Capítulo XI editar

Cupido e Psiquê editar

Banquete do casamento de Cupido e Psiquê
ilustração de Rafael Sanzio (1483–1520)

Um certo rei e uma rainha tinham três filhas. Os encantos das duas mais velhas eram de tirar o fôlego, mas a beleza da mais jovem era tão maravilhosa que a pobreza da linguagem é incapaz de expressar seu devido louvor. A fama de sua beleza era tão inexcedível que os estrangeiros das cidades circunstantes vinham aos magotes para apreciarem os seus dotes físicos, e a olhavam extasiados, prestando a ela a homenagem somente devida à deusa Vênus. De fato, Vênus estava achando que os seus altares estavam ficando desertos, pois os homens estavam dedicando sua fé a esta jovem vestal. Quando ela passava, as pessoas cantavam louvores para ela, e enfeitavam o caminho por onde ela passava com flores e grinaldas.

Esta perversão de homenagem, cabível somente às potestades imortais à exaltação de um mortal, causou grande ofensa à poderosa Vênus. Balançando suas tranças encantadoras com indignação, ela exclamou, " Estarei eu, então, sendo eclipsada em minhas honras, por uma jovem mortal? Teria o pastor real, cujo julgamento tinha sido aprovado pelo próprio Jove, me oferecido a palma da beleza acima das minhas rivais mais ilustres, Palas e Juno. Porém, ela não conseguirá usurpar minhas horas tão silenciosamente. Eu lhe darei motivos para se arrepender desta beleza tão ilegítima." E então, ela chamou Cupido, seu filho alado, travesso o bastante por natureza, e o instiga e o provoca ainda mais com as suas queixas.

Ela mostra Psiquê para ele e diz, "Meu querido filho, é preciso punir aquela beleza contumaz; oferece a tua mãe uma vingança à altura das ofensas que ela me faz; infunde no peito daquela garota arrogante a paixão por uma criatura baixa, ignóbil e indigna, para que ela possa colher uma humilhação tão grande quanto o seu triunfo e exaltação do momento." Cupido se preparou para obedecer as ordens de sua mãe. No jardim de Vênus havia dois jardins, um de águas doces e outro de águas amargas. Cupido encheu dois vasos de âmbar, um de cada fonte, e suspendendo-os da altura da sua aljava, foi correndo à câmara de Psiquê, a quem encontrou dormindo.

Ele derramou algumas gotas da fonte amarga sobre os seus lábios, embora ao vê-la tenha se comovido até a piedade, e em seguida, com a ponta da sua flecha tocou-a lateralmente. Ao ser tocada, ela acordou, e abriu os olhos para Cupido (que estava invisível), o qual, todo confuso, assustou-se, ferindo a si mesmo com a própria flecha. Sem se importar com o ferimento, sua única preocupação no momento era corrigir o erro cometido, derramando gotas balsâmicas de alegria sobre todos os seus sedosos cachos. Psiquê, daí em diante, reprovada por Vênus, não teve mais nenhum benefício com todos os seus encantos.

Em verdade, todos os olhos eram avidamente lançados para ela, e todas as bocas lhe dedicavam louvores, mas nenhum rei, príncipe, ou plebeu se havia apresentado para pedi-la em casamento. Suas duas irmãs mais velhas, com encantos moderados, já haviam se casado há muito tempo com dois príncipes reais, mas Psiquê, em seu apartamento solitário, deplorava a própria solidão, cansada da beleza, que, embora redundasse em abundância de lisonjas, no entanto, não havia conseguido despertar o amor. Os seus pais, receosos de, involuntariamente, terem provocado a ira dos deuses, consultaram o oráculo de Apolo, e receberam esta resposta: "A virgem não está destinada para ser noiva de qualquer pretendente mortal.

"Seu futuro marido está esperando por ela no alto da montanha. É um monstro a quem nem os deuses nem os homens poderão resistir." Este terrível prognóstico do oráculo encheu de desânimo todas as pessoas, e os pais dela se entregaram aos enganos da dor. Mas Psiquê disse, "Porquê, meus queridos pais, estão a me lamentar? Ao invés disso, vocês deveriam terem se entristecidos quando as pessoas lançavam sobre mim honras não merecidas, e a uma só voz me chamavam de Vênus. "Percebo agora que sou uma vítima desse nome. Portanto, aceito. Leva-me até aquele rochedo para o qual o meu destino infeliz me reservou." E assim, todos os preparativos foram feitos, a jovem real tomou parte na procissão, que mais se parecia com um funeral do que com uma pompa nupcial, e acompanhada de seus pais, entre as lamentações das pessoas, subiu até a montanha, e no topo da mesma eles a deixaram sozinha, e com os corações despedaçados voltaram para casa.

Enquanto Psiquê ficou no alto da montanha, ofegante de medo e com os olhos cheios dágua, o gentil Zéfiro a ergueu da terra e com movimentos leves a levou até um vale florido. Aos poucos os seus pensamentos começaram a concatenar, e ela se deitou sobre uma margem gramada para dormir. Quando acordou, revigorada com o sono, ela olhou ao redor e avistou perto um lindo bosque formado por árvores altas e imponentes. Ela entrou no bosque, e no meio do bosque, percebeu que havia uma fonte, que jorrava águas claras e cristalinas, e de repente, um palácio magnífico cuja frente majestosa impressionava o espectador por não ser obra de mãos mortais, mas o feliz refúgio de algum deus.

Atraída pela admiração e imponência da construção, ela se aproximou e aventurou-se a entrar. Cada objeto que encontrava a enchia de prazer e perplexidade. Pilares dourados suportavam o teto abobadado, e as paredes estavam repletas com pinturas representando animais de caça e paisagens rurais, criados para encantar os olhos dos visitantes. Logo depois, ela percebeu que ao lado dos apartamentos de estado haviam outros, carregados com todos os tipos de tesouros, e produções lindas e preciosas, naturais e artificiais.

Enquanto os seus olhos estavam ocupados com tanta beleza, uma voz chegou aos seus ouvidos, embora não tivesse visto ninguém dizendo estas palavras: "Soberana senhora, tudo o que vês te pertence. Nós, cujas vozes ouvis, somos teus criados, e obedeceremos todas as tuas ordens, com o maior cuidado e atenção. Retira-te, portanto, para os teus aposentos, e repousa em teu leito macio, e quando desejares, prepara-te para o banho. A ceia te espera na alcova adjacente, no momento quando quiseres tomar teu assento. Psiquê prestou atenção nas advertências dos atendentes verbais, e depois de repousar e de se refrescar no banho, ela se sentou na alcova, onde uma mesa imediatamente lhe foi apresentada, sem qualquer assistência de criados ou servos visíveis, coberta com as maiores guloseimas alimentícias e os vinhos mais deliciosos.

Seus ouvidos também eram festejados com músicas executadas por artistas invisíveis, onde um cantava, outro tocava um alaúde, e todos achavam-se unidos pela maravilhosa harmonia de um coral completo. Ela ainda não tinha visto o marido prometido. Ele chegou apenas nas horas da escuridão e antes da aurora, ao amanhecer, ele já havia fugido, mas os seus gestos eram todos cheios de amor, e inspiravam nela uma sugestiva paixão. Ela muitas vezes pediu para que ele ficasse, para que ela pudesse contemplá-lo, mas ele não concordou. Pelo contrário, ele insistiu para que ela não fizesse nenhuma tentativa de vê-lo, pois era seu prazer manter-se oculto, na melhor das razões.

"Porque desejarias ver-me?" disse ele, "tens ainda alguma dúvida do meu amor? Tens ainda algum desejo que não foi satisfeito? Se me visses, poderíeis sentir medo de mim, ou talvez me adorar, mas tudo o que peço a ti é para me amares. Preferiria que me amasses como a um igual, do que me adorasses como um deus." Estas conjeturas, de alguma forma, aquietaram Psiquê, durante algum tempo, e enquanto a novidade durava, ela se sentia totalmente feliz. Mas, aos poucos, a lembrança de seus pais, e de suas irmãs, que lhe ignoravam o destino, impedidos de compartilhar com ela os prazeres da sua situação atual, cativaram-lhe o pensamento e fizeram com que ela começasse a sentir que o palácio era nada mais do que uma esplêndida prisão.

Uma noite, quando o seu marido chegou, ela lhe falou da sua preocupação, e finalmente, conseguiu arrancar dele, ainda que a contragosto, permissão para que suas irmãs fossem trazidas até ela. Então, chamando Zéfiro, o informou sobre as ordens do seu marido, e ele, obedeceu prontamente, e logo as trouxe percorrendo a montanha até o vale onde a irmã delas se encontrava. Elas a abraçaram e ela retribuía seus carinhos. "Venham," disse Psiquê, "entre comigo em minha casa e se refresquem com qualquer coisa que a irmã de vocês tiver para oferecer." Em seguida, tomando-as pelas mãos, ela as conduziu até o palácio dourado, e as entregou sob os cuidados de suas inúmeras equipes de vozes atendentes, que se refrescaram no banho e na mesa dela, em seguia, mostrou a elas todos os seus tesouros.

A visão de todas essas delícias celestiais fez com que a inveja entrasse em seus corações, ao verem que a irmã mais jovem possuía tanta riqueza e esplendor, tanto que excedia a delas próprias. Elas lhe fizeram inúmeras perguntas, dentre outras, que tipo de pessoa era seu marido. Psiquê respondeu que ele era um jovem lindo, que geralmente gostava de passar o dia caçando nas montanhas. As irmãs, insatisfeitas com esta resposta, logo a fizeram confessar que ela nunca o tinha visto. Então, elas começaram a encher o coração dela com sombrias desconfianças.

"Tente se lembrar," disseram elas, "o oráculo de Pítia declarou que você estava destinada a se casar com um monstro terrível e assustador. Os habitantes deste vale dizem que o seu marido é uma serpente terrível e monstruosa, que te alimenta durante algum tempo com guloseimas para que ele possa te devorar com o passar do tempo. Ouça o que estamos dizendo. Previne-te com um lampião e uma faca afiada, deixe-as escondidas, para que o teu marido não consiga descobrí-las, e quando ele estiver dormindo profundamente, saia furtivamente da cama, traga o teu lampião, e verifique por si mesma se o que eles dizem é verdade ou não.

"Se for, não hesite em cortar a cabeça do monstro, e desse modo, recupere a tua liberdade." Psiquê se opôs a estas convicções o máximo que conseguiu, mas elas não deixaram de ter escuros efeitos em seus pensamentos, e quando as suas irmãs foram embora, o que elas tinham falado e a sua própria curiosidade eram fortes demais para ela suportar. Então ela preparou um lampião e uma faca afiada, e os escondeu longe da vista do seu marido. Quando ele caiu no seu primeiro sono, ela se levantou silenciosamente, e descobrindo o lampião, ela não viu um monstro horrível, mas o mais belo e encantador dos deuses, com seus cachos dourados descendo pelo seu pescoço esbranquiçado e rosto carmesim, com duas asas de orvalho sobre os ombros, mais brancas que a neve, e com penas brilhantes como os botões tenros da primavera.

Quando ela inclinou o lampião para ter uma visão mais próxima do rosto dele, uma gota de óleo quente caiu sobre o ombro do deus, assustado, ele abriu os olhos e os fixou sobre os dela, então, sem dizer uma palavra, ele esticou suas asas brancas e voou pela janela. Psiquê, em vão tentou seguí-lo, e caiu no chão pela janela. Cupido, ao vê-la, deitada na poeira, parou de voar por alguns instantes, e disse: "Ó tola Psiquê, é desse modo que retribuis o meu amor? Depois de ter desobedecido as ordens de minha mãe e feito de ti minha esposa, acreditarias que sou um monstro a ponto de cortar a minha cabeça? Mas, vai, volta para as tuas irmãs, cujos conselhos você parece aceitar ao invés dos meus.

"Nenhuma outra punição devo infligir para ti, senão deixá-la para sempre. O amor não pode viver onde vive a desconfiança." E assim dizendo, voou para longe, deixando a pobre Psiquê prostrada no chão, enchendo o lugar de lamentações tristes. Depois que ela se recuperou um pouco da situação, ela olhou ao redor, mas o palácio e os jardins haviam desaparecido, e ela estava agora no campo aberto não longe da cidade onde moravam as suas irmãs. Ela correu para lá e contou para elas toda a história dos seus infortúnios, e assim, fingindo sofrer, aquelas criaturas rancorosas se regozijavam intimamente.

"E agora," disseram elas, "ele talvez possa escolher uma de nós." Acreditando nisso, e sem dizer uma palavra sobre os seus planos, uma delas de cada vez se levantou bem cedo, na manhã seguinte, e subiram as montanhas, e ao chegarem no topo, mandaram chamar Zéfiro para que viesse recebê-las para levá-las até seu senhor, então, saltando, e não sendo sustentada por Zéfiro, elas cairam no precipicio e foram reduzidas a pedaços. Psiquê, enquanto isso, perambulou dia e noite, sem encontrar comida nem repouso, em busca de seu marido. Lançando os olhos sobre uma montanha majestosa tendo na dianteira um magnífico templo, ela suspirou e disse para si mesma: "Talvez o meu amo e senhor more lá" e foi até lá.



Mas ela tinha entrado, quando percebeu um monte de milho, algumas espigas soltas e outras amontoadas, misturadas com grãos de cevada. Espalhados estavam foices e ancinhos, além de outros instrumentos para colheita, desordenados, como que jogados descuidadamente pelas mãos de um colheitador cansado nas horas de correria do dia. A piedosa Psiquê pôs um fim a esta aparente confusão, separando e colocando tudo em seu próprio lugar de acordo com o tipo, acreditando que ela não devia negligenciar nenhum dos deuses, mas se esforçar, por meio da sua piedade, para conseguir a ajuda de todos para a sua causa.

A sagrada Ceres, cujo templo era dedicado a ela, vendo-a agir de maneira tão religiosa, falou assim para ela: "Ó Psiquê, verdadeiramente digna de nossa piedade, embora eu não possa protegê-la das carrancas de Vênus, posso ensiná-la a melhor maneira de minimizar o desagrado da deusa. Ide, pois, e entrega-te voluntariamente à tua senhora e soberana, e tenta com tua modéstia e submissão, conquistar-lhe o perdão, e talvez a misericórdia dela devolva a ti o marido que perdeste." Psiquê seguiu as ordens de Ceres e foi até o templo de Vênus, esforçando-se para fortalecer os pensamentos e refletindo no que ela deveria dizer e como agradar à furiosa deusa, sentindo que o problema era inquietante e talvez insolúvel.

Vênus a recebeu com ares de zangada. "A mais desobediente e infiel das servas," disse a deusa, "finalmente te lembraste de que realmente tens uma senhora? Ou melhor, será que vieste visitar o teu marido doente, ainda sofrendo com a dores infligidas a ele pela esposa amada? Seria você tão infortunada e desagradável, que a única maneira de merecer o teu amado teria sido pela ação do esforço e da inteligência? Vou fazer um teste com os teus dotes domésticos." Nesse instante, ela mandou que Psiquê fosse levada para os armazéns do seu templo, onde estava guardada uma grande quantidade de trigo, cevada, milho, ervilhacas, feijões, e lentilhas preparados como alimento para os seus pombos, e disse: "Pegue e separe todos esses grãos, colocando todos do mesmo tipo juntos no mesmo lote, e veremos o que você consegue fazer até o anoitecer." Dito isto, Venus saiu e a deixou ocupada com sua tarefa.

Mas Psiquê, em completa consternação diante do enorme trabalho, sentou-se acovardada e silenciosa, sem mover um dedo diante do monte inextricável. Enquanto ela ficou sentada em desespero, Cupido instigou uma formiguinha, que era nativa dos campos, para que tivesse compaixão por ela. O líder do formigueiro, seguido por inúmeros convidados com criaturas de seis pernas, se aproximaram do monte, e com a maior diligência, levando grão por grão, separaram toda a pilha, colocando cada tipo no seu lote, e quando tudo estava terminado, eles desapareceram imediatamente. Vênus, com a aproximação do crepúsculo, retornou do banquete dos deuses, exalando odores e coroada de rosas

Vendo que a tarefa havia sido terminada, exclamou: "Não foi você quem fez este trabalho, sua perversa, mas aquele a quem seduziste para o teu próprio e para o infortúnio dele." E assim dizendo, ela jogou um pedaço de pão integral como jantar para ela e foi embora. Na manhã seguinte, Vênus ordenou que Psiquê fosse chamada e disse a ela: "Eis ali o bosque que se estende ao longo da borda das águas. Lá você encontrará uma ovelha pastando sem um pastor, com velocinos que brilham como ouro em suas costas. Vai, e busca para mim uma amostra dessa lã preciosa retirada de cada um de seus velocinos." Psiquê obedientemente foi até a beira do rio, e se preparou para fazer o melhor para executar a ordem.

Mas o deus dos rios inspirou os juncos, com sussurros harmoniosos, que pareciam dizer: "Ó donzela, que sofre tão asperamente, não provoque o perigoso dilúvio, nem te aventures entre os carneiros formidáveis do outro lado, pois, enquanto eles estiverem sob a influência do sol nascente, eles queimam com um ódio cruel a ponto de destruir os mortais com seus chifres afiados ou dentes rudes. Mas quando o sol do meio-dia expulsar o gado para as sombras, e o sereno espírito do dilúvio os tenha embalados em seu descanso, então poderás atravessar com segurança, e encontrarás a lã dourada presa nos arbustos e nos troncos das árvores." De modo que, o piedoso rio deu a Psiquê instruções de como realizar a tarefa que pretendia, e seguindo as orientações do deus ela logo retornou até Vênus com seus braços carregados de velocinos dourados, ainda assim, ela não teve a aprovação da sua implacável senhora, que disse: "Eu sei muito bem que não foi com teus próprios esforços que você conseguiu realizar esta tarefa, e ainda não estou convencida ainda de que você tenha qualquer capacidade para ser uma criatura útil.



Mas eu tenho uma outra tarefa para você. Pegue esta caixa e siga o teu caminho até as sombras infernais, e entrega à Prosérpina esta caixa e diga: "Vênus, a minha senhora, quer que a senhora envie para ela um pouco de sua beleza, pois, ao cuidar de seu filho doente, ela perdeu um pouco da sua própria". Não demore muito para dar o recado, porque eu tenho que me pintar para estar presente no círculo dos deuses e deusas esta noite." Psiquê agora tinha certeza de que a sua destruição estava próxima, e era obrigada a seguir com os próprios pés até o Érebo. No entanto, para não criar nenhum atraso para o que não podia ser evitado, ela sobe até o topo de uma torre alta para se atirar de cabeça para baixo, e desse modo, descer pelo caminho mais curto para as sombras do despenhadeiro lá embaixo.

Mas uma voz que vinha da torre disse para ela: "Porquê, minha desventurada garota, planejas por um fim aos teus dias de maneira tão terrível? E que covardia te faz naufragar diante deste último perigo, quando tendes suportado tão milagrosamente todos os anteriores?" Então a voz lhe contou como ela poderia chegar aos domínios de Plutão, perto de uma certa caverna, e como evitar todos os perigos da estrada, ao passar perto de Cérbero, o cachorro de três cabeças, e convencer Caronte, o barqueiro, para que ele a levasse através do escuro rio e trazê-la de volta novamente.

Mas a voz continuou: "Quando Prosérpina lhe entregar a caixa contendo a sua beleza, uma coisa você precisa tomar cuidado, você não deve abrir ou olhar o que tem dentro da caixa, nem permitir que a tua curiosidade invada o tesouro da beleza das deusas." Psiquê, encorajada por este aviso, obedeceu tudo que a voz lhe havia falado, e seguindo cautelosa pelos caminhos, viajou com segurança até o reino de Plutão. Ela foi recebida no palácio de Prosérpina, e sem aceitar o convite delicado para se sentar, ou o banquete delicioso que lhe era oferecido, mas satisfeita com o pão rústico que lhe foi oferecido, entregou o recado de Vênus.

Nesse instante, a caixa lhe foi devolvida, fechada e cheia com o precioso recurso. Então, ela voltou pelo mesmo caminho que veio, e estava contente por estar voltando mais uma vez à luz do dia. Mas tendo percorrido caminho tão longo para realizar, com sucesso, tão perigosa tarefa, foi tomada por um desejo incontrolável de examinar o conteúdo da caixa. "Porquê eu," disse ela, "portadora de tão divina beleza, não aproveitaria um pouco para passar em meu rosto, a fim de parecer mais bela aos olhos do meu amado marido!" Então, ela abriu a caixa, cuidadosamente, mas nenhuma beleza encontrou lá, exceto um sono pesado e verdadeiramente infernal, que uma vez liberto de sua prisão, se apoderou dela, e ela ficou caída no meio do caminho, com o corpo sonolento sem sensações nem movimentos.

Mas, Cupido, estando agora recuperado de seu ferimento, e não podendo mais suportar a ausência da sua amada Psiquê, saiu de fininho pela menor fresta da janela do seu quarto, que por acaso fora deixada aberta, foi voando até o lugar onde Psiquê estava, e recolhendo o sono do seu corpo, fechou-o de novo na caixa, e acordou Psiquê com um leve toque de uma de suas flechas. "Mais uma vez," disse ele, "quase pereceste por causa da mesma curiosidade. Mas, agora, cumpre exatamente a tarefa que a minha mãe te impôs, e eu cuidarei do resto." Então, Cupido, tão rápido como o relâmpago que penetra as alturas do céu, se apresentou diante de Júpiter com sua súplica.

Júpiter, fez questão de ouví-lo, e defendeu a causa dos amantes de maneira tão convincente junto a Vênus até que ganhou o consentimento dela. Diante disto, ele mandou que Mercúrio trouxesse Psiquê à assembleia celestial, e quando ela chegou, ofereceu-lhe uma xícara de ambrosia, e disse: "Beba isto, Psiquê, e seja imortal, nem mesmo Cupido romperá o nó em que ele está amarrado, e estas núpcias serão para sempre." De modo que Psiquê, finalmente, se uniu a Cupido, e no tempo devido eles tiveram uma filha nascida em seus braços e cujo nome era Prazer[1]. A fábula de Cupido e Psiquê normalmente é considerada uma alegoria.

O nome grego para a borboleta é Psiquê, e a mesma palavra significa alma. Não existe ilustração sobre a imortalidade da alma tão contundente e bela quanto a borboleta, explodindo com suas asas cintilantes do túmulo onde vivia anteriormente, depois de uma existência como larva melancólica e rastejante, a esvoaçar no calor abrasador do dia e se alimentar dos produtos mais fragrantes e delicados da primavera. Psiquê, então, simboliza a alma humana, a qual se purifica com os sofrimentos e infortúnios, e desse modo, se prepara para desfrutar a verdadeira e pura felicidade.

Nas obras de arte, Psiquê é representada como uma jovem com asas de borboleta, junto com Cupido, nas diferentes situações descritas pela alegoria. Milton se refere à história de Cupido e Psiquê na conclusão do seu "Comus":

"Cupido celestial, seu renomado filho, avança
E segura sua querida e doce Psiquê, em transe,
Depois de vagar longamente com as tarefas
Até que os deuses lhe concedem a libertação
E fazem com que ela seja a prometida do deus
E de seu belo ventre imaculado
Nascem dois anjos de felicidade
A Juventude e a Alegria, pois Jove assim tinha prometido

A alegoria da história de Cupido e Psiquê está bem representada nas belezas de estrofes de T. K. Hervey:

Eles teceram as fábulas dos velhos tempos,
Quando a razão cedia as asas coloridas pela fantasia
Quando os rios puros da verdade corriam sobre areias douradas
E cantavam canções coisas místicas e elevadas
E a história dela era tão doce e solene
Que o coração peregrino, a quem um sonho lhe fora concedido
A conduziu pelo mundo - o adorador do amor -
Para procurar na Terra por aquele que morava no céu
"Em cidade movimentada, - perto da fonte assombrada –
Percorrendo o sombrio rondilhado da gruta com mastros
Em meio a templos de pinheiros, sobre a montanha enluarada,
Onde o silêncio se sentava para ouvir as estrelas;
Na clareira profunda onde mora a pomba com suas crias
No vale colorido e no ar perfumado
Ela ouve, na distância, os ecos da voz do Amor
Encontrando marcas de seus passos por onde andava
"Mas nunca mais se encontraram, desde que dúvidas e temores
Que aquelas formas fantasmagóricas assustam e abrasam na terra,
Se aproximam dela, criança cheia de pecado e lágrimas
E que o brilhante espírito de berço imortal
E até sua alma ansiosa, com olhos que choram
Aprenderam a procurá-lo apenas nos céus;
Até que foram dadas asas para um coração cansado
E ela se tornou a angélica noiva do Amor no céu!"

A história de Cupido e Psiquê apareceu pela primeira vez nas obras de Apuleio, um escritor do século II da nossa era. É portanto, de data mais recente do que a maioria da histórias contidas neste livro. É a isto que Keats se refere em sua "Ode a Psiquê":

"Ó de nascimento recente e visão mais adorável
Distante de todo o Olimpo” de hierarquia desaparecida!
Mais bela que estrela de Febo da região das safiras
Ou que Vésper, adorável pirilampo do céu
Mais bela que estas, embora não tenhas nenhum templo
Nem altar com montes de flores
Nem um coro de vestais a te lamentarem copiosamente
Nas horas da meia-noite
Nem uma voz, nem um alaúde, nenhuma flauta, nem um incenso suave
Fervilhando de censores que balançam suas cadeiras
Nenhum sudário, nenhum bosque, nem oráculo ou calor
Sonhando com o profeta de boca pálida.”

No poema "Festival de Verão" de Moore um baile imaginário é descrito, onde um dos caracteres personalizados é Psiquê—

"...
não em seu sombrio disfarce, esta noite
A nossa heroína revelou a sua luz;—
Pois vejam, ela caminha na terra, coisas do amor
Sua noiva prometida, pelo voto mais sagrado
Unidos pelo Olimpo, e conhecidos
Pelos mortais, agora como modelo
Paira cintilante em sua fronte nevada
Aquela borboleta, misteriosa bagatela
Que representa a alma, (ainda que poucos pensem assim)
E cintilando desse jeito em tão branca fronte
Dizendo que Psiquê veio nos visitar esta noite."

A Travessia de Caronte
ilustração de Alexander Dmitrievich Litovchenko ( 1835 - 1890)

Veja também editar

Notas e Referências do Tradutor editar

  1. Prazer, filha de Eros e Psiquê, é também chamada de Volúpia pelos gregos e Hedoné pelos romanos.