1) "Um judeu com complexos de inferioridade" para seus detratores; é "um homem como um deus" para seus mais fanáticos seguidores, é a dupla face com que hoje se projeta na história a imagem daquele médico vienense metido a psicólogo chamado Sigmund Freud.

Nasceu em Freiberg, pequena cidade da Morávia, na áustria, aos 6 de maio de 1856, tornando-se ao nascer, tio de um sobrinho, chamado John, que lhe era um ano mais velho e que, segundo mais tarde confessara, teve grande importância na formação de seu caráter. Primeiro filho de uma mãe judia muito jovem e de um pai bastante velho, um judeu comerciante de lã e, mais tarde, vendedor ambulante de tipo mascate, que casara duas vezes, primeiro aos 17 anos e depois aos 41. Aos quatro anos, Freud acompanhou seus pais a Viena, onde morou sempre até seus últimos anos de vida em que teve de sair fugindo da perseguição de Hitler, para refugiar-se em Londres na casa de seu discípulo Jones e onde faleceu em 23 de setembro de 1939.

No colégio, foi sempre o primeiro da classe, sentando-se sempre no primeiro banco nos oito anos do curso. Com 17 anos, ingressou na Universidade onde se formou em medicina, um pouco a desgosto da carreira escolhida por seu pai. No início, foi primeiramente um estudioso neuro-anatomista do laboratório de Fisiologia do Dr. Bruscke, ocupando-se especialmente das células ganglionares da medula espinhal e do desenvolvimento filogenético do sistema nervoso, o que provavelmente lhe iria despertar, mais tarde, o gosto pelas doenças mentais e lhe serviria de base para sua teoria dos níveis de consciência do ser humano. Desta forma, após uma série de trabalhos científicos sobre as moléstias do sistema nervoso, no sentido histológico e clínico, e sobre os efeitos da cocaína foi recebido como docente de neuropatologia na Universidade de Viena, em 1885, e no mesmo ano, obteve uma bolsa de estudos para aperfeiçoamento no estrangeiro.

2) Mas antes disto, em 1882, recém-formado em medicina, Freud teve a oportunidade de entrar em contato com o Dr. Breuer, 14 anos mais velho e um dos médicos mais respeitados da áustria. Tal contato veio despertar seu gosto pelo campo da psicoterapia determinando um ponto decisivo na vida de Freud, na gênese da psicanálise, e na evolução da psicologia e da própria medicina, pois os pontos de partida da doutrina freudiana acham-se intimamente ligados às descobertas deste médico vienense, de quem foi discípulo e colaborador assíduo durante quase 14 anos.

Foi nesse tempo que teve a oportunidade de acompanhar de perto o tratamento que Breuer fazia de sua célebre paciente "Ana O.", caso tido como o primeiro início da Psicanálise.

Ana O., ou Berta Pappenheim, era uma jovem de 21 anos e de bons dotes intelectuais. Durante longo tempo vira-se na necessidade de tratar de seu pai doente, terminando por ficar doente ela também. Começou a apresentar sintomas graves, como paralisia rígida da perna e do braço direito, com anestesia dos mesmos; perturbações visuais e desordens da linguagem; dificuldades para manter erguida a cabeça e pronunciadas "fobias"; estados de "ausência", etc. Ante a falta de causas orgânicas, Breuer, como era costume nesses casos, tinha diagnosticado o caso como histeria. E durante o longo tratamento que Breuer vinha fazendo das perturbações histérico-orgânicas desta doente, observou que, em freqüentes estados de "ausência", a paciente murmurava para si própria algumas palavras incoerentes, que durante o sono hipnótico ou nos estados hipnoidais, ele lhe repetia e lhe sugeria que explicasse o que queriam dizer tais palavras. Respondendo a doente a essas sugestões, fazia longas narrativas altamente emotivas, relacionadas com alguma cena em que a moça se achava à cabeceira da cama de seu pai. Breuer observara, também, com surpresa, que após estas confissões, a doente apresentava grande melhoria de sintomas, e até parecia totalmente curada, durante algum tempo. Parecia como que se libertava de algo, que a incomodava, uma espécie de purga psíquica... Por isso batizou este procedimento de "Katarsis", termo grego que significa purgar-se e a hipnose que o acompanhava de "hipnose catártica".

3) Freud qualificou estas descobertas de Breuer como geniais e considerou-as intimamente relacionadas com sua carreira de neuro-anatomista. Por isso ao ganhar a bolsa de estudos no estrangeiro, decidiu-se definitivamente por abraçar a especialidade da Psiquiatria, e determinou dirigir-se para Paris, onde o famoso médico psiquiatra, Charcot, estava em pleno apogeu com sua escola hipnótica da Salpêtriere, onde fez um estágio de um ano, como discípulo assíduo e muito eficiente daquele grande mestre da Psiquiatria e da Hipnose.

Se em Viena Freud vira como Breuer fazia desaparecer "os sintomas histéricos" reavivando na paciente "certas representações imaginativas" ali, em Paris, pôde observar como Charcot, mediante a sugestão de "adequadas representações imaginativas", conseguia provocar, em seus pacientes sadios, toda espécie de sintomas histéricos, e ali mesmo uma paralisia histérica.

Notara também como era freqüente e corriqueiro fazer desaparecer os sintomas histéricos através da hipnose e verificara como o eminente psiquiatra Charcot já tinha a conclusão, surpreendente naquela época, de que a natureza íntima da histeria era, não orgânica, mas sim psíquica, e que a histeria era o resultado de conflitos psíquicos internos desconhecidos do próprio doente. Mais ainda, ao enorme prestígio de Charcot se devia, não só que a histeria fosse declarada como doença real, mas também o conceito revolucionário de que a mesma se dava, não só nas mulheres, mas também nos varões (Tinha sido chamada de histeria, de hysteron útero, portanto, só das mulheres). Finalmente, foi ele quem primeiro tinha descoberto que os fenômenos histérico-neuróticos estavam regidos por leis verdadeiras, embora inconscientes e desconhecidas.

4) Realmente os conhecimentos que Charcot aportou à Psiquiatria e à incipiente Psicologia profunda ou do inconsciente foram inteiramente relevantes e de um valor extraordinário a ponto de colocá-lo à cabeça dos pioneiros deste movimento. Quando Freud iniciara sua carreira de medicina e de Psiquiatria em Viena, ainda se costumava considerar como causas das neuroses certas lesões ou "debilidades" do sistema nervoso. Daí o termo neurose de neuron nervo. Embora se constatasse muito antes que nas paralisias histéricas não se pode descobrir nenhuma causa orgânica, elas continuavam sendo imputáveis ao mesmo tipo de desordens do centro nervoso cerebral, que provocavam as paralisias orgânicas.

Agora Freud alertado pelas experiências de Breuer ficava totalmente entusiasmado diante das descobertas que via realizar-se na escola de Paris, de tudo o qual ele tirara as mais legítimas conclusões. E com uma bagagem bem cheia de excelentes conhecimentos neuro-psíquicos regressou a Viena em 1886, onde seguiu dedicado ao estudo dos casos relacionados com a histeria e os estados neuróticos, como associado de Breuer.

Ana O. revelara-se uma ótima paciente para a pesquisa e, no tempo que se seguiu a sua volta de Paris, verificaram que a maioria dos sintomas histéricos apresentados pareciam ocupar o lugar de uma série de idéias, imagens e impulsos, que havendo-os experimentado, julgara-os incorretos e repugnantes, motivo pelo qual acabara por reprimi-los e esquecê-los. Concluíram que as penosas lembranças dessas imagens e fatos "não tinham desaparecido totalmente, senão que seguiam como que escondidas, exercendo a sua nefasta influência, até finalmente conseguir exprimir-se através dos sintomas". Quando a enferma recordava essa lembrança de uma forma muito emotiva, durante a hipnose, conseguia um grande e real alívio, ou mesmo o desaparecimento total dos sintomas. Chegaram assim muito perto do descobrimento do recalque.

5) Em 1989, sempre sedento de novos conhecimentos, vemos-lhe partir de novo para a França. Seu alvo era agora a Escola de Nancy, dirigida por Liébault e seu discípulo associado Bernheim, cujos sucessos obtidos, também através de hipnose, tinham alcançado repercussão mundial.

Por um método estatístico até então inédito, através do estudo de mais de dez mil pessoas rigorosamente fichadas, Bernheim e Liebault tinham chegado à revolucionária conclusão de que todos nós "podemos" agir segundo motivos ocultos ou inconscientes, diferentes daqueles que temos em mente e nos quais podemos acreditar", e que como "esses verdadeiros motivos são ocultos e desconhecidos, podemos estar mentindo sem o saber". Isto vinha a confirmar os conhecimentos adquiridos por Freud de seus mestres Breuer e de Charcot e ao mesmo tempo ampliava o campo de suas pesquisas. O fato que mais chamou a sua atenção, nas experiências que viu realizar na Escola de Nancy, foi, sem dúvida, o da "exata execução de ordens ou sugestões pós-hipnóticas, realizadas conscientemente e por motivos inconscientes.

O ponto mais importante reconhecido nestas descobertas, estava no fato de que a idéia-tendência e, portanto, seu comportamento derivavam de uma fonte não-consciente, isto é, de uma ordem não recordada, e por isto mesmo, inconsciente. Desenhava-se aí de um modo embrionário a sua posterior teoria do inconsciente-dinâmico, pedra angular de toda a psicanálise.

De outra banda, naquele mesmo ano, pôde ler Freud um livro publicado pelo Dr. Jane, seu colega de estudos na Escola de Charcot, o Automatismo Psichológique, onde podia ver bem mais desenvolvida a teoria de uma dupla-consciência e da cissão da personalidade, que Charcot tinha elaborado e tornado a base explicativa da histeria. Nessa teoria relativa ao desdobramento da personalidade, inspirar-se-ia, mais tarde, a concepção freudiana das duas zonas da vida psíquica: a consciente e a inconsciente.

6) Resumindo: Segundo os ensinamentos de Charcot, Freud teve que admitir que a natureza da histeria era psíquica e que nela as reminiscências traumáticas inconscientes representavam o papel primordial dos sintomas; com Bernheim, Liébault e Janet teve que reconhecer a presença de processos psíquicos, que podiam permanecer ocultos à consciência; e, finalmente, com Breuer, chegara às bases de sua teoria de recalque e da censura. Especialmente nas experiências das sugestões pós-hipnóticas de Bernheim acharia a base de sua teoria do inconsciente-dinâmico, e particularmente numa delas, em que "pressionando com a mão a cabeça do paciente era possível a suspensão da amnésia hipnótica", teria origem a implantação da técnica psicanalítica das associações livres, de tanta importância em seu sistema e que lhe permitiria abandonar o uso da hipnose catártica.

Podia voltar agora para Viena, consciente de ter compreendido muito bem o alcance maravilhoso das descobertas de seus mestres franceses e o quanto tinham logrado penetrar nos profundos comportamentos inconscientes. Tinha nas suas mãos os materiais mais preciosos para a construção de suas famosas teorias psicanalíticas.