Capítulo XII

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Cadmo, fundador de Tebas, matando o dragão.
ilustração de Hendrik Goltzius (1558-1617)

Júpiter Júpiter, disfarçado de touro, raptou Europa, filha de Agenor. rei da Fenícia. Agenor deu ordens para que seu filho Cadmo fosse em busca de sua irmã, e não retornasse sem ela. Cadmo partiu e procurou a sua irmã durante longo tempo e nos lugares mais remotos, mas não conseguiu encontrá-la, e como não ousaria retornar sem ter sucesso, consultou o oráculo de Apolo para saber em que país ele deveria se estabelecer. O oráculo informou que ele deveria procurar uma vaca no campo, e deveria segui-la, onde quer que ela fosse, e onde ela parasse, ali ele deveria construir uma cidade e chamá-la de Tebas.

Cadmo mal tinha deixado a caverna de Castália, onde o oráculo havia vaticinado, quando avistou uma bezerra caminhando diante dele. Ele a seguiu de perto, oferecendo ao mesmo tempo suas preces para Febo. A bezerra continuou andando até que ela atravessou o canal de Céfiso que era raso, e chegou nas planícies de Panope[1]. Ali ela ficou parada, e levantando a sua enorme cabeça para o céu, encheu o ar com seus mugidos. Cadmo agradeceu, e abaixou-se para beijar o solo, em seguida, levantando o olhos, saudou as montanhas ao redor.

Desejando oferecer um sacrifício a Júpiter, ele enviou seus criados para procurar água pura para uma libação. Perto dali ficava um bosque denso, e que nunca havia sido profanado por um machado, e no meio do bosque havia uma caverna espessa e coberta por uma vegetação alta, o teto da caverna formava um arco baixo, e debaixo do arco jorrava uma fonte da mais pura água. Dentro da caverna ocultava-se uma serpente horripilante, que tinha uma crista na cabeça e escamas que reluziam como ouro. Os olhos dela brilhavam como fogo, o corpo era inchado e cheio de veneno, e ela ficava vibrando no ar uma língua tripartida, além de exibir uma tripla fileira de dentes.

Mal tinham os tírios mergulhados seus odres na fonte, e as águas que gotejavam dentro fizeram um barulho, então a serpente reluzente levantou a cabeça para fora da caverna e soltou um assobio assustador. Os odres caíram de suas mãos, seus rostos ficaram pálidos, e eles começaram a tremer como se fossem varas verdes. A serpente, contorcendo seu corpo cheio de escamas, e formando uma enorme espiral, levantou a cabeça acima das árvores mais altas, e enquanto os tírios não conseguiam fugir nem lutar por causa do terror, matou alguns com suas presas, outros asfixiados em seu abraço, e outros com seu hálito venenoso.

Cadmo, tendo esperado até o meio-dia pela volta dos seus homens, foi à procura deles. Tinha como proteção apenas uma pele de leão, e além do seu dardo, ele levava na mão uma lança, e no peito um coração ousado, uma proteção mais garantida do que as duas anteriores. Quando ele entrou na floresta, e viu o corpo sem vida de seus homens, e o monstro com suas mandíbulas cheias de sangue, ele exclamou: "Ó amigos fiéis, eu os vingarei, ou compartilharei a morte com vocês." E assim dizendo, levantou uma pedra enorme e a atirou com todas as suas forças sobre a serpente. Tamanho bloco teria abalado a muralha de uma fortaleza, mas sobre o monstro a pedra não causou nenhum efeito.

Em seguida, Cadmo lançou seu dardo, onde foi melhor sucedido, pois ele penetrou as escamas da serpente, e trespassou as suas entranhas. Furioso por causa da dor, o monstro virou a cabeça para olhar o ferimento, e tentou arrancar a arma com a boca, mas ela se quebrou, deixando a ponta de ferro rasgando a sua carne. Seu pescoço inchou de raiva, uma espuma de sangue cobria suas mandíbulas, e o sopro de suas narinas envenenava todo o ar ao redor. Em certo momento, ela se contorceu num círculo, e depois ficou esticada no chão como se fosse o tronco de uma árvore caída.

Quando ela avançou para a frente, Cadmo recuou diante dela, segurando a sua lança de frente para as mandíbulas escancaradas do monstro. A serpente virou-se de frente para a arma e tentou morder sua ponta de ferro. Finalmente, Cadmo, percebeu sua chance, e enfiou sua lança num momento em que a cabeça do animal voltando-se para trás bateu no tronco de uma árvore, conseguindo desse modo imobilizá-la lateralmente. O peso da serpente entortava a árvore enquanto o animal se debatia nas agonias da morte. Quando Cadmo estava sobre o inimigo conquistado, contemplando seu enorme tamanho, uma voz se ouviu (não sabia de onde vinha, mas a ouvia perfeitamente) mandando que ele pegasse os dentes do dragão e os semeasse na terra. Ele obedeceu.

Ele fez um sulco na terra, e plantou os dentes, destinados a produzir uma colheita de homens. Mal ele tinha feito isso, e os torrões de terra começaram a se mover, e as pontas de lanças surgiam acima da superfície. Em seguida, helmos com suas plumas pendentes apareceram, e depois os ombros e os peitos e os membros do homens com armas, e por fim uma colheita inteira de guerreiros armados. Cadmo, alarmado, se preparou para encontrar um novo inimigo, mas um deles disse para ele: "Não se meta em nossa guerra civil." E com isso, aquele que tinha falado golpeou com a espada um de seus irmãos que havia nascido da terra, e ele próprio foi atravessado pela lança de um outro.

O último caiu vítima de uma quarto, e de igual maneira, toda a multidão lutava uns com os outros até que todos caíram, mortos por ferimentos recíprocos, com exceção de cinco sobreviventes. Um destes lançou fora suas armas e disse: "Irmãos, vamos viver em paz"! Estes cinco se juntaram a Cadmo na construção de sua cidade, à qual deram o nome de Tebas. Cadmo contraiu matrimônio com Harmonia, filha de Vênus. Os deuses saíram do Olimpo para homenagear essa festividade com a presença deles, e Vulcano presenteou a noiva com um colar de brilho inexcedível, que ele próprio havia confeccionado.

Mas uma fatalidade pairava sobre a família de Cadmo em consequência de ele ter matado a serpente sagrada de Marte. Sêmele e Ino, suas filhas, e Acteão e Penteu, seus netos, todos infelizmente pereceram, e Cadmo e Harmonia abandonaram Tebas, onde o ódio havia aumentado para eles, e emigraram para o país dos Enquelianos[2][3], que os receberam com honra e fizeram Cadmo seu rei. Mas os infortúnios de seus filhos ainda pesavam em suas vidas, e um dia Cadmo exclamou: "Se a vida de uma serpente é tão valiosa para os deuses, eu gostaria de ter sido um serpente." Mal havia pronunciado estas palavras e ele começou a mudar a sua forma.

Harmonia viu isso e rezou aos deuses para que permitissem que ela compartilhasse a sorte dele. E ambos se tornaram serpentes. Eles vivem nas florestas, mas conscientes de suas origens, eles nunca evitam a presença humana, nem lhes causam qualquer dano. Diz a tradição que Cadmo introduziu as letras do alfabeto que foram inventadas pelos fenícios. Lord Byron se refere a isto, quando, referindo-se aos gregos modernos, ele diz:

"Vocês tem as letras dadas por Cadmo,

Acham vocês que elas foram criadas para um escravo?"

Milton, ao descrever a serpente que tentou Eva, faz recordar as serpentes das histórias clássicas e diz:

...

"—o formato dele (de Cadmo) era agradável,

E encantador, e nunca do tipo de uma serpente

Mais adorável; não daquele que a Ilíria modificou

Hermíone e Cadmo, nem o deus

Em Epidauro"

Para uma explicação mais detalhada a respeito da última alusão, consulte O Oráculo de Esculápio.

O Rei Éaco e Télamon.
ilustração de Jean-Michel Moreau, O Jovem (1741-1814)

Os Mirmidões eram os soldados de Aquiles, na Guerra de Troia. A partir deles, todos os seguidores zelosos e inescrupulosos de um chefe político eram chamados por esse nome, até os dias de hoje. Mas a origem dos Mirmidões não sugere a alguém a ideia de uma raça violenta e sanguinária, mas sim laboriosa e pacífica. Céfalo, rei de Atenas, chegou na ilha de Egina para buscar ajuda de seu velho aliado e amigo Éaco, o rei, para a guerra que ele travava contra Minos, rei de Creta. Céfalo, e foi recebido com muita cordialidade, e desejava o opoio que prontamente lhe foi prometido.

"Já tenho pessoas o suficiente," disse Éaco, "para me proteger e poupá-lo de tanta força quanto precisar." "Regozijo-me de saber isso," respondeu Céfalo, "e minha admiração aumenta ainda mais, confesso, ao encontrar tamanho batalhão de jovens como vejo ao meu redor, todos que parecem ter aproximadamente a mesma idade. Todavia, existem muitos indivíduos a quem conheci anteriormente, e que em vão procuro por eles agora. O que será que foi feito deles? Éaco resmungou, e respondeu com uma voz de tristeza, "Eu pretendia contar essa história a você, e farei isso agora, sem mais demora, para que você possa ver como a felicidade algumas vezes pode resultar dos laivos da tristeza."

"Aqueles a quem conheceste anteriormente são hoje poeira e cinzas! Uma peste, enviada pela cruel Juno, devastou a região. Ela detestava esse lugar, porque tinha o nome de uma das favoritas do seu marido. Enquanto a doença parecia surgir de causas naturais, nós resistimos o melhor que pudemos, mas logo evidenciou-se que a pestilência era poderosa demais para os nossos esforços, e nós desistimos. A princípio o céu parecia pairar sobre a terra, e nuvens espessas pareciam sufocar o ar aquecido. Durante quatro meses ininterruptos prevaleceu o letal vento sul."

A confusão contaminou poços e nascentes, milhares de serpentes arrastavam-se pela terra e lançavam seus venenos dentro das fontes. A força da epidemia foi primeiro sentida sobre os animais inferiores -- cães, gados, ovelhas e aves. O lavrador desafortunado ficou espantado em ver seus bois perecerem em pleno trabalho, e ficarem desamparados diante do sulco inacabado. A lã caía da ovelha lamurienta, e seus corpos definhavam. O cavalo, antes o primeiro nas corridas, não mais disputava a palma, mas gemia em sua cocheira, e teve morte inglória.

Céfalo e Aurora.
ilustração de Nicolas Poussin (1594–1665)

O javali esqueceu a sua ferocidade, o veado a sua agilidade, e os ursos não atacavam mais os rebanhos. Tudo definhava: corpos sem vida espalhavam-se pelas estradas, campos e nas florestas, o ar era envenenado por eles, eu estou lhe contando o que é difícil de acreditar, porém, nem os cães, nem as aves queriam tocá-los, nem os lobos famintos. A decomposição de seus corpos espalhou a infecção. Em seguida, a enfermidade atacou as pessoas no campo, e depois os habitantes da cidade. A princípio os rostos ficaram congestionados, e as pessoas respiravam com dificuldade. A língua ficou áspera e inchada, e as bocas ressequidas permaneciam abertas com suas veias dilatadas e ofegantes em busca de ar.

Os homens não podiam suportar o calor de suas roupas ou de suas camas, mas preferiam deitar sobre a terra nua, e o chão não os refrigerava, mas, ao contrário, aquecia o lugar onde eles ficavam. Nem os médicos conseguiam ajudar, pois a doença os havia atacado também, e o contato com os doentes lhes trazia infecção, de modo que os mais dedicados foram as primeiras vítimas. Finalmente, todas as esperanças de cura se desvaneceram, e os homens aprenderam a ver a morte como a única libertadora para a doença. E então entregavam-se sem qualquer disposição, e não se preocupavam em perguntar quais eram os recursos, porque não havia recursos.

Todas as restrições foram colocadas de lado, eles se aglomeravam ao redor dos poços e das nascentes e bebiam água até morrer, sem conseguir matar a sede. Muitos não tinham força para saírem da água, mas morriam no meio do riacho, enquanto outros bebiam a água. Tamanho era o esgotamento de seus leitos enfermiços, que alguns se arrastavam, e se não tivessem forças suficientes para ficarem de pé, eles acabavam morrendo no chão. Eles pareciam odiar seus amigos, e afastavam-se de suas casas, e como desconheciam as causas de suas enfermidades, atribuíam ao lugar onde moravam.

Alguns eram vistos cambaleando ao londa da estrada, enquanto eles conseguiam ficar de pé, outros caíam na terra, e voltavam ao redor os olhos moribundos para registrarem a última imagem, e depois os olhos eram fechados pela morte. "Que forças ainda me sobravam, depois de todo o acontecido, ou o que me restava ainda, senão odiar a vida e desejar fazer-me acompanhar dos meus súditos que haviam morrido? Por todos os lados estava o meu povo espalhado como maçãs apodrecidas debaixo das árvores, ou como bolotas de carvalho sob o pé sacudido por uma tempestade. Você está vendo ali um templo lá no alto. Ele está consagrado a Júpiter. Ó, quantos ali ofereceram suas orações, maridos para as esposas, pais para os filhos, e morreram no mesmo instante em que faziam suas súplicas! Quantas vezes, enquanto o sacerdote se preparava para o sacrifício, a vítima caía, golpeada pela doença, sem esperar o golpe fatal! Até que todas as reverências pelas coisas sagradas se acabaram.

Corpos eram lançados fora, insepultos, faltava lenha para as piras dos funerais, lutavam uns contra os outros pela posse de seus cadáveres. Finalmente, não ficou ninguém para lamentar, filhos e maridos, velhos e jovens, pereciam, igualmente, sem serem chorados. De pé diante do altar, levantei os meus olhos para o céu. "Ó, Júpiter," falei, "se és de fato o meu pai, e não te envergonhas de teus fihos, devolve-me meu povo, ou leva-me também contigo!" Ao som dessas palavras ouviu-se o ribombar de um trovão. "Aceito o augúrio," exclamei, "Ó, tomara que esse seja o sinal de um disposição favorável em relação à minha pessoa!" Por acaso, ali, no lugar onde estava, cresceu um pé de carvalho com galhos que se expandiam para todos os lados, que foi consagrado a Júpiter.

Observei uma multidão de formigas ocupadas em seus trabalhos, carregando grãos diminutos em suas bocas e seguindo umas às outras em fileira, subindo o tronco de uma árvore. Observando com admiração a grande quantidade que havia delas, disse: "Dá-me, ó pai, cidadãos tão numerosos quanto estes, e torna a povoar a minha cidade vazia." O pé de carvalho chacoalhou e um som foi ouvido como o de folhas farfalhando, embora não houvesse vento para agitá-las. Minhas pernas tremiam, e então, beijei a terra e a árvore. Não confessaria a mim mesmo a esperança que tinha, mas elas estavam ali. A noite veio e o sono tomou conta do meu corpo oprimido com tantas preocupações.

Em meus sonhos, a árvore estava diante de mim, com seus numerosos galhos, todos repletos com criaturas vivas e que se moviam. Parecia que ela chacoalhava seus braços e lançava sobre o chão uma multidão daqueles animais coletores de grãos, que pareciam ganhar tamanho, e ficavam cada vez maiores, e aos poucos iam ficando eretos, desfaziam-se de suas pernas excedentes e de sua cor negra, e finalmente, assumiam a forma humana. Então, eu acordei, e o meu primeiro impulso era o de admoestar os deuses, que haviam me roubado uma visão tão gloriosa, e me oferecido em troca nenhuma realidade.

Estando ainda no templo, minha atenção foi desviada pelo som de muitas vozes do lado exterior ao que me encontrava, um som não muito habitual aos meus ouvidos. Enquanto começava a pensar se estava ainda sonhando, Télamon, meu filho, abrindo com furor as portas do templo, exclamou: "Pai, aproximai-vos, e contempla as visões que excedem até as vossas esperanças!" Adiantei-me, e vi uma multidão de homens, tal como havia visto em meus sonhos, e eles marchavam desfilando como no sonho. Enquanto com olhos arregalado olhava com admiração e maravilhado, eles se aproximaram e se ajoelharam, e me saudaram como seu rei.

Paguei meus juramentos a Jove, e comecei a lotear a cidade vazia para a raça que fora recem criada, e dividi os campos entre eles, a quem chamei de Mirmidões, em homenagem às formigas (myrmex em grego) da qual haviam surgido. Você já viu estas criaturas, suas disposições se parecem com aquelas que tinham em sua forma anterior. Eles são uma raça diligente e laboriosa, ansiosas de vencer, e tenazes em suas vitórias. Dentre eles deves recrutar o teu exército. Eles te seguirão na guerra, são jovens de idade e corajosos de coração."

Esta descrição sobre a epidemia foi copiada de Ovídio de uma história que Tucídides, o historiador grego, faz sobre a epidemia de Atenas. O historiador extraiu essa história da vida, e todos os poetas e escritores de ficção, desde aqueles dias, quando encontram oportunidade para descrever uma cena similar, emprestam deles os detalhes.

Veja também

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Notas e Referências do Tradutor

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  1. Panope: na mitologia grega, Panopea (em grego: Πανόπεια), e também Panopaea, eram o nome de duas nereidas. Panope é também o nome de uma das filhas de Téspio e Megámede, que deu à Héracles um filho, chamado Trepsipas.
  2. O reino dos enquelianos: curiosa é a lenda de Ilírio, o qual, era filho do rei Cadmo depois que ele se mudou de Tebas para as terras ilíricas, torna-se o herói epônimo dos Ilírios, dele nasce um filho, Enqueleo, que, por sua vez é chefe de uma outra tribo ilírica, a tribos dos Enqueleus, que dominaram durante o século VII a.C. um território atualmente de língua albanesa.
  3. Os enqueleanos eram uma tribo da Ilíria que viveu na região do Lago de Ácrida e de Lincéstide, na Albânia e na República da Macedônia. Esse nome em grego arcaico significava o povo da enguia. Eles viviam sempre em guerra tentando dominar a região dos antigos macedônios que haviam se estabelecido no leste. A mitologia grega atribui um progenitor aos enqueleanos, um filho de Ilírio, chamado Enqueleu. Diz a lenda que Cadmo, com sua esposa, saíram da Fenícia e chegaram na terra dos Enqueleanos. Segundo a tradição, naquela época os Enqueleanos estavam em guerra contra as tribos ilíricas que eram vizinhas e Cadmo, obedecendo ordens do Oráculo tornou-se líder do povo chegando a ajudá-los. Depois desta vitória contra outros ilírios, os enqueleanos escolheram Cadmo como seu rei.