História do Brasil (Frei Vicente do Salvador)/III/XVII
Neste mesmo ano, em que d. Luiz Fernandes de Vasconcelos foi morto no mar a mãos de inimigos corsários, que foi o de mil quinhentos setenta e um, morreu de sua enfermidade o governador Mem de Sá, que o estava esperando para ir-se para o reino, mas quereria Nosso Senhor levá-lo para outro reino melhor, que é do céu, como por sua vida, e morte, e principalmente pela Misericórdia Divina, se pode confiar. Foi sepultado na capela da igreja dos padres da companhia, que ele havia ajudado a fazer de penas das condenações aplicadas para a obra, e de outras esmolas. Fez testamento, em que instituiu universal herdeira da sua fazenda, a sua filha condessa de Linhares, com esta cláusula, que se morresse sem deixar filho ou filha, que a herdasse, do engenho e terras, que cá tinha em Sergipe, ficasse a terceira parte a casa da Misericórdia desta cidade da Bahia, e os outros dois terços aos padres da companhia, um para eles, outro para repartirem em esmolas, e dotes de órfãs.
Porém ainda que a condessa morresse sem deixar filhos herdeiros, ela legou estes bens ao Colégio dos Padres da Companhia de Santo Antão de Lisboa, onde mandou fazer uma capela, e os padres de cá, não lhes parecendo bem pôr-se à demanda com os seus, deixaram o litígio a Misericórdia.
Não somente o governador Mem de Sá morreu gozoso de suas vitórias / se há coisa nas mundanas que na morte possa dar gozo/, mas também de outras, que neste ano da sua morte, o décimo quarto do seu governo, alcançaram os católicos contra os infiéis, que foram as mais insignes de quantas no mundo se hão visto; uma foi a que os portugueses alcançaram na Índia contra três reis, que se confederaram para os lançarem dela, e para este efeito deram todos a um tempo, o Hidalcão sobre Goa, o Nisa Maluco sobre Chaul, e o de Achem sobre Malaca; mas como em todas estas partes havia defensores portugueses, em todas foi igual a resistência. Muitos foram de parecer que se largasse Chaul, porque não estava murado, nem tinha gente que o pudesse defender do poder de Nisa Maluco, e para lhe mandar socorro de Goa seria porem-se a perigo de perderem uma coisa, e outra: porém o viso-rei d. Luiz de Ataíde, contra o parecer de todos, disse que nada havia de largar, e assim ficando-se com só dois mil homens em Goa, mandou d. Francisco Mascarenhas a Chaul com 600 soldados escolhidos, fora muitos fidalgos, e capitães, dos quais alguns aperceberam navios em que o seguiram com gente à sua custa, como foram d. Nuno Álvares Pereira, Pedro da Silva de Menezes, Nuno Velho Pereira, Rui Pires de Távora, João de Mendonça, e outros, que não podendo haver embarcações por partirem a furto do viso-rei, se embarcaram com estes, que dissemos, e com outros, que pelo tempo foram acudindo, e com tão pouca gente foi Deus servido que o viso-rei vencesse em Goa o Hidalcão, o qual o teve cinco meses em cerco com 35 mil cavalos, e 60 mil de pé, dois mil elefantes armados, e 200 peças de artilharia de campo, as mais delas de monstruosa grandeza, e d. Francisco Mascarenhas com a gente que levava de socorro, e a que tinha Luiz Freire de Andrade, capitão-mor de Chaul, que senão 800 homens, mataram a Nisa Maluco 12 mil mouros de 100 mil combatentes de pé, e 55 mil de cavalo, com que teve cercado a Chaul, e o puseram em tanta desconfiança que a cabo de nove meses, que durou o cerco, cometeu pazes a d. Francisco Mascarenhas.
As mesmas cometeu o Hidalcão ao viso-rei, e um, e outro as aceitou com condições a seu gosto, muito a salvo da sua honra, e del-rei. Pois o de Achem não livrou melhor que estoutros, porque indo para Malaca se encontrou com Luiz de Mello da Silva, que em naval batalha o venceu, e o fez por então tornar frustrado de seu intento.
Com esta vitória chegou o viso-rei d. Luiz de Ataíde ao reino a 22 de julho do ano seguinte de mil quinhentos setenta e dois, por deixar já na Índia d. Antônio de Noronha, seu sucessor, e el-rei d. Sebastião foi na cidade de Lisboa dar graças a Deus no domingo seguinte, em solene procissão da Sé ao Mosteiro de S. Domingos, onde se pregou, e denunciou ao povo, levando à mão direita o viso-rei em precedência de todos os príncipes e senhores, de que foi acompanhado; grande honra, mas bem merecida, e devida a tão heróicos feitos.
A outra vitória que neste ano de mil quinhentos setenta e um se alcançou foi a de d. João de Áustria, general da liga cristã, o qual com Marco Antônio Colona, general das galés do papa Pio Quinto, Sebastião Veniero, general dos Venezianos, o príncipe Doria, o de Parma, e Urbino, e outros senhores, que seguiram seu estandarte, em um domingo, a 7 de outubro, no golfo de Lepanto venceu o Baxá general dos turcos, matou-o, e lhe cativou dois filhos, sendo mais mortos 30 mil turcos, cativos cinco mil, tomadas duzentas e 20 galés, e galeotas, e libertados 15 mil escravos cristãos, a que vinham remando na armada do turco; mas também dos nossos morreram na batalha sete mil e quinhentos soldados, em que entraram alguns capitães famosos.
Sabida a nova da perda da sua armada por Selim, imperador dos turcos, a sentiu tanto, que saiu do seu juízo, dizendo que era princípio da ruína do seu império, mas sendo consolado por Luchali, que havia escapado com 15 galés, e lhe mostrou o estandarte de Malta, que havia tomado na batalha, aconselhado pelos seus, mandou logo aprestar outra armada, fazendo general dela o dito Luchali, o qual mui contente com o novo cargo se dava pressa em fabricar galés, fundir artilharia, fazer munições, e vitualhas para sair o ano seguinte, o que sabido pelo Sumo Pontífice tornou a tratar com os príncipes cristãos de nova liga, pedindo também a el-rei de Portugal d. Sebastião quisesse entrar nela, e juntamente quisesse aceitar o casamento de Margarita, filha de el-rei Henrique de França, em que já lhe haviam falado, e ela não quisera, o qual sabendo que o dito rei de França se escusava da liga contra o turco, respondeu que aceitava o casamento, e não queria mais dote com ela, senão que entrasse seu pai na dita liga, e ele mesmo se oferecia que pelo mar Roxo, e Pérsico molestaria o grão turco com suas armadas naquele tempo vitoriosas, e nisso trabalharia com todo o seu poder e forças.
Tão zeloso era el-rei d. Sebastião da honra de Deus, e de guerrear por ela contra os infiéis, que só por isto aceitava o casamento / a que não era afeiçoado /, e não queria outro dote; mas não se concluindo este matrimônio, que tantos males, e desventuras pudera escusar, casou com ela Henrique de Bourbon, duque de Vandoma, e príncipe de Bierne, e el-rei d. Sebastião continuou com suas guerras, que era o que desejava sobre todas as coisas da vida, até que nelas a perdeu.