História do Brasil (Frei Vicente do Salvador)/II/I
Posto que el-rei d. Manuel, quando soube a nova do descobrimento do Brasil, feito por Pedro Álvares Cabral, andava mui ocupado com as conquistas da Índia Oriental, pelo proveito que de si prometiam, e com as de África pela glória e louvor, que a seus vassalos delas resultava, não deixou, quando teve ocasião de mandar uma armada de seis velas, e por capitão-mor delas Gonçalo Coelho, para que descobrisse toda esta costa, o qual andou por ela muitos meses descobrindo-lhe os portos e rios, e em muitos deles entrou e assentou marcos, com as armas del-rei, que para isso trazia lavrados, mas pela pouca experiência que então se tinha de como corria a costa, e os ventos com que se navega, passou tantos trabalhos e infortúnios, que foi forçado tornar-se para o reino com duas caravelas menos, e a tempo em que já era morto el-rei d. Manuel, que faleceu no ano do Senhor de 1521; e reinava seu filho el-rei d. João Terceiro, ao qual se apresentou com as informações que pôde alcançar, pelas quais el-rei parecendo-lhe coisa de importância, mandou logo outra armada, e por capitão-mor Cristóvão Jacques, fidalgo de sua casa, que neste descobrimento trabalhou com notável proveito sobre a clareza da navegação desta costa, continuando com seus padrões conforme o regimento que trazia, e andando correndo esta grande costa veio dar com a baía a que chamou de Todos os Santos, por ser no dia da sua festa, primeiro de novembro, e entrando por ela, especulando todo o seu recôncavo, e rios, achou em um deles chamado de Paraguaçu duas naus francesas, que estavam ancoradas comerciando com o gentio, com as quais se pôs às bombardadas, e as meteu no fundo com toda a gente, e fazenda, e logo se foi para o reino, e deu as informações de tudo a Sua Alteza, as quais bem consideradas, com outras que já tinha de Pero Lopes de Sousa, que por esta costa também andou com outra armada, ordenou que se povoasse esta província, repartindo as terras por pessoas que se lhe ofereceram para as povoarem e conquistarem à custa de sua fazenda, e dando a cada um 50 léguas por costa com todo o seu sertão, para que eles fossem não só senhores, mas capitães delas; pelo que se chamam, e se distinguem por capitanias.
Deu-lhes jurisdição no crime de baraço e pregão, açoites e morte, sendo o criminoso peão e sendo nobre até 10 anos de degredo; e no cível cem mil-réis de alçada, e que assistam às eleições dos juízes, e vereadores eles ou seu ouvidor, que eles fazem, como também fazem escrivãos do público, judicial e notas, escrivão da câmara, escrivão da ouvidoria, juiz, e escrivão dos órfãos, meirinho da vila, alcaide do campo, porque o do cárcere provê o alcaide-mor, e el-rei os ofícios da sua real fazenda, como são os dos provedores, e seus meirinhos, almoxarifes, porteiros da alfândega, e guardas dos navios; e ainda que os donatários são sismeiros das suas terras, e as repartem pelos moradores como querem, todavia movendo-se depois alguma dúvida sobre as datas, não são eles os juízes delas, senão o provedor da fazenda, nem os que as recebem de sesmaria têm obrigação de pagar mais que dízimo a Deus dos frutos que colhem, e este se paga a el-rei por ser Mestre da Ordem de Cristo, e ele da aos donatários a redízima, que é o dízimo de tudo o que lhe rendem os dízimos: pertencem-lhes também a vintena de todo o pescado que se pesca nos limites dar suas capitanias, e todas as águas com que moem os engenhos de açúcar, pelos quais lhes pagam de cada cem arrobas duas, ou três, ou conforme se concertam os senhores dos engenhos com eles, ou com seus procuradores, as quais pensões não têm a Bahia, Rio de Janeiro, Paraíba e as mais capitanias de el-rei, nas quais se paga o dízimo somente, mas no que toca a jurisdição do cível, e crime lha limitou el-rei depois muito, como veremos no capítulo primeiro do livro terceiro.