História das Psicoterapias e da Psicanálise/II/III
1) De 1882 a 1896 tinha sido um longo período de aprendizado e de assimilação das novas idéias nascidas de seus contatos com Breuer, Charcot e Bernheim, seus grandes mestres e suas descobertas marcavam, como veremos, os pontos de partida das linhas mestras de seu novo sistema psicoterapêutico. Agora, afastado Breuer do campo de tratamento dos histéricos, por razões pessoais, e tendo seguido rumos bem diversos seus outros mestres, Charcot e Bernheim, Freud ficou sozinho no campo da incipiente psicoterapia.
De fato, a perda da colaboração do Mestre Breuer coincidiu ainda com a morte do seu próprio pai. Duplamente órfão agora, Freud isola-se voluntariamente e inicia um segundo período em sua vida de psicoterapeuta dedicado exclusivamente a novas experiências pessoais e a elaboração das primeiras teorias de seu original sistema. Foi certamente nesses anos, que se seguiram à morte de seu pai e à ruptura com Breuer, de 1897 a 1907, período qualificado por ele de "esplêndido isolamento" e no começo do período seguinte, que marca até o fim da I Guerra Mundial, quando estruturou e produziu as peças fundamentais da Psicanálise, às quais, posteriormente, muito pouco de essencial acrescentaram tanto ele como seus discípulos ortodoxos.
2) A partir de 1897, Freud fez cada vez mais sistemática a sua própria psicanálise, que ocasionalmente vinha praticando e que, aliás, nunca terminara. Foi nessa sua auto-análise, que pode estudar seus próprios complexos, constituindo fonte abundante de novas intuições e idéias teóricas. Com notável sinceridade e com coragem e honestidade invejável, qualidades estas que freqüentemente faltaram a outros pesquisadores, estudou em si próprio e nos seus pacientes os elementos básicos do comportamento humano. Apercebeu-se assim dos aspectos neuróticos de sua própria personalidade e da natureza afetiva dos laços que o prendiam a seu pai e a sua mãe. Pode dizer-se que o primeiro caso de Complexo de édipo estudado por Freud foi o seu próprio.Ao mesmo tempo fixara-se cada vez mais na importância da interpretação dos sonhos e da sexualidade infantil. Isto foi o primeiro passo de uma análise de seus próprios sonhos e o ponto de partida do livro que sempre considerou sua obra fundamental: A Interpretação dos Sonhos, publicado em 1899. Seguiram-se-lhe outras três obras fundamentais: A Psicopatologia da Vida Cotidiana, Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade, e Fragmentos de uma Análise de Histeria (o caso de Dora), de onde assenta suas idéias e teorias principais, que principiaram a fazê-lo famoso.
3) No aspecto terapêutico o pensamento de Freud também evoluíra rapidamente. Tão cedo percebeu que o caráter penoso dos fatos dolorosos, pavorosos e vergonhosos era precisamente a razão pela qual eles haviam sido retirados da consciência, isto o levou a pensar no mecanismo do "recalque" que se tornou para Freud "a pedra angular da compreensão das neuroses". O trabalho terapêutico não mais devia consistir na "ab-reação" da afetividade empenhada em vias falsas, mas na descoberta dos recalques e em sua solução por atos de julgamento de aceitação ou de condenação do que fora recalcado. Neste novo método, o "esclarecimento" substituía o ato de "catarse", e o método passou a ser denominado por Freud de "psicanálise".
Deu ainda um novo passo nessa mesma direção. Abandonando o uso da "hipnose catártica", substitui-a pela "livre associação", que em breve iria converter-se na regra técnica fundamental para o método psicanalítico. Aproveitara para isso as manifestações espontâneas e inconscientes dos pacientes, a interpretação dos "atos falhos", bem como o simbolismo dos sonhos.
Foi assim que com a publicação das obras anteriormente citadas, em 1899, 1901, 1905, etc., o método básico da livre associação, e suas teorias fundamentais sobre as tendências dinâmicas do inconsciente, e a da sexualidade infantil, estavam "quase" acabadas.
4) Por estas alturas, Freud começava já a criar fama, principalmente no estrangeiro. Iniciara-se assim um terceiro período na vida de Freud, que vai de 1907 até o fim da 1ª Guerra Européia e que foi caracterizado como de atividade externa e de luta pela implantação de seu sistema. A partir de 1905, um grupo de discípulos tinha-se reunido em torno dele em Viena; entre eles Adler, Steckel, Jones e Ferenzi, e em 1907 formara-se o grupo suíço de Zurique em torno de Breuer, com Jung, Rillin, Abraham e Meier. Em 1908 conseguiram realizar um encontro entre esses dois grupos, deliberando realizar regularmente tais reuniões e a publicação de uma revista — Anuaire des recherches psychopathológiques et psychanalítiques. E após um giro pela América do Norte, levado a cabo por Freud e Jung, a sua volta em 1910, reunira-se em Viena o I Congresso de Psicanálise, determinado a fundação de uma Associação Psicanalítica Internacional (API ou IPA em inglês), dividida em seções locais ou nacionais, sendo eleito Jung seu primeiro Presidente Geral, que era também do grupo de Suíça, e Adler do Grupo de Viena, Abraham do de Berlim, e Ferenzi do de Budapest. Mas o Congresso de Weimar do ano seguinte, em 1911, marcou cedo a data das primeiras dissenções e dos primeiros desentendimentos. Discordando da exagerada importância e da universalidade que Freud vinha dando ao comportamento sexual na explicação etiológica das neuroses, Adler e Jung foram considerados como dissidentes, renunciaram ou foram expulsos da Sociedade Psicanalista e formaram dois movimentos dissidentes por eles dirigidos, um em Zurique e outro em Viena. O segundo baseando as explicações dos mecanismos de inconsciente sobre os complexos de inferioridade e da ânsia do poder, deu a seu movimento o nome de "Psicologia individual", e o primeiro, insistindo no conceito de introversão e extroversão e no inconsciente coletivo, adotou para seu sistema o nome de "Psicologia analítica ou complexa". Naturalmente isto foi só o começo; logo a seguir, outros muitos discípulos se separariam das orientações do Mestre e formariam suas próprias escolas de pesquisa e de terapia, explorando, sob diversas formas, os princípios psicanalíticos.
5) Entretanto, Freud se manteve fiel a sua idéia "fixa" cada vez mais extremista, sobre os procedimentos inconscientes explicados através dos mecanismos sexuais. Entre outras obras, publicou, em 1913, Totem e Tabu, que veio fazer mais profunda a vala que o distanciava da compreensão de seus principais discípulos e colaboradores. A teoria da Libido ia tomando conta, cada vez mais, do seu sistema.
Entre 1914 e 1919, houve um período de silêncio ou de "latência", o da I Guerra Mundial, que retrasou consideravelmente o progresso psicanalítico. Durante ele, Freud pode meditar e analisar os novos fatores que as neuroses de guerra traziam para o campo analítico. Estudando o instinto destrutivo e de agressividade de caráter "não-sexual", foi aí que concebeu a idéia da duplicidade dos instintos, os construtivos ou de Eros (ou libidinosos) e os destrutivos ou de Thanatos (não-sexuais). Publicou também neste tempo o que poderíamos considerar como sua obra de síntese: A Introdução à Psicanálise.
6) De 1920 a 1930 houve um novo período a marcar uma nova orientação da doutrina freudiana da personalidade. Até 1920, eram o ID e a libido os que absorviam por completo o interesse dos estudos de Freud. Neste período, ele passa a desenvolver a teoria geral da estrutura da personalidade tripartida: ID, EGO e Super-Ego. é então que ele se lembra de colocar em primeiro plano o EGO consciente. Mas como assinala J. Nuttin, "a linha da nova teoria freudiana não permite o desenvolvimento de uma psicologia global do EGO nos seus próprios dinamismos construtivos", uma vez que Freud estuda apenas os mecanismos inconscientes de defesa em face da libido, no sentido negativo e patológico.
Depois disto, a obra freudiana desvia-se da psicologia propriamente dita e envereda pelo terreno da especulação, já iniciado em sua obra, Totem e Tabú e no da Metapsicologia. Desta forma, o último decênio a partir de 1930 pode considerar-se no sentido do progresso técnico da Psicanálise, como improdutivo, mas muito fértil em especulações e extrapolações psicanalíticas.
Seus trabalhos desta época como: Princípio do Prazer, Psicologia Coletiva, O Futuro de uma Ilusão, Inquietação e Civilização, e Moisés e o Monoteísmo, são outros tantos exemplos do gênero de preocupações que Freud abrigava em sua idade madura dos últimos anos. Ao lado de observações legítimas, de hipóteses úteis e geniais e de intuições indiscutíveis, achamo-nos, freqüentemente, diante de teorias prematuras, de idéias extravagantes e extrapolações lamentáveis. Tudo o que é humano, mau ou bom, vem misturado, em confusão ilimitada, como resultado das forças inconscientes. Nada sobrou para o nobre consciente, característica específica do Homo Sapiens.
7) Quando o psicanalista Freud morreu em setembro de 1939, fugido da fúria perseguitória do neurótico Hitler e de seu anti-semitismo, deixou ele seu movimento psicanalítico espalhado por todo o mundo ocidental, totalmente dividido em múltiplas facções e em diversas escolas.
Freud tinha-se revelado um espírito analítico e teórico mais do que sintético e prático. Faltou-lhe uma obra final que sintetizasse e desse coesão e unidade a toda a sua produção, espalhada numa imensidade de escritos, com múltiplas adições, correções, emendas, substituições e até contradições, que dão origem às mais contrárias interpretações. é assim que, considerando seus escritos como os livros inspirados da Bíblia psicanalítica, os psicanalistas do mundo inteiro aumentam ainda essa confusão, apoiando neles as mais variadas opiniões.
Ao lado de um primeiro grupo de discípulos ortodoxos, quase idólatras do freudismo, outros grupos dissidentes existem que, afastando-se da linha geral freudiana, são tildados de heresia, apesar de ter acrescentado ótimas contribuições positivas, fazendo progredir a Psicanálise, tanto no sentido terapêutico como no analítico. Há ainda outros que a orientam para o campo de novas extrapolações mais ou menos deploráveis.
Tal como hoje se pratica e ensina a Psicanálise no mundo inteiro, não se pode falar de uma Psicanálise tipicamente freudiana, mas de um movimento psicanalítico poliforme e diversificado. Quinze escolas ou mais, diferentes ou contrárias, se digladiam, criticam e menosprezam, chamando de hereges a seus contrários e apregoando seus próprios métodos e teorias diversas, tanto no terreno teórico como no terapêutico. A confusão no mundo psicanalítico, é tão grande que, apesar dos indiscutíveis méritos científicos de Freud e de suas inestimáveis aportações ao progresso da ciência psicológica, o mundo dos leigos, necessariamente, tem que ficar perplexo por não dizer totalmente descrente.