o puseram a sua índole e o seu engenho que deu a Gregório de Matos a sua feição particular e distinta e o singularizou em a nossa literatura colonial. Enganaram-se redondamente os que pretenderam fazer dele ou quiseram ver nele um precursor da nossa emancipação literária, cronologicamente o primeiro brasileiro da nossa literatura. É de todo impertinente supor-lhe filosofias e intenções morais ou sociais. É simplesmente um nervoso, quiçá um nevrótico, um impulsivo, um espírito de contradição e denegação, um malcriado rabugento e malédico. Mas estes mesmos defeitos, se lhe não permitem figurar com a fisionomia com que o fantasiaram, serviram grandemente à sua feição literária e lha revelaram, embora parcialmente, sobre todas as do seu tempo. Em todo caso, mereceria Gregório de Matos aquela apreciação se houvera apenas sido o poeta satírico de sua obra e da tradição, o díscolo que só ele entre os seus contemporâneos malsinou do regime colonial e dos vícios públicos e particulares que o pioravam, e que, num impulso de despeito pessoal, foi o único a sentir aquilo que devia, volvidos dois séculos, ser o germe do pensamento da nossa independência:

Que os brasileiros são bestas e estarão a trabalhar toda a vida por manterem Magamos de Portugal.

E mais, se a esse feitio pessoal do seu estro juntasse traços literários que o diferençassem de qualquer modo da poesia portuguesa contemporânea. Mas isto justamente não acontecia. O sátiro era bifronte, e o poeta, ainda na sátira, seguia sem discrepância apreciável a moda poética ali em voga sem nenhuma espécie de originalidade, senão a de ser aqui o único que ralhava do meio.

Numa face tinha o riso escarninho e petulante e o jeito obsceno do capadócio, na outra a compostura cortesã acadêmica, devota, do doutor de Coimbra, do magistrado, do vigário-geral, do procurador da mitra. Com uma zomba, ri, chalaceia, maldiz, descompõe, injuria, enxovalha, ridiculariza a terra e sociedade a que pertence, e faz praça desavergonhada dos seus amores reles, da sua vida despejada e indecorosa; com a outra, tal qual os seus confrades em musa do tempo, louvaminha, bajula, incensa a magnates e poderosos, ou verseja motivos e temas futilíssimos, com tropos, imagens, trocados e jogos de vocábulos em nada destoantes da poética do tempo, da qual a sua se não afasta em cousa alguma. Como satírico, não destoa Gregório de Matos, nem pela inspiração, nem pela expressão da musa gaiata portuguesa coeva, ilustrada ou deslustrada por D. Tomás de Noronha, Cristóvão de Morais, Serrão de Castro, João Sucarelo, Fr. Vahia, Diogo Camacho e quejandos, todos como eles, sequazes do espanhol Quevedo, de quem foi o nosso patrício servil imitador. Também não há, nem na inspiração, nem na expressão da poesia não satírica de Gregório de Matos algum sinal que o estreme entre os seiscentistas e gongoristas seus contemporâneos. Emparelha em tudo e por tudo com eles.

Salvo o pouco que dela publicou Varnhagem no seu Florilégio (I, 17-104), esta feição da obra poética de Gregório de Matos ficou até hoje desconhecida, mesmo dos que sobre ele mais longamente discorreram. Existe entretanto na Biblioteca Nacional material manuscrito mais que bastante para o estudo completo do poeta, sem o qual não podemos ter dele uma noção cabal. Desse estudo, que fizemos, resultará a certeza de que Gregório de Matos é antes um poeta burlesco, picaresco, até chulo, à maneira de Quevedo, seu modelo, e dos satíricos portugueses seus contemporâneos, do que satírico ao modo de um Horácio, de um Juvenal ou de um Boileau.

E não porque não houvesse nele talento para o ser. Que o havia mostram-no os seus poemas Aos vícios, belo de conceito e forma, os dous Retratos dos governadores Câmara Coutinho e Sousa de Menezes, e, acaso sobre todos a sátira que começa

Que néscio que eu era então quando cuidava o não era!

São todos modelos de boa poesia do gênero, em que podemos admirar imaginação, chiste e conceito, além da beleza métrica e da excelente língua, numerosa e propriíssima. Estas mesmas qualidades se nos deparam em outros seus poemas, já burlescos, já sérios, mas apenas parcialmente, em alguma estrofe, em algum verso. Geralmente, porém, ele é o tipo do poeta descuidado, desmazelado, como foi o tipo do homem desleixado. Versejava a torto e a direito, por conta própria ou alheia, sem escolha do momento ou do assunto, sem respeito ao próprio estro, nem decoro de quem era. Prodigalizava a veia inesgotável em temas como «A uma briga que teve certo vigário com um ouvires por causa de uma mulata», «A prisão de duas mulatas por uma querela que delas deu o célebre capitão... de alcunha o Mangará pelo furto de um papagaio», «A mulata... que chamava seu um vestido que trazia de sua senhora», «A mulata Vicência amando ao mesmo tempo a três sujeitos», «A um crioulo chamado o Luzia a quem vasaram um olho por causa de uma negra» e quejandas. Dele se conta que vendo em Pernambuco duas mulatas engalfinhadas numa briga que as pôs ridiculamente descompostas, pôs-se a gritar: «Aqui d’El-Rei, contra o Sr. Caetano de Melo!». A razão de seu grito, explicava depois, era ter o governador deste nome lhe defendido versejar, quando se lhe deparavam assuntos como aquele. A historieta é interessante por muito significativo do estímulo e feitio poético de Gregório de Matos. E crescidíssimo número das suas composições chamadas satíricas não têm motivos diversos daquele que se lastimava de perder.

Não são melhores se não por menos indecorosos, os móveis de sua inspiração de outra ordem que a burlesca. Verseja por governadores, potentados, bispos e arcebispos, com louvores e enaltecimentos hiperbólicos e peditórios indignos. Verseja também por espetáculos de comédias a que assiste, por festas a que vai, por sucessos sem nenhuma importância, por beldades diversas, e por fim verseja devotamente como um libertino arrependido ou antes medroso do inferno.

Ao mesmo governador Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho, de quem fez numa das suas temíveis e melhores sátiras o célebre retrato, endereçou Gregório de Matos um Memorial em forma de soneto pedindo uma esmola (sic), o qual assim termina:

Seguiram os três reis planeta louro, guie-me a minha estrela o peditório com que na vossa mão ache um tesouro.

Entre vários sonetos seus a arcebispos, todos destoantes da reputação que lhe fizeram de poeta isento e homem de brios, depara-se-nos este a D. João Franco de Oliveira, que do bispado de Angola passava ao arcebispado da Bahia, e que reproduzimos por dar a medida da poética de Gregório de Matos:

Hoje os Matos incultos da Bahia se não suave for, ruidosamente cantem a boa vinda do eminente príncipe desta sacra monarquia.

Hoje em Roma de Pedro se lhe fia segunda vez a barca e o tridente porque a pesca que fez já no Oriente o destinou para a do meio-dia. Oh se quisesse Deus que sendo ouvida a musa bronca dos incultos Matos ficasse vossa púrpura atraída

Oh se como Aream, que a doces tratos uma pedra atraiu endurecida atraísse eu, Senhor, vossos sapatos!

Não esqueçamos que o poeta que assim saudava o arcebispo era vigário-geral e procurador da mitra. A estes versos de louvor a poderosos, vezo muito corriqueiro nos poetas contemporâneos, juntava Gregório de Matos alguns poemas de inspiração mais alta, como este soneto:

À Instabilidade das Coisas do Mundo:

Nasce o sol, e não dura mais que um dia depois da luz se segue a noite escura em tristes sonhos morre a formosura, em contínuas tristezas a alegria.

Porém se acaba o sol, por que nascia? Se é tão formosa a luz, por que não dura? Como a beleza assim se transfigura? Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no sol e na luz falte a firmeza na formosura não se dê constância e na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância e tem qualquer dos bens por natureza e firmeza somente na inconstância.

Ou como este sobre A vida solitária, último paradeiro dos varões prudentes:

Ditoso tu que na palhoça agreste viveste moço e velho respiraste, Berço foi em que moço te criaste essa será, que para morto ergueste.

Aí do que ignoravas aprendeste aí do que aprendeste me ensinaste, que os desprezos do mundo que alcançaste armas são com que a vida defendeste.

Ditoso tu que longe dos enganos a que a Corte tributa rendimentos tua vida dilatas e deleitas

Nos palácios reais se encurtam anos porém tu, sincopando os aposentos mais te dilatas quando mais te estreitas.

Estas transcrições dão a medida do valor poético de Gregório de Matos e, parece, justificam o nosso conceito de que ele se não distingue notavelmente dos poetas portugueses e brasileiros seus contemporâneos. Que não teve a mínima influência literária no seu tempo ou posteriormente, provam-no de sobejo as obras dos seus confrades de grupo e as do século XVIII, o século das Academias literárias e, ao menos até antes dos mineiros, de extrema pobreza poética.

A importância literária da sua copiosa obra poética é singularmente levantada por lances interessantíssimos à história dos nossos costumes e da sociedade do seu tempo. Desta nos deixou, mormente na parte satírica ou burlesca, precioso elemento de estudo, das suas maneiras e hábitos, dos seus mesmos sentimentos e feições morais. A sua língua, que julgamos poder qualificar de clássica, tem modalidades, idiotismos, adágios, fraseados, muito peculiares, e alguns certamente já brasileiros. O seu vocabulário, que está a pedir um estudo especial, é abundante em termos castiços, arcaicos e raros, espanholismos e brasileirismos. Costumes, usos e manhas nossas aparecem-lhe nos versos em alusões, referências, expressões, que documentam o grau adiantado da mestiçagem entre os três fatores da nossa gente que aqui se vinha operando desde o primeiro século da nossa existência. É sobretudo esta feição documental da sociedade do seu tempo que sobreleva Gregório de Matos aos seus contemporâneos e ainda a todos os poetas coloniais antes dos mineiros, todos eles sem fisionomia própria. O único que em suma a tem é ele.